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BUSCA E APREENSÃO E A APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL

A aplicação da teoria do adimplemento substancial pode ser usada como forma de preservar o domínio do bem?

Os contratos de financiamento com alienação fiduciária possuem fundamento no Decreto-Lei n° 911/1969, editado durante o período da ditadura militar no Brasil. Assim, nesse tipo de contrato, o consumidor empresta determinada quantia de dinheiro de uma instituição financeira e devolve esse valor ao banco em parcelas. Como garantia do empréstimo o consumidor transfere à instituição financeira o domínio resolúvel e a posse indireta de coisa móvel, normalmente um automóvel.

Ocorre que algumas disposições do decreto permitem, dentre outros meios, que o banco ajuíze ação de busca e apreensão do bem móvel dado em garantia quando o consumidor estiver em mora, ou seja, quando está em atraso com o pagamento de alguma das parcelas que devia à instituição financeira.

O artigo 2° do Decreto-Lei nº 911/1969 estabelece que na hipótese de inadimplemento ou mora do consumidor, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros, bastando somente a demonstração da mora.

Nesse caso, o parágrafo 2° desse artigo explica que a mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, ainda que a assinatura constante do referido aviso não seja a do destinatário.

Assim, uma vez que o consumidor atrasar o pagamento de uma só parcela, a instituição financeira poderá mover ação de busca e apreensão em seu desfavor, demonstrando na inicial que o consumidor está em mora. Para a comprovação da mora, basta a juntada de carta com aviso de recebimento com a assinatura de qualquer pessoa.

É evidente que consumidores submetidos a esse tipo de contrato ficam ainda mais vulneráveis, já que se deixarem de pagar uma só parcela poderão perder seu bem móvel dado em garantia.

Como forma de reequilibrar tal situação em favor dos consumidores, passou a ser defendida por diversos autores a teoria do adimplemento substancial. Essa teoria tem por objetivo principal impedir que o credor resolva uma relação contratual em razão de inadimplemento de parcela ínfima da obrigação.

Ocorre que a identificação do quantum daquilo que se entende por adimplemento substancial não é simples, fazendo-se necessário o exame de uma interpretação que seja constitucionalmente viável do disposto no artigo 3° do Decreto-Lei n° 911/1969, levando-se em consideração o princípio constitucional da proporcionalidade.

A figura do adimplemento substancial passou a ser adotada pelos tribunais brasileiros, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça a partir do ano de  1995, que reconheceu que o ajuizamento de ações de busca e apreensão e reintegração de posse deveriam ser apenas o último recurso do credor, em casos nos quais há explícita perda de interesse na execução do contrato.

Contudo, a partir de 2012, entendimentos divergentes começaram a surgir. Tais entendimento conflitantes culminaram no julgamento do Recurso Especial n° 1.622.555/MG [1], que reconheceu que a teoria do adimplemento substancial não é aplicável aos casos regidos pelo Decreto-Lei nº 911/69 (alienação fiduciária), passando a ditar a jurisprudência até os dias atuais.

Apesar disso, existe uma corrente doutrinaria que afirma que a negativa de aplicação da teoria do adimplemento substancial a todo e qualquer caso envolvendo contratos de alienação fiduciária, como o que ocorreu no julgamento do Recurso Especial n° 1.622.555/MG, viola a defesa constitucional do consumidor, bem como diversas disposições do Código de Defesa do Consumidor e princípios como a boa-fé objetiva e a função social dos contratos.

Essa corrente tem considerando que a defesa do consumidor é direito fundamental e princípio da ordem econômica brasileira, de forma que os contratos de alienação fiduciária em garantia, por serem contratos de adesão, devem ser lidos e interpretados em favor dos consumidores, indivíduos vulneráveis no mercado de consumo.

Justamente por conta da vulnerabilidade dos consumidores, também não é crível afirmar que a teoria do adimplemento substancial incentiva o inadimplemento, pois se um consumidor que paga 44 das 48 parcelas de um contrato bancário, por óbvio, não visa o inadimplemento, até porque, por conta dos juros cobrados, já pagou muito a mais do que o valor original financiado.

Tendo isso em vista, é defensível a tese de que a negativa de aplicação da teoria do adimplemento substancial a todo e qualquer caso envolvendo contratos de alienação fiduciária, como o que ocorreu no julgamento do REsp n° 1.622.555/MG, viola a defesa constitucional do consumidor, bem como diversas disposições do Código de Defesa do Consumidor e princípios como a boa-fé objetiva e a função social dos contratos, sendo nítida a incompatibilidade da jurisprudência do STJ acerca do tema com o sistema constitucional de proteção ao consumidor.

Logo, para o inadimplente que já adimpliu substancialmente o contrato bancário parece um caminho viável levantar a interpretação sistemática do Decreto-Lei nº 911/1969 em consonância com a Constituição, Código Civil e Código de Defesa do Consumidor em sua defesa nos casos de busca e apreensão, fazendo com que o ajuizamento de ações de busca e apreensão seja mais consciente e menos gravoso ao devedor, especialmente em casos nos quais a dívida é mínima.

Por fim, ressalta-se que nos casos em que o contrato bancário não é regido pelo Decreto-Lei nº 911/1969 (contrato sem alienação fiduciária) é plenamente possível a aplicação da teoria do adimplemento substancial quando a instituição financeira  resolve propor a resolução do contrato por inadimplemento, contudo, deve ser observada a quantidade de parcelas pagas e vincendas.


[1] STJ, Segunda Seção, Recurso Especial nº 1.622.555/MG, relator ministro Marco Buzzi, julgado em 22/02/2017.