POR UM REGIME JURÍDICO MÍNIMO DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
Faz sentido a modernização da Lei do Processo Administrativo federal — para se tornar, inclusive, nacional —, diante das irrefreáveis tendências e evolução por que passaram a prática e a compreensão das relações estabelecidas entre a Administração Pública e particulares. Mas faz ainda mais sentido essa modernização para se criar uma disciplina jurídica mínima aplicável ao direito administrativo sancionador. Em verdade, difícil é entender por que, até agora, esse salto civilizatório tardou a se apresentar.
O direito administrativo se alastrou. Ocupou espaços. No trânsito, na vigilância sanitária, no setor elétrico, no meio ambiente e em tantas outras dimensões das relações jurídicas travadas pelas pessoas e por seus negócios. E parte relevante desse fenômeno de "administrativização" da vida se faz sentir justamente no campo sancionatório. Ou seja, quando o particular descumpre prescrições administrativas e fica sujeito a uma ou mais medidas estatais coercitivas com efeitos negativos. Advertência, multa, suspensão de direitos, apreensão de mercadorias, fechamento de estabelecimentos, publicação de informações, dentre outras. Há um conjunto realmente variado de gravames no cardápio da Administração Pública, aplicados segundo uma lógica de comando e controle.
Até aí, nenhuma novidade. A perplexidade era, e é, a incerteza jurídica em torno da aplicação dessas punições, cenário que vulnerabiliza garantias de estatura constitucional e se converte em custos — associados, por exemplo, a processos sancionatórios pouco transparentes e instaurados de maneira pro forma, apenas para "legitimar" decisões já tomadas. Isso, quando instaurados, porque a realidade de muitos entes federativos subnacionais, especialmente municípios, é de ausência completa de um grau mínimo de institucionalidade.
Por isso a propositura de uma disciplina própria dedicado ao direito administrativo sancionador no anteprojeto de lei ordinária para a reforma da Lei nº 9.784/99, recentemente apresentado pelo Relatório Final da Comissão de Juristas instituída pelo Ato Conjunto dos Presidentes do Senado e do Supremo Tribunal Federal n⁰ 1/2022, é de ser aplaudida e apoiada. É verdade que o direito a um procedimento sancionatório prévio e adequado decorre da própria Constituição; que leis esparsas fixaram, ao longo do tempo, previsões mais ou menos minudentes nesse sentido (a exemplo do artigo 4º-A, II, da Lei de Liberdade Econômica); e que, inclusive, na alteração promovida na Lei de Improbidade Administrativa, o legislador remeteu expressamente aos "princípios constitucionais do direito administrativo sancionador".
Mas o potencial transformador do regime jurídico mínimo proposto pela Comissão de Juristas é incomparável, em uma sistematização que, de uma só tacada: 1) diz expressamente o óbvio (porque o óbvio precisa ser dito); 2) propõe mudanças incrementais para aperfeiçoar um modus operandi em curso; e 3) vai além, com uma dose palpitante de ousadia, para sugerir inovações jurídicas voltadas a induzir transformações. Dou um exemplo de cada.
O artigo 68-G prevê que "O investigado, sindicado ou processado tem o direito de permanecer em silêncio em interrogatórios ou depoimentos e o seu silêncio não caracterizará confissão". O direito à não autoincriminação está previsto no artigo 5º, LXIII, da Constituição, e no artigo 8º, inciso 2, "g", do Pacto de São José da Costa Rica, que assegura a toda pessoa acusada de delito o "direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada". A lei não precisaria esclarecer que essa previsão abrange o exercício do poder punitivo estatal independentemente da forma como ele se manifeste — pela via penal ou administrativa. Mas é importante que seja dito em um Brasil de muitas realidades distintas, assimetrias de informação e injustiças.
Já o artigo 68-C, "d" estende o instituto da decisão coordenada para a esfera administrativa sancionatória. Foi relativamente há pouco tempo que a Lei nº 14.210/2021 inseriu os artigos 49-A a 49-G na Lei nº 9.784/99 para disciplinar a articulação no âmbito da Administração Pública federal quando as decisões administrativas exijam a participação de três ou mais setores, órgãos ou entidades. Mas sua potencialidade acabou de certa forma podada diante da previsão de que a decisão coordenada não se aplica quando o processo envolver "poder sancionador". A proposta do anteprojeto é de que as autoridades administrativas e controladoras poderão "atuar de forma coordenada com outro órgão, com a finalidade de instrução e decisão conjunta, hipótese em que, havendo a possibilidade de aplicação de sanção de igual natureza por mais de um órgão, a pena final aplicada não deverá superar a pena mais grave".
Por fim, o §3º do artigo 68-G do anteprojeto estabelece que "§3º A Administração pública tem o dever de garantir a cadeia de custódia preservando todos os elementos de prova acessados ou examinados no curso da investigação preliminar, sindicância ou processo administrativo sancionador". A ideia é levar para o processo administrativo sancionador cautelas exigidas pelos artigos 158-A e 158-B do Código de Processo Penal. Se aprovada, a proposta imporá transformações não apenas materiais à Administração Pública, que precisará conformar suas práticas a despeito da escassez de recursos e de qualificação, mas sobretudo culturais e institucionais.
A Constituição aboliu a verdade sabida. Condicionou a punição a um procedimento prévio que assegure ampla defesa. Mas já é tempo de ir além, para se assegurar, vez por todas, o direito à higidez desse procedimento, nem sempre claro nem valorizado por quem interpreta e aplica o direito. O anteprojeto abre a oportunidade para essa e outras benfazejas transformações.