CONTAS À VISTA QUEM SE BENEFICIA DO TETO E DELE NÃO ABDICARÁ, APESAR DO SEU FIM IMINENTE?
A Emenda 126, promulgada em 21 de dezembro deste ano, tem como seu maior mérito (quiçá único[1]) abrir caminho para a revogação do teto de despesas primárias, o que ocorrerá com a edição de lei complementar sobre um futuro "Regime Fiscal Sustentável". Trata-se da hipótese prevista nos artigos 6º e 9º da EC 126/2022:
"Art. 6º O Presidente da República deverá encaminhar ao Congresso Nacional, até 31 de agosto de 2023, projeto de lei complementar com o objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico, inclusive quanto à regra estabelecida no inciso III do caput do art. 167 da Constituição Federal.
Art. 9º Ficam revogados os arts. 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias após a sanção da lei complementar prevista no art. 6º desta Emenda Constitucional."
O fim iminente do teto criado pela Emenda 95, de 15 de dezembro de 2016, exige que façamos um balanço relativamente compreensivo dos seis anos da sua tumultuada vigência.
De plano, é preciso lembrar que distribuir — de forma politicamente legítima e tecnicamente planejada — os ônus e bônus da ação estatal ao longo do tempo é a razão de existir das regras fiscais.
No Brasil, tal esforço revela-se particularmente complexo. O país não consegue ordenar legitimamente prioridades por meio do planejamento, tampouco é capaz de equacionar seu conflito distributivo estrutural em relação à regressiva matriz tributária e ao opaco e ilimitado fluxo de despesas financeiras. Por faltar concepção de futuro que mobilize as forças produtivas da economia, não há desenvolvimento socioeconômico que permita superar os impasses de curto prazo. A desigualdade agrava o caos orçamentário e também é por ele acirrada, sobretudo porque a riqueza subtributada encontra remuneração muito segura, opaca e alta na dívida pública, enquanto são prometidos ajustes seletiva e exclusivamente direcionados à contenção das despesas primárias.
Como bem definido no artigo 1º, §1º da Lei de Responsabilidade Fiscal, não há horizonte de sustentabilidade fiscal quando não há ação planejada e transparente, até porque — na ausência de metas claras — faltam os instrumentos de prevenção de riscos e correção de desvios capazes de afetar as contas públicas.
Imersos em uma tensão dialética, planejar e controlar deveriam ser desafios complementares da dinâmica orçamentária. Em um cenário ideal e distante da práxis brasileira, a avaliação dos erros e irregularidades do ciclo passado deveria permitir a aprendizagem e o aprimoramento para a próxima etapa. Enquanto o Executivo primordialmente deveria planejar e implementar o planejado, o Legislativo deveria se destacar pela capacidade de impor limites e cobrar resultados ao longo dos processos de elaboração e execução das leis orçamentárias, fiscalizando integradamente as contas e as políticas públicas.
Entre o ideal e o real, porém, vai uma longa e quase intransponível distância. A interdição fiscal a que seja planejado o futuro comum da nossa vida em sociedade invisibiliza e naturaliza a extrema concentração de renda no topo. Para que não haja uma reflexão sobre as opções de arrecadação e sobre as despesas financeiras, o foco das regras fiscais brasileiras foi reduzido apenas à tentativa de conter o tamanho do Estado, reduzindo-o proporcionalmente ao longo do tempo.
O produto almejado era o estreitamento não só financeiro-orçamentário, mas sobretudo temporal das políticas públicas. A regra rígida e inepta de limitação fiscal imposta à ação governamental foi duplamente estratégica, porque deslocou o conflito distributivo da sociedade apenas para o elenco de despesas primárias e também porque permitiu ao Congresso absorver o poder político primordial de liberar exceções, a conta-gotas, mediante alterações curtas e contingentes à Constituição.
De um lado, a restrição linear para o volume global de despesas primárias operou como um forte inibidor do tamanho do Estado para que não houvesse pressão por arrecadação tributária proporcional à capacidade contributiva dos mais abastados e também para que o mercado pudesse se manter como a via preferencial de oferta de bens e serviços, independentemente do quão essenciais fossem eles. Disso dá exemplo, sem pretensão de exaustividade, a trajetória ascendente das renúncias fiscais que chegarão, em 2023, ao patamar de R$456 bilhões no âmbito da União, tal como noticiado pela Agência Câmara de Notícias:
"As renúncias de impostos concedidos pela União a parcelas da sociedade devem chegar a R$ 456 bilhões em 2023, ou 4,29% do Produto Interno Bruto (PIB). O total é um pouco superior ao que o governo gasta anualmente com o pagamento de pessoal.
Nota técnica das Consultorias de Orçamento da Câmara e do Senado sobre o Orçamento de 2023 (PLN 32/22) mostra que a proposta está distante da meta da emenda constitucional 109 (21) que determina a redução dos incentivos para 2% do PIB até 2028.
Além das renúncias, o Orçamento de 2023 prevê benefícios financeiros e creditícios no valor de R$ 130 bilhões, um aumento de 20,5% em relação ao total para 2022. A nota destaca ainda que mais de 60% das renúncias e benefícios estão concentrados nas regiões Sul e Sudeste, o que também estaria fora do objetivo constitucional de redução das desigualdades regionais."
De outro lado, o teto atuou como um forte indutor do trato balcanizado dos recursos públicos no ciclo orçamentário, já que empoderou a dimensão curto-prazista dos parlamentares em detrimento do planejamento de médio e longo prazos. O orçamento secreto atesta tal dimensão, como elucidado pelo julgamento da sua inconstitucionalidade concluído na última semana pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 850, 851, 854 e 1.014.
Muito embora esteja perto do fim, o teto ainda repercute forte e gravemente na sociedade brasileira. A expressão mais clara disso reside na forma como o Congresso tentou contornar a decisão do STF mediante a redistribuição dos valores correspondentes ao orçamento secreto para:
- ampliar as emendas individuais impositivas (que subiram de 1,2% para 2% da receita corrente líquida da União — RCL), na forma do §9º do artigo 166 da Constituição, com a redação dada pela EC 126/2022;
- bem como para atender ao controverso arranjo das despesas discricionárias do Executivo (marcadas pelo identificador de resultado primário 2), mas geridas pelo relator geral do Orçamento, na forma do artigo 8º da citada Emenda, oriunda da PEC da Transição.
É evidente, aliás, a manobra empreendida no artigo 4º do Projeto de Lei Orçamentária da União para 2023, onde houve a vedação de cancelamento pelo Executivo das rubricas incluídas ou acrescidas por emendas parlamentares, mediante a inserção do seguinte trecho "inclusive aquelas classificadas com 'RP 2'". Tal alteração pragmaticamente retira a discricionariedade alocativa do Executivo e devolve ao Legislativo o poder decisório nuclear sobre a execução orçamentária de tais despesas.
Daniel Weterman bem definiu, no Estadão, que se trata da recuperação da engrenagem do Orçamento Secreto no seio das despesas marcadas pelo RP 2:
"O Congresso recolocou as verbas do orçamento secreto, derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), nas mesmas despesas de interesse do Centrão que abasteceram o esquema declarado inconstitucional pela Corte na segunda-feira, 19. O remanejamento desses recursos foi chancelado no Orçamento de 2023, aprovado nesta quinta-feira, 22, pelo Congresso. O texto vai à sanção presidencial.
Em troca da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, que permitiu a expansão do Orçamento em R$ 169,1 bilhões para bancar as promessas de campanha de Lula, o governo eleito fez um acordo com os líderes do centrão para redistribuir a verba do orçamento secreto, um total de R$ 19,4 bilhões. Quase metade dos recursos (R$ 9,55 bilhões) foi para o aumento de emendas individuais, aquelas indicadas por cada deputado e senador, e R$ 9,85 bilhões ficaram sob o guarda-chuva dos ministérios.
As verbas dessa fatia, porém, foram realocados para as mesmas ações e programas de interesse direto dos congressistas, e que abasteceram o orçamento secreto nos últimos anos. Além disso, foi incluído um dispositivo no Orçamento do ano que vem que proíbe o governo de cancelar essas despesas sem aprovação do Congresso, mantendo o controle dos parlamentares sobre as cifras.
Dos R$ 9,85 bilhões, R$ 4,4 bilhões foram destinados ao Ministério do Desenvolvimento Regional. O órgão é um dos que mais foram usados para o pagamento de emendas secretas nos últimos anos, com casos de superfaturamento e distribuição sem transparência. Em 2023, ele será dividido em duas pastas: Cidades e Integração Nacional."
A ampliação ao longo do tempo dos espaços das renúncias fiscais e das emendas de relator não será revertida com a revogação dos dispositivos que perfazem o "Novo Regime Fiscal", tal como ele fora concebido pela Emenda 95.
A bem da verdade, os que se beneficiaram do teto não abdicarão facilmente dos ganhos com ele alcançados no regime que vier a substituí-lo, precisamente porque almejam manter esse instrumento poderoso de arbitragem da desigualdade e da alocação fisiológica no seio do orçamento público.
Assim caminhamos rumo a 2023, bem lastreados na clássica e sempre presente lição de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: algo aparentemente precisa mudar para que siga exatamente como tem sido.
[1] Após as Emendas 102/2019, 109/2021, 113/2021, 114/2021 e 123/2022, parece-nos inadequada uma sexta alteração ao ADCT para abrir brecha episódica no teto. Tal circunstância se mostrou ainda mais evidente diante da decisão de 18/12/2022 prolatada pelo Ministro Gilmar Mendes nos autos do Mandado de Injunção 7.300/DF, admitindo o custeio do Programa Bolsa Família mediante créditos extraordinários, tal como noticiado nesta ConJur.