OPINIÃO O STF E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO SUBORDINADO
O STF vem, sistematicamente, reformando decisões da Justiça do Trabalho que reconheciam vínculo empregatício entre trabalhadores que prestam serviços por meio de pessoa jurídica, a conhecida "pejotização".
Recentemente, também foi noticiado que o ministro do STF Dias Tofoli reformou uma decisão da Justiça do Trabalho que havia reconhecido vínculo de emprego entre advogado e escritório de advocacia (ver Rcl 53.899).
Já foram publicadas várias decisões afastando ou suspendendo o vínculo empregatício envolvendo representantes comerciais, transportadores autônomos de cargas, diretor da CBF e até de gerentes bancários (vide ADC-48; Rcl 56132 e 55607).
O argumento que prepondera no âmbito do STF é o de que não há irregularidade na contratação de serviços por pessoa jurídica formada por profissionais liberais, uma vez que o trabalhador pode optar por se vincular ao tomador de serviço tanto por meio de um contrato de prestação de serviços autônomos quanto por contrato regido pela CLT.
Até aí, nada de novo porque, de fato, e como sempre, as partes podem optar por vincular-se tanto por um contrato de natureza civil quanto por outro regido pela CLT. O que tem de ser avaliado com muito critério, no entanto, são situações que, sob a pecha de suposta autonomia, trabalhadores estão sendo contratados como pessoa jurídica para prestar serviços de forma subordinada, com pessoalidade, não-eventualidade e onerosidade, ou seja, com a presença de todos os requisitos caracterizadores de um vínculo empregatício.
Dessa forma, o que inicialmente era para ser prestação de serviços marcada pela igualdade e pela autonomia se transforma numa verdadeira relação de emprego regida pela CLT.
O entendimento do STF tem deixado muitos operadores do direito do trabalho estupefatos, pois, até o momento, não declarou inconstitucionais os artigos 3º, 9º e 442 da CLT, os quais tratam dos pressupostos da relação da relação de emprego e da nulidade de pleno direito dos atos praticados com objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos da Consolidação de Leis do Trabalho.
Além disso, examinar a presença dos requisitos do
artigo 3º da CLT em qualquer relação de trabalho sempre foi tarefa das instâncias ordinárias da Justiça do Trabalho, não cabendo ao STF esse tipo de análise, pois se trata de matéria de fato.
Contrariando sua própria jurisprudência sumulada (Súmula 636), o STF não apenas tem examinado matéria de fato como também ofensa reflexa à Constituição Federal. Isso porque para se saber a natureza de uma relação jurídica entre prestador e tomador de serviços é indispensável o exame de fatos, de como essa relação se desenvolveu ao longo do tempo (princípio da primazia da realidade), o que não é tarefa do STF.
Na liminar que revogou decisão da Justiça do Trabalho que reconhecera vínculo de emprego entre um diretor de esportes e a Confederação Brasileira de Futebol, o ministro Luiz Roberto Barroso argumenta
serem "lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a tomadora do serviço" (matéria publicada no jornal Valor Econômico em 21/12/2022).
Pergunta que não pode deixar de ser feita: a quem
cabe analisar a prova para saber se há ou não relação de emprego entre o
prestador e tomador de serviços?
Até porque, na matéria em exame, não se tem como afirmar de antemão se em uma relação jurídica estão presentes ou não os elementos configuradores de uma relação de empregatícia previstos no artigo 3º da CLT. Isso tem de ser investigado caso a caso e demanda necessariamente
o reexame de fatos e provas, que é inadmissível nas instâncias extraordinárias, como está expressamente disposto na súmula 279 do próprio STF.
E mais: nas várias decisões proferidas pelo STF, tanto monocráticas quanto as de suas Turmas, os recursos são admitidos sem que haja a indicação expressa da norma constitucional tida por violada quando o vínculo de emprego é reconhecido pela Justiça do Trabalho.
Para admitir o exame de um recurso, o STF sempre exigiu que a contrariedade à Constituição fosse direta, ou seja, a decisão recorrida tinha de atingir os próprios preceitos constitucionais. Do contrário, quando a lesão fosse apenas reflexa (indireta ou oblíqua), atingindo, por
exemplo, a legislação federal, o recurso não seria admitido.
Nesse sentido, o STF sempre rechaçou a alegação de violação aos princípios da legalidade como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário por entender que, ainda que existente, a ofensa seria reflexa ao texto constitucional.
Eis o que dispõe a súmula 636: "Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a
sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida". Por isso, causam surpresa as recentes decisões do STF, tomadas em sede de recurso extraordinário ou em Reclamação, quando suspendem ou reformam decisões sobre vínculo empregatício da Justiça do Trabalho, seja porque não há ofensa direta ao texto da CF, seja porque para se chegar a entendimento diverso o STF teria de reexaminar fatos e provas, o que a natureza extraordinária dessa instância definitivamente não permite.
Não há dúvidas de que com o desenvolvimento econômico e tecnológico surgem normas formas de prestação de serviços. Muitos trabalhadores, inclusive, não querem se vincular de forma subordinada a empresas, preferindo manter sua autonomia e sua liberdade na prestação de serviços. Prestam serviços para quem querem, da forma que querem e no
momento que quiserem. Não há nenhuma ilegalidade nisso.
No entanto, quando assim não ocorre, quando esse mesmo trabalhador, ao invés da autonomia, da liberdade e de uma relação de igualdade, que são características de um contrato civil, está sujeito aos poderes disciplinar e diretivo do tomador desses serviços, não se pode simplesmente fechar os olhos para a realidade porque certamente estaremos diante de uma fraude.
Isso porque em uma relação jurídica o aspecto formal não pode se sobrepor aos fatos. O contrato de trabalho é, por natureza, informal. No direito civil é assim, como também o é nas demais áreas do conhecimento jurídico.
Para que se possa saber a natureza jurídica da prestação do serviço mantida entre o prestador e o tomador, isto é, se se trata de autonomia ou relação subordinada, é necessária a investigação dos fatos. Sem isso, corre-se o risco de se proferir decisão injusta.
Com muita frequência, esses contratos de prestação de serviços supostamente autônomos mascaram verdadeira relação empregatícia na qual o prestador de serviços é, inclusive, punido com advertências e suspensões por não cumprir ordens ou metas estabelecidas pelo tomador dos serviços.
Ainda que se reconheça que há novas formas do trabalhador se vincular à empresa, o regime celetista não foi, ainda, totalmente extinto do mundo jurídico.
Ninguém duvida que essas decisões do STF, relativas a vínculo empregatício, além de inconstitucionais, vão de encontro ao caput do artigo 7º da CF (direitos sociais do trabalhador), fragilizam a classe de
trabalhadores, o movimento sindical e sobretudo aqueles empregados
denominados "hipersuficientes", o maior alvo desse tipo de fraude
("pejotização"), que, pela Lei nº13.467/2017, são os que ganham salário igual ou superior ao equivalente a duas vezes o teto da previdência social (R$ 14.174,44) e possuem escolaridade superior, e que, muitas vezes, ao serem dispensados, a despeito de exercerem suas atividades de forma subordinada, pessoal, não-eventual e onerosa não receberão aviso prévio, férias, 13º salário, FGTS e multa de 40%.
Da mesma forma, não terão acesso a planos de saúde fornecidos pela empresa a seus empregados, aos DSR, ao seguro-desemprego, à participação nos lucros e resultados, a jornadas de trabalho não superiores a oito horas diárias e a 44 horas semanais e às horas extras, bem como aos benefícios previstos nos instrumentos coletivos da sua categoria profissional.
Aproveitando-se dessa brecha, já há instituições bancárias contratando gerentes como pessoas jurídicas, sem vínculo empregatício e sem nenhuma garantia trabalhista (vide Processo nº 0011582-
22.2020.5.15.0044).
Some-se a isso o fato de o STF estar decidindo, nessas ações que envolvem prestação de serviços por meio de pessoa jurídica, que não cabe à Justiça do Trabalho o exame dos vícios de vontade nos contratos de prestação de serviços entre o trabalhador PJ e o tomador de serviços, olvidando-se, todavia, que a competência da Justiça Especializada não se restringe a processar e julgar ações relativas às relações de emprego, mas, também, relação de trabalho, o que é o caso (artigo 114,I da CF).
Causa perplexidade a decisão de que, pelo menos
no caso de motoristas autônomos regidos pela Lei nº 11.442/2007, a Justiça do Trabalho é incompetente para analisar se a relação jurídica entre o motorista e seu contratante-empresa de transportes é ou não de emprego porque, nesses casos, o motorista autônomo que pretenda ver reconhecido o vínculo de emprego, com todos os consectários previstos na CLT, como férias, 13º salário, FGTS e hora extra, entre outros, não pode recorrer a esse ramo especializado do judiciário e terá de buscar a justiça comum estadual para que, se for o caso, um juiz civil analise os requisitos dos arts. 2º e 3º da CLT, entendimento que, data vênia, não encontra respaldo na própria Constituição Federal.
Há normas no texto constitucional que pela sua simplicidade e clareza não necessitam de nenhum esforço hermenêutico para que o intérprete alcance o seu verdadeiro sentido e a sua completa extensão, e uma delas, sem dúvida, é o artigo 114, I da CF.
Em qualquer circunstância, por expressa adjudicação constitucional, apenas à Justiça do Trabalho cabe decidir se uma relação de trabalho é ou não de emprego, ainda que a relação entre o prestador e tomador de serviços esteja precedida de um contrato de natureza civil.
Em suma, esse "novo modelo" de relação trabalhista, além de violar o caput do artigo 7º da CF/88, acarretará mais pobreza, mais insegurança jurídica e mais concentração de renda em um país já marcado pela escorchante desigualdade social.
É a precarização do trabalho com a chancela da Suprema Corte.