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OPINIÃO DESFECHO DO JULGAMENTO DO ORÇAMENTO SECRETO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Chegou ao fim o julgamento das ações no STF (Supremo Tribunal Federal) que questionavam a constitucionalidade do chamado "orçamento secreto" [1]. Por seis votos a cinco, o Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade das emendas do relator geral ao projeto de lei orçamentária anual com a amplitude conferida pelo Congresso em conjunto com a Presidência da República. Como já escrevemos aqui na ConJur [2], o que estava em jogo era saber se os procedimentos legislativos e executivos relativos às emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual eram ou não compatíveis com os princípios republicanos da transparência e do controle social dos gastos públicos, bem como com os preceitos fundamentais que regem o devido processo legislativo orçamentário.

Seguindo o voto da ministra Rosa Weber, relatora do caso, votaram pela inconstitucionalidade do orçamento secreto os ministros Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Ficaram vencidos os Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Ao final do julgamento, o STF aprovou a seguinte tese:

As emendas do relator geral do orçamento destinam-se exclusivamente à correção de erros e omissões nos termos do artigo 166, parágrafo 3º, inciso III, alínea 'a', da Constituição Federal, vedada sua utilização indevida para o fim de criação de novas despesas ou de ampliação das programações previstas no projeto de lei orçamentária anual [3]:

"Vale destacar que para nenhum dos onze ministros do Tribunal pareceu fazer sentido a tese advogada inicialmente pela Procuradoria-Geral da República, no sentido de que a prática não estaria ao alcance do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e dos atos do poder público por supostamente consistir matéria interna coporis do Congresso Nacional, ou seja, uma questão política por excelência. Aliás, até mesmo para o próprio Procurador-Geral da República, Augusto Aras, a tese anteriormente por ele encampada mostrou-se insustentável: terminado o julgamento, o Procurador-Geral pediu a palavra à ministra Rosa Weber, Presidenta do STF, para anunciar a mudança do seu posicionamento diante do caso e, assim, aderir à corrente majoritária então formada" [4].

Como havíamos defendido anteriormente, a questão envolvia a garantia do devido processo legislativo orçamentário. Sendo assim, não se afigurava possível sustentar que o procedimento legislativo pertinente às emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual estaria imune à incidência da própria Constituição, sob pena de se criarem verdadeiras ilhas corporativas de discricionariedade [5]. Dessa forma, garantiram-se parâmetros normativos para o controle republicano da distribuição de recursos públicos federais, em reforço ao Estado Democrático de Direito. Reconhecido está, portanto, que o orçamento público é uma questão constitucional e, enquanto tal, uma questão jurídica, não um assunto meramente "político" de deputados e senadores.

Estando em causa a alegação de violação aos princípios republicano, da igualdade, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência administrativas, bem como ao devido processo legislativo orçamentário, o que se coloca é uma questão constitucional. A distribuição de generosas fatias do orçamento público federal em desrespeito à normativa constitucional não pode sequer parecer uma tentativa fraudulenta de institucionalização da corrupção. Cabível, então, a apreciação judicial da matéria e acertada, no caso, a sua superação do argumento das questões interna corporis [6].

Cabe chamar a atenção: a divergência entre os ministros do STF não se deu em torno do falso dilema de saber se a Constituição se aplicaria ou não ao processo legislativo orçamentário. Mas, sim, de saber se as emendas do relator ao projeto de lei orçamentária anual, com a amplitude a elas conferida pelo Congresso em conjunto com a Presidência da República, seria possível diante do arcabouço normativo constitucional. A corrente majoritária entendeu que não, pois o artigo 166, parágrafo 3º, inciso III, alínea "a", da Constituição de 1988, preceitua que as emendas ao projeto de lei do orçamento anual somente podem ser aprovadas caso estejam relacionadas à correção de erros ou omissões. Diante desse cenário, ficou determinado que o expediente tal como adotado pelo Congresso Nacional subverteria essa determinação constitucional. É que as emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual não se limitavam a corrigir erros ou omissões acaso existentes na peça orçamentária, mas a atender demandas de deputados e Senadores que aderissem à base governista no Congresso por recursos públicos a serem destinados a suas bases eleitorais.

Já a corrente minoritária entendeu ser compatível com a Constituição o expediente com base no qual congressistas teriam a sua disposição uma parcela do orçamento público federal para criação de despesas. Contudo, para os ministros vencidos, deveriam ser adotados critérios claros e objetivos para a regência da prática. Em respeito aos princípios que regem a atividade administrativa do Estado, assim como ao devido processo legislativo orçamentário, para essa corrente, o que deveria ser preciso assegurar seria a transparência em todas as fases do ciclo orçamentário e a proporcionalidade na distribuição dos recursos, como forma de impedir sua distribuição unilateral e pessoal, esta sim incompatível com a Constituição.

Mais importante do que conjecturar sobre as supostas razões pessoais pelas quais a maioria dos ministros do STF foi levada a decidir pela inconstitucionalidade do chamado "orçamento secreto", cabe reconhecer o reforço à Constituição e à institucionalidade, tão atacadas nesses últimos quatro anos. O expediente tal como adotado era incompatível com uma república que se constitui na forma de um Estado democrático de Direito. Fato incontroverso para ambas as correntes formadas no STF e, inclusive, para o próprio Congresso que, antes do término do julgamento das ações pelo Tribunal, tentou atualizar a sua normativa interna com vistas a conferir maior publicidade, transparência e equanimidade na distribuição de recursos públicos federais por meio das emendas do relator ao projeto de lei orçamentária anual. Não fosse assim, o Congresso não se daria ao trabalho de corrigir sua normativa interna [7]. Bastaria insistir na constitucionalidade das resoluções da forma como estavam em vigor.

Superada essa questão, era necessário definir a amplitude das emendas do relator ao projeto de lei orçamentária, conforme a Constituição. Como destacado pela ministra Rosa Weber em seu voto, diante do artigo 166, §3º, inciso III, da Constituição, as emendas do relator ao projeto de lei orçamentária anual destinam-se somente a corrigir eventuais erros e omissões de ordem técnica ou legal, bem como à organização sistemática das despesas conforme suas finalidades, não contemplando, portanto, a inclusão de novas despesas ou programações na peça orçamentária. Diante dessa imposição constitucional, não há que se falar na possibilidade de o relator do projeto de lei orçamentária anual criar novas despesas, muito menos ainda de criar novas despesas de forma obscura.

Não se trata de um jogo de soma-zero no qual o Congresso tenha perdido completamente seu papel ativo no planejamento e no controle orçamentário e financeiro. Nem poderia sê-lo. Com a Constituição de 1988 e em sede do sistema presidencialista adotado, a função do Poder Legislativo no ciclo orçamentário não é de passividade ou de submissão ao Poder Executivo, mas de controle e fiscalização ativos das suas várias etapas, contando, inclusive, com a possibilidade de recurso ao Poder Judiciário, no caso, ao STF, em hipótese de descumprimento das determinações constitucionais.

Com a declaração da inconstitucionalidade da amplitude conferida às emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual pelo STF, o que se assistiu foi o reforço da Constituição. Que se abra uma nova etapa da relação Executivo-Legislativo na elaboração e no controle da execução do orçamento público federal, com respeito aos princípios da Administração Pública e aos preceitos fundamentais regentes do devido processo legislativo orçamentário em substituição ao presidencialismo de extorsão, que permitiu a manutenção no cargo do ainda Presidente da República, mesmo com uma enxurrada de denúncias por crimes de responsabilidade contra ele.


[1] RODAS, Sérgio. Supremo declara inconstitucionalidade do orçamento secreto, por maioria. Conjur, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-19/maioria-stf-declara-inconstitucionalidade-orcamento-secreto. Acesso em: 19 dez. 2022.

[2] MEGALI NETO, Almir; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Orçamento secreto do Congresso em julgamento no Supremo Tribunal Federal. Conjur, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-06/megali-cattoni-orcamento-secreto-stf. Acesso em: 19 dez. 2022.

[3] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/voro-rosa-weber-nove-ministros-stf.pdf. Acesso em: 19 dez. 2022.

[4] TALENTO, Aguirre. Orçamento secreto: PGR muda de posição, acompanha Rosa Weber e defende fim das emendas de relator. O Globo, Brasília, 19 dez. 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2022/12/orcamento-secreto-pgr-muda-de-posicao-acompanha-rosa-weber-e-defende-fim-das-emendas-de-relator.ghtml. Acesso em: 19 dez. 2022.

[5] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. 3. ed. Conhecimento Editora, 2021, p. 221.

[6] Aliás, historicamente ligada à defesa da independência dos parlamentos em face da monarquia, a alegação de matéria interna corporis é algo que não se coaduna com o regime republicano e democrático. Sobre a recepção, todavia, do conceito de matéria interna corporis no período republicano brasileiro, ver a Dissertação de Mestrado, de Lucas César Severino de Carvalho, Por uma crítica ao conceito de interna corporis no Direito Político brasileiro, recém defendida no Programa de Pós-Graduação da UFMG.

[7] BARBIÉRI, Luiz Felipe; CLAVERY, Elisa. Congresso aprova resolução que prevê novas regras do 'orçamento secreto'; entenda. G1, Brasília, 16 dez. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/12/16/orcamento-secreto-novas-regras-congresso.ghtml. Acesso em: 19 dez. 2022.