OPINIÃO AUTONOMIA DO DF É ANOMALIA FEDERATIVA E FOI ERRO DOS CONSTITUINTES
As lamentáveis cenas de depredação dos prédios dos Três Poderes da República, em nosso triste "8 de Janeiro", como atos terroristas, trouxeram a lume uma anomalia federativa presente na Constituição de 1988: a autonomia política dos municípios.
Não são raros os livros de Direito Constitucional em que o autor em determinado momento critica o fato de os municípios serem entes autônomos na federação brasileira como algo estranho ao federalismo em geral. Porém entendo como injusta: os municípios são parte essencial da construção do federalismo brasileiro e particularizam nosso Estado federal [1]. Uma anomalia mais evidente é a autonomia do Distrito Federal.
Quase todas as federações possuem um Distrito Federal — ou ente equivalente para sediar o poder federal, como uma cidade autônoma. É o exemplo do Distrito de Columbia (Estados Unidos) e a Cidade Autônoma de Buenos Aires (Argentina). Para que serve um Distrito Federal em uma federação? Eminentemente para sediar a União.
A União é o ente federativo que represente a soberania do Estado federal e é seu eixo. Porém a União não tem um território propriamente delimitado, uma vez que o alcance de sua jurisdição é o território nacional. Por isso a sede da União é uma demarcação territorialmente localizada dentro de um Estado federado (ou equivalente federativo como Länder ou províncias) ou entre dois Estados federados (que é justamente o caso de Washington D.C, localizado entre os Estados de Maryland e Virgínia).
A União da federação brasileira tem sua sede há quase 63 anos no Distrito Federal constituído em Brasília. Como amplamente conhecido, Brasília foi fruto de um projeto demofóbico de isolamento do poder da União sob pretexto de desenvolvimento interiorano do Brasil [2].
O Distrito Federal passou se constituir em um perímetro retangular de cerca de 5.700 km² quase encravado no território do estado de Goiás, com pequena fronteira com o estado de Minas Gerais. A mudança foi prevista no artigo 4º do ADCT da Constituição (apesar de ter sido prevista também em Constituições pretéritas) e regulamentada pela Lei nº 2.874, de 19 de setembro de 1956, durante o governo JK. A transferência, conforme determinação da Lei Emival Caiado [3], foi realizada em 21 de abril de 1960.
A nova capital provocou também enormes fluxos migratórios espontâneos, sobretudo provenientes da região Nordeste, para o Planalto Central. Em 10 anos, a população urbana do Distrito Federal teve crescimento de mais de 300% [4]. Parte da nova população, contudo, era formada por servidores públicos federais, cuja migração foi sendo induzida à medida em que os órgãos da União foram sendo transferidos do Rio de Janeiro para Brasília.
O antigo Distrito Federal, correspondente à área da cidade do Rio de Janeiro, passou a constituir o estado da Guanabara, conforme o § 4º do mesmo artigo 4º do ADCT. A Lei nº 3.752, de 14 de abril de 1960 (conhecida também por Lei San Tiago Dantas), detalhou este ditame constitucional com as regras de transição. A sede e capital do novo Estado seria a própria cidade do Rio de Janeiro, e em outubro do mesmo ano estavam previstas as eleições para governador do estado e para a Assembleia Legislativa, que inicialmente teria a função de Constituinte. A antiga Câmara dos Vereadores, eleita em 1958 compôs com os deputados eleitos a Assembleia Legislativa do Estado da Guanabara[5].
O estado da Guanabara 15 anos depois foi vítima da violência federativa da ditadura militar com a fusão forçada com o estado do Rio de Janeiro, o que acarreta problemas até hoje na cidade do Rio de Janeiro, a antiga capital — e que até hoje sedia parte da União sem dela receber compensações, como recebe Brasília.
A primeira tentativa de se conceber a autonomia do Distrito Federal foi com a Emenda Constitucional nº 2, de 3 de julho de 1956, que previu que o prefeito seria eleito por sufrágio direto, ao invés da nomeação pelo presidente da República. Porém, a emenda não teve efeito em tempo hábil. Era previsto que seria aplicável quando o novo presidente fosse eleito (que, para nossa infelicidade, seria Jânio Quadros), mas a Emenda nº 3, de 24 de maio de 1961, retornou à situação da redação original de 1946: o prefeito do Distrito Federal seria nomeado pelo presidente da República, com aprovação do Senado Federal.
A autoritária Constituição de 1967 e a Emenda nº 1 de 1969 mantiveram a normação do prefeito do Distrito Federal pelo presidente da República.
A autonomia do Distrito Federal, como está prevista na Constituição, foi debatida na Constituinte nas audiências públicas da Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios e foi já prevista no anteprojeto desta subcomissão, no artigo 18 — que gerou, após todo o trâmite da Constituinte, o atual § 2º do artigo 32 da Constituição de 1988. No afã democrático do momento — afinal não há federalismo sem democracia — foi dada à sede da União a autonomia política para eleger seu chefe do Poder Executivo.
A Constituição de 1988 é um marco civilizatório no Brasil, mas com algumas imperfeições. Entre tais, um grande erro foi justamente o reconhecimento de autonomia política ao Distrito Federal, sede da União. Diferentemente dos estados brasileiros, o Distrito Federal não possui a historicidade que justificaria a autonomia política. Brasília foi fruto de um projeto de isolamento da União, gestada como uma demarcação que deveria ter como única função sediar o poder federal. Brasília foi fundada para ser a sede da União; não tem a formação social citadina secular que motivasse realmente possuir autonomia política para escolher seu chefe do Executivo, responsável pela segurança da União.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Distrito Federal teve considerável desestabilidade institucional com seus governadores que renunciaram ou foram cassados, ensejando inclusive uma eleição indireta em 2010 após a cassação de José Roberto Arruda e a renúncia do vice-governador Paulo Octávio. E a tentativa de golpe de Estado promovida pelos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro em 8 de janeiro de 2023 foi possível somente pela conivência e inaptidão do governador Ibaneis Rocha, afastado por decisão do ministro Alexandre de Moraes, assim como a provável participação do ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro — e propagador do bolsonarismo, ideologia neofascista que é a motricidade dos atos criminosas que destruíram o patrimônio da União.
O dano ao patrimônio histórico é irremediável. Confiar a segurança da sede da União — e de suas autoridades máximas da República brasileira — à Polícia Militar subordinada a um governador cujo propósito de existência de seu ente federativo é justamente sediar a União foi um infeliz erro de nossa Constituição de 1988 — que entendo ser possível de ser consertado por meio de emenda constitucional, uma vez que a limitação material de proteção à forma federativa não pode ser usado como justificativa plausível para impedir uma reforma que devolva à União o poder de nomeação do chefe do Executivo do Distrito Federal ao presidente da República com a aprovação pelo Senado. Isto não retira a autonomia do Distrito Federal, mas a adequa à sua finalidade na federação brasileira.
[1] Defendo esse pondo de vista em artigo escrito em coautoria com o Prof. André Batalha. Conferir em: LIZIERO, Leonam; ALCÂNTARA, André Luiz Batalha. entre a cooperação e a coerção: como os estímulos institucionais enfraqueceram o sistema federativo brasileiro previsto em 1988. Revista de Direito da Cidade, v. 12, nº 1, p. 341-365, 2017. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/viewFile/40470/33496
[2] Conferir em LYNCH, Christian Edward Cyril. Questão de urgência – o Rio como (2º) Distrito Federal. Insight Inteligência, n. 76, 2017.
[3] Lei nº 3.273, de 1º de outubro de 1957. Seu art. 1º previa: “"Em cumprimento do artigo 4º e seu § 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias será transferida, no dia 21 de abril de 1960, a Capital da União para o novo Distrito Federal já delimitado no planalto central do País".
[4] FERREIRA, Ignez Costa Barbosa; PAVIANI, Aldo. As correntes migratórias para o Distrito Federal. Revista Brasileira de Geografia, v. 35, n. 3, p. 133-60, 1973, p. 134.
[5] Esta foi uma questão levantada na mensagem do Projeto de Lei nº 622, de 1959, de autoria do deputado Eloy Dutra. Conforme o parlamentar, entre os diversos envolvidos pela transformação do antigo Distrito Federal em estado da Guanabara, estava o do mandato dos Vereadores que foram eleitos em outubro de 1958. Se a transferência ocorreria em 21 de abril de 1960, aqueles vereadores teriam um mandato encurtado, uma vez que seria necessária a convocação uma Constituinte estadual para a Guanabara e, para tanto, a realização prévia de eleições parlamentares com tal finalidade. Em consulta do PSD ao Tribunal Regional Eleitoral em 1957, este decidiu que os vereadores eleitos em 3 de outubro de 1958 teriam um mandato tampão, o que gerou alguma reivindicação por parte destes. Conferir em BRASIL. Projeto de Lei nº 622, de 1957. Diário do Congresso Nacional. Capital Federal, ano XIV, n. 93. 14 de julho de 1959, Seção I, p. 4148. Para tanto, o art. 7º, § 1º da Lei nº 3.752/1960 trouxe expressamente o direito de terminarem o mandato: "Os membros da Assembléia Constituinte e os atuais vereadores integrarão, a partir da promulgação da Constituição e na forma que esta estabelecer, a Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara, respeitada a duração dos respectivos mandatos".