DA (IM)POSSIBILIDADE DE PRISÃO PREVENTIVA COM BASE NA QUANTIDADE DE DROGAS
É lugar comum nos depararmos com a conversão de uma prisão em flagrante em prisão preventiva lastreada exclusivamente com base na quantidade de drogas apreendidas (inclusive de réus primários), com o argumento de que isso (a quantidade de drogas) representam risco concreto da conduta ali praticada — o que, em tese, seria uma decisão não fundamentada na "gravidade abstrata do delito".
A priori, cumpre destacar que o entendimento sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal (normatizado pela Lei 13.964/2019, pacote anticrime), é de que a decisão de decretação da prisão preventiva, para além de estar pautada com motivação concreta em fatos novos e contemporâneos, deve demonstrar, também, lastro probatório que justifique a imprescindibilidade dessa medida cautelar extrema, sendo vedada considerações genéricas e vazias sobre a norma em abstrato e sobre a gravidade do crime [1].
Isso ocorre pelo fato de que a prisão preventiva é medida excepcional e subsidiária, haja vista a existência de medidas cautelares alternativas previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, havendo determinação expressa do artigo 282, parágrafo 6º, de que elas devem ser aplicadas em detrimento da prisão preventiva, esta última somente sendo possível quando as cautelares alternativas se mostrarem insuficientes.
Diante disso, há de ser demonstrada a absoluta necessidade da restrição da liberdade do cidadão, antes da condenação transitada em julgado, exigindo-se prova da materialidade do delito e indícios suficientes de autoria, somado à demonstração do motivo pelo qual existe perigo do estado de liberdade do acusado (periculum libertatis), devendo tal perigo de liberdade do imputado "ser real, com suporte fático e probatório suficiente para legitimar tão gravosa medida" [2].
A questão que fica é: a quantidade de drogas apreendidas demonstra a imprescindibilidade da medida extrema? Demonstra, por si só, o perigo de estado de liberdade do acusado?
Entendemos que não, visto que tal argumento é lastreado em elementos próprios do tipo penal do tráfico de drogas (em qualquer delito de tráfico de drogas existirá alguma quantidade de droga), de tal forma que, caso essa compreensão prevaleça, então todos os acusados presos em flagrante delito com incurso no artigo 33 da Lei 11.343/2006 responderão os respectivos processos penais presos, "entendimento que foi enfaticamente repelido por essa Suprema Corte, no julgamento do HC 104.339 (relatoria do ministro Gilmar Mendes, Pleno, DJe 6/12/2012), no qual se declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da expressão liberdade provisória contida no artigo 44 da Lei 11.343/2006, e se asseverou a necessidade de fundamentação individualizada para decretação de custódia preventiva, mesmo em se tratando do crime de tráfico de drogas" [3].
Nesse sentido, por ser argumento inerente ao próprio tipo penal, seria como se execução antecipada de pena fosse, o que também é absolutamente vedado pelas Cortes Superiores, tanto pelo princípio constitucional da presunção da inocência, quanto por vedação expressa do Artigo 313, parágrafo 2º do Código de Processo Penal.
A prisão preventiva não pode, sob nenhuma justificativa, servir para outro fim que não seja o próprio processo penal, de tal forma que para o decreto preventivo seja válido, deve-se demonstrar, à luz do Artigo 312 do Código de Processo Penal, em que medida a manutenção da prisão cautelar é medida indispensável para o deslinde do feito.
O ministro Olindo de Menezes da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Habeas Corpus 762.270/SP, revogou a prisão preventiva de paciente preso em flagrante com 3.087.049 quilos de drogas (ou seja, mais de 3 toneladas):
"Como se vê, consta do decreto prisional fundamentação com esteio na grande quantidade de droga apreendida, consignando a decisão que 'foram surpreendidos com grande quantidade de entorpecentes, quase 3 ton. de 'maconha', armazenados em 3.100 tijolos para transporte'. Contudo, ao analisar as circunstâncias do caso, verifica-se que o decreto prisional está fundamentado exclusivamente na quantidade de droga, elementar do tipo penal, sem demonstrar de maneira objetiva outras circunstâncias que indiquem que o recorrente se dedica a atividades criminosas. Sendo assim, apesar de a quantidade de droga aprendida ser expressiva, não se verifica nenhum outro elemento no caso concreto que justifique a prisão, o que evidencia a ausência de fundamentos para o decreto prisional. Ante o exposto, defiro a liminar para determinar a soltura do paciente, se por outro motivo não estiver preso, devendo o interessado apresentar endereço atualizado para fins de intercâmbio processual." (Habeas Corpus 762.270/SP, relator ministro Olindo de Menezes, 6ª Turma STJ, julgado em 10 de agosto de 2022)
Da mesma forma entendeu o ministro Sebastião Reis Júnior, nos autos do Habeas Corpus 760.266/SP, ao revogar liminarmente a prisão preventiva de paciente preso em flagrante com 205 quilos de maconha:
"Afora isso, o paciente é primário e a quantidade de droga apreendida, embora não seja insignificante, não serve de fator a justificar, por si só, a custódia cautelar, uma vez que a hipótese evidencia não se tratar de tráfico de grandes proporções, também não há dados sobre o uso de violência nem de armas para o cometimento do crime em apuração. Sobre esse ponto, confiram-se, por exemplo, estes julgados: RHC nº 109.047/MG, da minha relatoria, Sexta Turma, DJe 28/5/2019; e AgRg no RHC nº 133.719/PI, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 15/10/2020."
O que se vê, nessa esteira, é que a quantidade de drogas, por si só, não é argumento válido para decretação da prisão preventiva. E não poderia ser diferente, sobretudo para pacientes primários.
Isso porque é entendimento consolidado e pacífico nos tribunais superiores que a quantidade de drogas apreendidas não é elemento apto para, por si só, afastar a minorante do tráfico privilegiado (Artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006) [4][5]. A consequência lógica é que, por respeito ao princípio da proporcionalidade da prisão preventiva, seria um contrassenso admitir a segregação cautelar com esse fundamento se, ao final, o regime inicial de cumprimento de pena muito provavelmente será diverso do fechado.
A contradição ocorre, entretanto, na interpretação de que é possível se decretar a prisão preventiva de pacientes reincidentes com base, por si só, na quantidade de drogas apreendidas.
É certo que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é o de que o tráfico flagrado de não relevante quantidade de drogas somente com especial justificação permitirá a prisão por risco social (afastando-se como "especial justificação", em muitos casos, a reincidência). Isso pode ser verificado nos seguintes julgados:
"Apesar de constar no decreto prisional a apreensão de certa quantidade de droga, e que o indiciado é reincidente específico, ao analisar as circunstâncias do caso, verifica-se a desproporcionalidade de imposição de tão gravosa cautelar como a prisão, pois a quantidade apreendida de entorpecentes não se releva expressiva, tratando-se na hipótese de 386 g de maconha, conforme laudo constante nos autos. Nesse contexto, para evitar o risco de reiteração delitiva afigura-se suficiente a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, nos exatos termos da lei, que somente admita a prisão preventiva no último caso." (Artigo 292, parágrafo 6º do CPP) (AgRg no Habeas Corpus 720.255/SC, ministro Olindo de Menezes)
"Na espécie, realizada a prisão em flagrante, a prisão preventiva foi decretada em razão da existência de anotações pela prática de atos infracionais, inclusive, análogos ao tráfico de drogas. Entretanto, não foi apreendida quantidade de droga indicativa, por si só, da periculosidade do agente, a ponto de justificar o encarceramento preventivo." (HC 724.179/TO, ministro Antonio Saldanha Palheiro, 8/4/2022).
O ponto crucial da crítica é o seguinte: se o paciente for reincidente (específico ou não) e o decreto preventivo for fundamentado exclusivamente na quantidade de drogas apreendidas, tratar-se-á de decisão judicial idônea ou inidônea?
Também entendemos como inidônea, porque não deixaria de ser uma fundamentação lastreada com base em elementos do próprio tipo penal, e, nesse sentido, seria como se execução antecipada de pena fosse, nada demonstrando a respeito do eventual perigo de liberdade gerado pelo estado de liberdade do paciente.
Isto é: o decreto preventivo baseado com base na quantidade de drogas é ilegal tanto para primários quanto para reincidentes, valendo destacar que em eventual impetração de Habeas Corpus para fins de sanar esse vício e revogar a prisão preventiva, não podem as instancias superiores inovarem o fundamento do decreto ilegal, sob pena de reformatio in pejus [6].
[1] Nesse sentido, vide: Habeas Corpus 321.201/SP, rel. min. Felix Fischer, 5ª Turma. Habeas Corpus 296.543/SP, rel. min. Sebastião Reis Júnior, 6 ª Turma.
[2] JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. Editora SaraivaJur. 18ª edição. 2021. Página 706
[3] Habeas Corpus 207.305/SP, rel. min. Edson Fachin.
[4] Nos autos do Habeas Corpus 725.534/SP, julgado pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça no dia 1 de junho de 2022, foi fixado o entendimento de que a quantidade de drogas, para fins de dosimetria da pena, pode ser utilizada ou na primeira ou na terceira fase da dosimetria (nesta última, para fins de modulação do quantum de redução, e não para, isoladamente, afastar a minorante — entendimento já pacificado há muito tempo tanto pelo Supremo Tribunal Federal, quanto pelo Superior Tribunal de Justiça).
[5] Tema 712 do STF. Tese: "As circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em consideração apenas em uma das fases do cálculo da pena. Obs: Redação da tese aprovada nos termos do item 2 da Ata da 12ª Sessão Administrativa do STF, realizada em 09/12/2015". Julgamento do ARE 666.334/AM, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, no Pleno do STF.
[6] "É vedada, em habeas corpus, a utilização de fundamentos inovadores, para suprir vício de motivação das instâncias antecedentes, ou justificar a adoção do regime prisional mais gravoso, sob pena de reformatio in pejus. Precedentes." (HC 122.626, relator: min. DIAS TOFFOLI, 1ª Turma, julgado em 7/10/2014)