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TRIBUNA DA DEFENSORIA DEFENSORIA PÚBLICA: UM CONVITE À CRISE INSTITUCIONAL

Após a publicação do texto Por uma Defensoria (sempre) profanada [1], acabei recebendo retornos bem interessantes. Para além de membros da carreira defensorial, magistrados, professores e acadêmicos acabaram encontrando um convite para a possibilidade de uma vida jurídica profanada. O que, para mim, soou como uma grata surpresa, já que, de uma reflexão institucional crítica, acabara surgindo uma provocação para o ethos jurídico em geral.

Não obstante esse agradecido retorno, na perspectiva original, focando no público dos membros e membras da Defensoria Pública, e potenciais corajosos(as) para se juntar nessa peleja contramajoritária, percebi que, nesse recorte dos feedbacks, muitos tinham a expectativa de imediatas respostas para aquela desconstrução. Não foram poucos que, após lerem e concordarem com as críticas, sentiram um hiato específico quanto às respostas. Pois, se a Defensoria não deveria se encastelar, e evitar o risco de se tornar uma instituição autorreferente, o que poderia ser feito?

De pronto, sem querer frustrar esse grupo de pacientes leitores e leitoras, já esclareço, com a transparência devida, que, nesse texto, ainda não serão apresentadas as decifrações desse enigma. E, assim o faço, não por falta de delineamento das soluções (possíveis tentativas) — que são várias, multifacetadas e complexas, com meandros sensíveis —, mas por compreender que, sequer, o exercício inicial, dessa anamnese institucional, fora devidamente iniciado. Obviamente, nessa coluna, não há objetivo para exaurir o tema. Porém, mesmo um mero exercício de oxigenação na práxis defensorial exige, em respeito à intelectualidade e ao tempo de quem pacientemente lê, uma provocação que não se espraie de maneira rasa e irresponsável.

Se na reflexão anterior, o objetivo fora afastar a Defensoria do universo das deidades jurídicas (e profaná-la) com sua inserção na horizontalidade com os vulneráveis, nessa coluna, a ideia é delinear uma genuína crise de institucionalidade. E, obviamente, tal como na utilização do termo profanar, é fundamental contextualizar de que semântica me utilizo ao, surpreendentemente, como colunista e membro da instituição, desejar a crise da Defensoria Pública.

Do grego krísis e do latim crise [2], o termo, em seu emaranhamento com a história da própria humanidade, assumiu percepções diversas — de cunho médico, político, sociológico e existencial — e, já atualmente, sentidos plurais (separação, julgamento, decisão, momento decisivo, juízo...). Contudo, como é perceptível, em geral, inclusive, provavelmente, para quem lê essa coluna e quem a escreveu, a primeira impressão é sempre negativa, pesarosa e exige uma postura defensiva. Dessa forma, é natural que esforços intelectuais e existenciais costumam ser erigidos para que situações críticas e limiares sejam evitadas. Porém, esse esperado mecanismo de defesa acaba por entabular o fluxo da existência tendenciosa à repetição e a manutenção do status quo — isto é, da continuidade dos mesmos erros e equívocos (até, então, vistos como mera normalidade). Nesse ponto, o seguinte trecho de perscrutação do verbete é esclarecedor:

Sem crise de sentido, o mundo inteiro, nas suas mais diversas dimensões e aspectos, encontra-se desde sempre como 'explicado' — ou sua explicação definitiva consiste precisamente em não ter explicação nenhuma. Em um como em outro caso, o que se tem é uma situação estática, fechada, sufocada em si mesma, sem questionamento algum: uma totalidade fechada de sentido, tal como temos usado essa expressão: sem frestas, sem o respirar de uma temporalidade renovadora para além do maciço e do opaco, do opressivo automático dia a dia. Vida amortecida, talvez semivida [3].

Em sentido complementar, na obra interessante Dicionário do Pensamento Social do Século XX, o verbete foi assim explorado [4]:

As crises decidem se uma coisa perdura ou não. (…) Em toda crise os envolvidos confrontam-se com a questão hamletiana: ser ou não ser. (…) Elas também sempre afetam a autocompreensão e a autodefinição de agentes, sistemas ou esferas, uma vez que sempre afetam sua 'identidade', isto é, uma vida ou situação de vida como um todo.

Como se observa, a semântica utilizada para o convite à crise institucional gravita em torno da acepção enquanto momento decisivo e julgamento. Pois o que se delineia é que, como toda instituição, e como toda composição de membros e membras, não há um único perfil possível. Não existe somente uma filosofia institucional, uma práxis factível. Se assim não o fosse, e existisse a possibilidade de uma retidão constitucional perfeita e tangível, não faria sentido algum as críticas, provocações e o convite a uma autocrítica da entidade e da identidade de quem a compõe. Contudo, a ponderação é direcionada a um lugar estabelecido, vigente, espraiado – ou, pelo menos, por se tratar um cenário invariavelmente dentro da burocracia estatal, uma tendência a esse perfil.

Nesse ponto, é interessante delinear claramente do perigo que se tem alertado e teleologicamente provocado: por estar situada dentro do contexto de poder, em que pese o delineamento constitucional pró-vulnerável, sem autocrítica e posicionamento dialógico e comunicativo com quem deve representar, a Defensoria será arrastada por uma agenda solipsista, limitada e de aparente alinhamento às causas das minorias. Com essa conjuntura problemática, atuações estratégicas em relações a grupos vulneráveis passarão a ser pensados, decididos e escolhidos baseado num conhecimento institucional que alijaria os genuínos protagonistas do processo de empoderamento. Em vez de ser instituição que dá voz aos vulneráveis no sistema de justiça, corre-se o risco de ser mais um instrumento de emudecimento.

Em interessante reflexão, os defensores Jhny Fernandes Giffoni e Marco Aurélio Velloz Guterres já sinalizaram5:

(…) a Defensoria não pode e não deve ser uma ilha onde não há conexão e nenhum elo com o público-alvo de seus serviços, os marginalizados. Deve haver total sintonia entre os marginalizados e o instrumento de superação, senão a enxada despreparada, quebrada, enferrujada ou cega, não terá condições de arar o solo em condições dignas de germinar o empoderamento do seu público.

E, nesse ponto, trazendo suas contribuições pedagógicas e epistemológicas para essa reflexão institucional, Paulo Freire é insubstituível em suas lições (e referência teórica obrigatória para qualquer pessoa que se aproxime da rotina defensorial) [6]:

Comportam-se, assim, como quem não crê no povo, ainda que nele falem. E crer no povo é a condição prévia, indispensável, à mudança revolucionária. Um revolucionário se reconhece mais por esta crença no povo, que o engaja, do que por mil ações sem ela. Àqueles que se comprometem autenticamente com o povo é indispensável que se revejam constantemente. (…) Dizer-se comprometido com a libertação e não ser capaz de comungar com o povo, a quem continua considerando absolutamente ignorante, é um doloroso equívoco.

Portanto, não é possível persistir, numa concepção ingênua, de que a práxis defensorial – tanto no âmbito interno quanto no âmbito externo — não tenha outra origem, em suas escolhas, senão fruto de uma escolha ideológica e eticamente comprometida [7]. Nessas possibilidades, a instituição pode se voltar para si mesmo — focando, exclusivamente, em metas, números e estatísticas, numa lógica atuarial que produz, mas que não gera mudança estrutural — ou, cumprindo a agenda constitucional, direcionar os esforços para o empoderamento dos vulneráveis (caminho em que se busca, de forma concomitante e dialógica, resolver as demandas pontuais e, também, realizar esforços para resolver ou diminuir os cenários de desamparo estatal). Portanto, aqui está o paradoxo do convite à crise institucional da Defensoria Pública: o ensimesmamento institucional implica seu esvaziamento constitucional; e seu esvaziamento institucional (enquanto não-encastelamento e convergências aos vulneráveis) implica o cumprimento do mandato constitucional. Então, em síntese, para a Defensoria, cumprir seu papel perpassa, necessariamente, pelo esvaziamento de qualquer pretensão institucional autocentrada e narcisista.

Mas, para não ficar apenas nessa des-construção, nesse ponto, gostaria de afirmar, utilizando categoria de Boaventura de Sousa Santos, que a umbilical proximidade entre a Defensoria e os grupos vulneráveis é que gera o "aquecimento da razão" [8] defensorial. Pois "o aquecimento da razão é o processo através do qual as ideias e os conceitos continuam a despertar emoções motivadoras, emoções criativas e capacitadoras que reforçam a determinação de lutar e a disponibilidade para correr riscos (…) o aquecimento não dispensa ideias, conceitos e teorias; apenas os transforma em problemas e desafios vitais, experiências concretas de expectativas próximas, seja para se lutar contra elas seja para se lutar por elas" [9]. Portanto, o aquecimento da razão defensorial, ou o corazonar, são os grupos vulneráveis:

Corazonar significa experienciar o infortúnio ou o sofrimento injusto dos outros como se fossem próprios e estar disponível para se aliar à luta contra essa injustiça, ao ponto mesmo de correr riscos. Significa acabar com a passividade e fortalecer o inconformismo perante a injustiça. (…) Corazonar é uma forma amplificada de ser-com, pois faz crescer a reciprocidade e a comunhão. É o processo revitalizador de uma subjetividade que se envolve com as outras, destacando seletivamente aquilo que ajuda a fortalecer a partilha e a ser corresponsável. (…) Corazonar é sempre um exercício de autoaprendizagem, uma vez que a mudança do nosso entendimento de luta acompanha a par e passo a mudança do nosso entendimento de nós mesmos [10].

Portanto, sem qualquer idealismo irresponsável, o convite a esse paroxismo institucional objetiva apenas uma contínua revisitação da entidade e de seus membros e membras sobre as escolhas — jurídicas, sociais, éticas e administrativas —, tentando minorar os impactos do fordismo diário perante a gigantesca demanda. Sem crise, a Defensoria não alcançará a compreensão de porquê tolerara o intolerável [11]; por qual razão suportara o insuportável; as falhas que permitiram que práticas institucionais — ainda não diagnosticadas, nessa anamnesis ('ação de trazer à memória'), por exemplo, como racistas, machistas ou transfóbicas – ainda seriam replicadas na rotina defensorial interna [12]. Sem crise, a Defensoria não permite o desenvolvimento de sua capacidade de dialogar e compreender o universo dos vulneráveis que busca representar.

Assim, nesse campo de poder e organização estatal, enquanto autoridades, os defensores e defensoras públicas, para terem capacidade de mudar algo precisam questionar sobre os limites da própria perspectiva egolátrica. E, para isso, invariavelmente, o processo de aprendizado surgirá por meio das crises nesse contato com o Outro-vulnerável. Sem crises, sem mudanças, apenas somaremos números ao grupo de privilegiados13 sem cumprir o papel constitucional.

 

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[1] Como será notado, as duas reflexões estão interligadas e, mesmo sendo possível a leitura direta da presente coluna, haverá prejuízo claro para compreensão da linha de raciocínio. Então, para melhor entendimento, aconselho a leitura do texto anterior. Vide Magdiel Pacheco Santos. Por uma Defensoria (sempre) profanada. ConJur. Publicada em 15 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-15/magdiel-pacheco-defensoria-profanada.

[2] Antenor Nascentes. Dicionário etimológico resumido. Brasília: Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1966, p. 219; Ricardo Timm de Souza, Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 31; Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 222 e 223; Wiliam Outhwaite; Tom Bottomore (Coord.) (…). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 156-160.

[3] Ricardo Timm de Souza, Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 57/58.

[4] Wiliam Outhwaite; Tom Bottomore (Coord.) (…). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 157.

[5] Johny Fernandes Giffoni; Marco Aurélio Vellozo Guterres. Autonomia e vulnerabilidade: da opressão ao empoderamento. (…) Autonomia & Defensoria Pública (…), Salvador: JusPodivm, 2017, p. 364.

[6] Paulo Freire. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 48.

[7] "Interpretar a lei implica sempre na produção de definições eticamente comprometidas e, por isso, persuasivas" (Luis Alberto Warat. Introdução geral ao Direito: volume I (...). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 33).

[8] [9] Boaventura de Sousa Santos. O fim do império cognitivo (...) Belo Horizonte: Autênicaa Editora, 2019, p. 150 e 152.

[10] Idem, p. 154 e 155.

[11] "A catástrofe, a crise propriamente dita, em toda sua ambiguidade e profundidade, as precárias estrofes desalinhadas que constituem o contemporâneo, é tudo e nada, tudo ou nada: sinaliza o instante de decisão, que não é outro senão aquele no qual a decisão deve ser tomada, uma questão de vida ou morte, pois, em um mundo em que o grande mistério intelectual para qualquer um com um mínimo de sensibilidade humana e intelectual se constitui em entender finalmente como aprendemos a suportar o insuportável, como se fosse suportável (...)". (Ricardo Timm de Souza. Ética como fundamento II (...) Caixas do Sul, RS: Educs, 2016, p. 17).

[12] Para deixar pontos bem práticos desses momentos de crises necessárias, é possível pontuar, em um rápido exercício, no âmbito interno, a evolução administrativa quanto à fixação de políticas internas antirracistas, antimachistas e demais interseccionalidades; aspecto da representatividade e diversidade nas comissões internas e cargos comissionados; a resposta institucional quanto a episódios machistas internos; a atuação da Ouvidoria e Corregedoria quanto a membros e membras sustentarem, em manifestações públicas, pautas contra minorias; remuneração proporcional à equipe de apoio — entre outros possíveis pontos de tensão e crise necessária nesse pensar defensorial. Como é claro, a questão se aproxima do equacionamento do discurso e prática externa com a dinâmica do trabalho interno, em todas as agendas que potencializam a diversidade e a dignidade humana nessa dinâmica orgânica na Defensoria Pública.

[13] "(…) as autoridades que teriam capacidade de mudar algo são precisamente os privilegiados, os autoprivilegiados, que se beneficiam das injustiças de que são tão pródigos, em favor de seus ‘outros’, não totalmente outros" (Rogério Jolins Martins (...). Introdução a Lévinas: pensar a ética no século XXI. São Paulo: Paulus, 2014, p. 38).