Ver mais notícias

ANÁLISE DO PROJETO DE LEI 522/2022 E A PROTEÇÃO DOS DADOS NEURAIS NO BRASIL

A evolução das novas tecnologias e o incremento trazido pelas técnicas de inteligência artificial no campo da neurociência, vem desafiando os sistemas judiciais já estabelecidos e fazendo com que alguns conceitos, tais como privacidade, intimidade e dignidade da pessoa humana sejam reinterpretados.

As técnicas de imagem e rastreamento funcional do cérebro, são amplamente utilizadas pela medicina para entender o funcionamento do cérebro humano bem como detectar estados mentais e comportamentais das pessoas, o que pode, via de consequência, melhorar o bem-estar dos pacientes que sofrem de distúrbios neurológicos. Ao mesmo tempo, essas mesmas tecnologias mal utilizadas ou implementadas de forma inadequada,  aumentam o risco de violação do direito à privacidade, causando danos físicos ou psicológicos ou até mesmo permitindo influência indevida no comportamento das pessoas.

Com base nessas premissas, diversos estudos vêm sendo publicados na Europa e nos Estados Unidos e algumas iniciativas vem sendo desenvolvidas no sentido de recomendar que alguns direitos, tais como, liberdade cognitiva, privacidade e integridade mental por exemplo, sejam alçados a uma categoria especial de direitos humanos e/ou fundamentais, de modo a que os indivíduos possam se proteger adequadamente em face dos avanços rápidos e sem precedentes da neuro tecnologia.

Em 2019, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou recomendações sobre o desenvolvimento e a inovação em neurotecnologia. Suas diretrizes, reconhecendo que a rápida evolução das neurotecnologia está gerando um cenário de incertezas que pode exigir formas mais eficazes de governança, elencam princípios relacionados a questões éticas, jurídicas e sociais das neurotecnologia.

O Chile, pioneiro no assunto, alçou os neurodireitos a status constitucional e influenciado por essa discussão no país vizinho, o Brasil iniciou essa discussão por meio da apresentação do PL 522/22 que pretende alterar a LGPD e incluir o dado neural como uma espécie de dado sensível sob a proteção da lei e atribuir a ele as salvaguardas concedidas por essa legislação.

Em que pese o mérito do PL 522/22 ao trazer essa discussão à tona essa não é, no nosso entendimento, a forma mais adequada de resolver e discutir esse assunto.

De forma geral, as legislações que protegem dados pessoais foram introduzidas para combater os efeitos trazidos pela mercantilização dos dados obtidos por meio da vigilância. A preocupação em geral de recolocar o indivíduo no controle das informações que lhe digam respeito está na base dessas legislações. Aqui no Brasil, por intermédio da Emenda Constitucional nº 115 promulgada em 2021, alçou-se a autodeterminação informativa do indivíduo como um direito fundamental, de forma a fornecer aos indivíduos um poder real e permanente de controle sobre os seus próprios dados, livrando-o de influências externas e dando-lhe conhecimento de como terceiros lidam com as informações lhe dizem respeito.

Todavia, apesar dos enormes avanços que as legislações de proteção de dados têm promovido ao longo dos últimos anos, o que se percebe é que nelas não se enfrentam todos os dilemas especialmente éticos decorrentes do avanço tecnológico.

É esse um dos pontos que entendemos que o PL 522/22 não se mostra apropriado. A discussão não se restringe apenas a proteção de dados e deve ser alargada no âmbito técnico e jurídico para que seja tratado ou em uma legislação específica e, quiçá alçado a um direito fundamental que proteja a privacidade e a integridade das informações obtidas pela mente humana.

As legislações de proteção de dados, não tem oferecido proteção adequada a esses avanços da neurotecnologia então, mais do que apenas lançar essa informação e sugerir a proteção apenas do dado dentro da proteção trazida pela LGPD, a discussão normativa deve se dar de forma interdisciplinar entre a sociedade, no âmbito técnico, médico, jurídico e tecnológico.

O tema é complexo e merece, antes de qualquer definição, debate amplo e organizado, mas nos parece, num primeiro momento que, para fins de proteção de dados e, se considerado o dado neural como dado de saúde, já haveria proteção determinada na legislação relacionada aos dados pessoais sensíveis.

É muito importante que antes de qualquer evolução legislativa sobre o tema que as comunidades cientificas e jurídicas trabalhem juntas para melhor definir os limites, as capacidades e a direção pretendida, uma vez que se trata de questões cuja complexidade somente se torna alcançável mediante o diálogo franco e de caráter interdisciplinar.

Compreender o funcionamento cerebral, definir os limites da neurotecnologia, bem como mapear as possibilidades de danos causados aos indivíduos, sobretudo no que se refere ao seu livre desenvolvimento se torna algo imprescindível. Contudo, entendemos que não é pela alteração da LGPD que esse debate deve ser travado. É necessário, inicialmente, debater as peculiaridades sobre o tema antes de incluir de forma precipitada as alterações em uma legislação que não nos parece a mais apropriada para tratar o tema.