Ver mais notícias

INSTAURAÇÃO DO PROCESSO ARBITRAL E FRAUDE À EXECUÇÃO

Em razão da confidencialidade que reveste o processo arbitral, a importante questão da fraude à execução no contexto da arbitragem tem sido examinada de forma apenas casuísta. Além de rápidas referências em alguns manuais sobre arbitragem, conheço apenas a dissertação de mestrado de Guilherme Enrique Malosso Quintana, intitulada Fraude à execução e arbitragem (Faculdade de Direito da USP, 2014, inédita), que trata da matéria com maior profundidade.

O artigo 19 da Lei nº 9.307/96, que nada dispõe acerca dessa questão, estabelece que se considera instituída a arbitragem a partir da aceitação da respectiva investidura pelo árbitro, se for único, ou por todos, se forem vários. O parágrafo segundo, a seu turno, preceitua que a "instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de sua instauração, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição".

Isso significa, ao que tudo indica, que, a partir da ciência à parte contrária do requerimento para a instauração da arbitragem, considera-se pendente o processo, para todos os efeitos jurídicos.

No âmbito do atual direito italiano constata-se amplo debate na doutrina e na jurisprudência acerca da identificação do momento inicial da litispendência arbitral. Verifica-se que, após o Decreto nº 40, de 2 de fevereiro de 2006, restou confirmada a orientação pretoriana no sentido de que, a partir do momento no qual uma parte recebe a notificação enviada pela outra, demonstrativa de sua intenção de instaurar o processo arbitral, inicia-se a produção de todos os efeitos jurídicos.

Anota, a propósito, Achille Saletti (La domanda di arbitrato e i suoi effetti, Rivista dell’arbitrato, 2002, Milano, Giuffrè, pág. 668), que, a teor do artigo 2.945, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil italiano, "o prazo de prescrição não flui do momento da notificação do ato que contém o pedido de arbitragem até o momento em que a sentença que definir a sentença não puder ser impugnada ou a sentença proferida no recurso se tornar definitiva". Ademais, consoante precedente da Corte de Cassação de Roma, "a litispendência da arbitragem é determinada pela notificação do ato que contém o pedido". Este último aspecto é de considerável importância sistemática, uma vez que, consoante doutrina de Francesco Campione (La domanda di arbitrato tra libertà dele forme e principio del contraddittorio, Rivista dell’arbitrato, cit., 2013, pág. 124), antes da reforma legislativa,  prevalecia a opinião, a partir da chamada discrepância genética entre o processo arbitral e o juízo estatal (no segundo, diferentemente do primeiro, o juiz pré-existe a formação do processo, portanto não pode iniciar um processo se o juiz ainda não estiver constituído), que o momento inicial da pendência da arbitragem era apenas aquele da constituição do painel arbitral.

A despeito da notória diferença entre os regimes jurídicos da arbitragem na Itália e no Brasil, observa-se que, em ambos os sistemas, os efeitos gerados pelo processo arbitral se produzem a partir da inequívoca cientificação da parte contrária, mesmo antes de instaurada propriamente a arbitragem.

Tenha-se presente que, na esfera do processo estatal, a interpretação conjugada dos artigos 240 e 792, inciso II, do nosso Código de Processo Civil em vigor, revela que a citação válida, além de outros efeitos materiais e processuais, demarca o momento do início da demanda, implicativo de fraude à execução na hipótese de alienação ou oneração do patrimônio, pelo devedor, impossibilitando-o de satisfazer a obrigação que lhe venha a ser imposta por sentença condenatória.

O reconhecimento da fraude à execução, como é sabido, visa a assegurar a efetividade da própria tutela jurisdicional, em benefício do credor.

Como acima observado, sem embargo da lacuna na nossa Lei de Arbitragem, é certo que a data do recebimento pelo demandando da notícia do requerimento para a instauração do processo arbitral constitui o marco temporal para a eclosão das consequências que derivam da pendência do processo arbitral. Tal comunicação é geralmente feita pelo próprio autor da arbitragem e/ou pelo órgão encarregado de administrar o seu processamento.

Ademais, a produção dos respectivos efeitos igualmente ocorrerá na hipótese de cláusula compromissória vazia, desde a comunicação à parte adversa do desejo de firmar o compromisso arbitral e o consequente início do processo arbitral.

Nesse caso, havendo resistência do outro litigante, a data da citação válida para o comparecimento em juízo, nos termos do artigo 7º da Lei nº 9.307/96, será aquela determinante para a aferição da fraude à execução.

Como bem escreve Guilherme Quintana (op. cit., pág. 102), a análise das inúmeras formas de atuação da vontade das partes na construção de mecanismos para dar início à arbitragem acaba dificultando a identificação do momento exato.

Não obstante, parece-me de todo correta a experiente lição de Dinamarco, ao afirmar que o momento para a produção dos efeitos da litispendência arbitral é aquele em que a parte interessada "sai da inércia e inicia a realização de atos com o objetivo de obter satisfação", vale dizer, "a partir da comunicação de dar início a uma arbitragem, a teor do artigo 6º da lei específica" (A arbitragem na teoria geral do processo, São Paulo, Malheiros, 2013, pág. 143).

Desse modo, em perfeita harmonia, com os ditames do Código de Processo Civil, tomando-se como imperativo o artigo 19 da Lei de Arbitragem, embora se considere instituída a arbitragem "quando aceita a nomeação pelo árbitro, se for único, ou por todos, se forem vários", os efeitos substanciais e processuais retroagem à data da ciência do demandado do pleito de instauração de arbitragem.

Conclui-se, pois, que se este praticar qualquer negócio oneroso ou gratuito, a partir deste momento, que comprometa a higidez de seu patrimônio para responder à condenação que lhe for imposta pela sentença arbitral, será considerado ineficaz em relação ao credor, uma vez que concretizado em fraude à execução.

É evidente que, diante do sigilo que pauta o processo arbitral, o credor terá, em algumas situações, redobrada dificuldade para infirmar a alegação de eventual terceiro adquirente de boa-fé.