NIVELAMENTO POR BAIXO CRISE DE RESPEITABILIDADE LEVA ADVOGADOS A PROJETAR REFORMULAÇÃO DA CARREIRA POR LEI
Há em São Paulo um grupo de pessoas muito preocupadas com o caminho que a advocacia brasileira tomou nos últimos anos. País com a maior proporção de advogados por habitante no mundo, o Brasil deixou seu ensino jurídico se multiplicar sem garantir a qualidade, e esse nivelamento por baixo apresenta diversas consequências negativas, sendo uma delas uma crise de respeitabilidade.
Com explosão do número de advogados no Brasil, profissionais mal preparados têm atuado inclusive em cortes superiores
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Na visão desses advogados, a atuação de patronos sem o preparo adequado vem causando um mal-estar muito grande e aumentando as dificuldades de relacionamento entre causídicos e juízes. A impressão do grupo é que como está não dá mais para ficar.
Para tentar combater esse problema, que já causa danos à imagem da classe, os advogados propõem reorganizar a profissão em carreiras, de acordo com a experiência do profissional. Assim, os recém-formados, por alguns anos, só poderiam atuar em primeiro grau. E, à medida em que fossem ganhando horas de voo, estariam habilitados para missões mais complexas, como a sustentação oral em cortes superiores.
Segundo o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, esse formato já é seguido em diversos países, como Inglaterra, França e Japão, e em alguns estados americanos. No Brasil, porém, qualquer bacharel aprovado no exame da OAB pode fazer sustentação oral nos tribunais superiores livremente.
Esse movimento de São Paulo tem a pretensão de elaborar um anteprojeto de lei para ser levado ao Congresso por algum parlamentar sensível à causa, mas não é uma pauta simples. Reformular a carreira vai abrir as portas para críticas sobre elitização da profissão, por causa da limitação do campo de ação dos novatos. E eles não são uma parcela pequena dos mais de 1,3 milhão de advogados inscritos na OAB. Em 2020, 30% dos advogados tinha menos de cinco anos de formado. E 60% não chegava a uma década.
A chamada Jovem Advocacia atua engajada na OAB. Ela se organiza em comissões cujos presidentes se reúnem em um colégio que tem sido incluído em discussões relevantes, como, por exemplo, a regulamentação sobre publicidade e propaganda de advogados. Já houve, inclusive, pedido de cotas para jovens em conselhos e comissões da entidade.
Reflexão válida
Para o ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular e livre-docente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Ricardo Lewandowski, a discussão é válida. Ele diz que é possível vislumbrar três degraus a serem estabelecidos para a advocacia: primeira instância; tribunais de segundo grau; e, por fim, tribunais superiores. "Sempre observando um interstício de pelo menos cinco anos entre as etapas."
O advogado Técio Lins e Silva, por sua vez, concorda que o debate é bom e menciona o modelo adotado por alguns países, em que o direito de advogar na Suprema Corte tem numerus clausus (limite máximo de indivíduos que podem ser admitidos). "Isto é, alguém só entra no grupo com a saída de algum outro membro".
Na opinião do advogado José Roberto Batochio, a alternativa anglo-saxônica de solicitors e barristers, de fato, funciona muito bem em países dessa cultura. Solicitor é o advogado que representa clientes nas instâncias ordinárias, ou seja, é quem faz o primeiro atendimento. E o barrister pode atuar nas cortes superiores, mas para isso precisa ser admitido por uma das Inns of Courts.
No entanto, a situação brasileira, alerta Batochio, é muito diferente. Aqui, advogados devem ser pacientes com juízes, mas a recíproca pode ser saudável também. "O formalismo e a burocracia não precisam se opor à evolução pedagógica. O aperfeiçoamento da democracia tem suas dores, como a isonomia. Quando certo político inglês queixou-se da democracia com Churchill por haver este perdido as eleições após haver vencido a Segunda Grande Guerra e derrotado os nazistas, ouviu esta resposta: 'Democracia é isto, o povo tem todo o direito de escolhas, mesmo a de nos enxotar do poder…'. Pergunto também: e os juízes mais jovens ou menos preparados? Seriam divididos por categorias também? Seriam excluídos de julgamentos importantes? Vamos estratificá-los também?
A refletir."
Ministro Ricardo Lewandowski apontou hipótese de dividir atuação em primeira instância, tribunais e cortes superiores
Nelson Jr./SCO/STF
Sustentações melhores
O presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, Mário Luiz Oliveira da Costa, disse que já está em curso uma tentativa de sensibilizar tanto a advocacia quanto o Judiciário sobre a necessidade de melhor organizar as sustentações orais, em benefício de todos.
"Em se tratando dos chamados tribunais superiores, o tema é ainda mais delicado. Fala-se, por exemplo, em restringir a atuação a advogados com mais tempo de inscrição na OAB, mas, a par de outros possíveis problemas, isso não seria garantia de sustentações mais qualificadas, apropriadas ou eficazes", disse ele.
A celeuma foi potencializada pela aprovação da Lei 14.365/2022, que alterou trechos do Estatuto da Advocacia, do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal para ampliar as hipóteses de sustentação oral.
As adaptações ao modelo telepresencial feitas durante a epidemia da Covid-19 também geraram complicações: há casos de advogados repreendidos por aparecerem em vídeo mal vestidos, por se conectarem de dentro de seus carros e até — nesse caso, por falta de sensibilidade do magistrado — obrigados a participar de audiência mesmo estando internados em hospital.
No Superior Tribunal de Justiça, a explosão de sustentações orais levou a manifestações dos ministros implorando por consciência sistêmica. Há casos como o da 3ª Turma, que transfere todos os julgamentos com pedido de sustentação oral em agravo interno para o sistema virtual. A insatisfação dos ministros é evidente.
"Uma entre as várias possíveis alternativas cogitadas seria mudar por completo o mecanismo da sustentação oral. Algo menos formal e mais direto como, por exemplo, dar dez minutos para o advogado tratar dos três pontos principais do caso", disse o presidente da Aasp. "Os advogados mais experientes já costumam proceder dessa forma. Não adianta discorrer sobre diversos pontos na sustentação oral, com o que os julgadores acabam não acompanhando ou compreendendo bem nenhum deles. É preciso focar no que realmente interesse, de forma clara e objetiva, para o quê, em geral, dez minutos são suficientes", completou ele.
E os cursos de Direito?
A OAB Nacional mantém a postura de defender irrestritamente as prerrogativas dos advogados, inclusive a expansão do cabimento da sustentação oral. Por outro lado, vem há anos tentando arrancar pela raiz o mal que aflige toda a classe: a proliferação de cursos de Direito pelo país.
Em 2015, um levantamento da OAB apontou que o Brasil, sozinho, tinha mais cursos de Direito do que o resto do mundo inteiro. Dados publicados pelo jornal Folha de S.Paulo neste ano mostram que nove em cada dez instituições que oferecem o curso de Direito no Brasil aprovam menos de 30% dos seus alunos no exame da Ordem.
A questão é destacada também por quem defende a reestruturação da carreira. "A razão disso é a má qualidade do ensino", aponta Mariz. "É para coibirmos esses excessos que estão prejudicando inclusive a imagem da advocacia, queremos organizar a profissão em carreiras de acordo com numero de anos de formatura."