OPINIÃO AS RECENTES MUDANÇAS DE PARADIGMAS NO PROCESSO PENAS
O ano de 2022 foi marcado por vários acontecimentos históricos. Apesar da crise econômica e política que afetou todos os países e a dificuldade da superação de dois anos de uma das piores pandemias sanitárias mundiais, no Brasil, a vitória de um candidato a presidente da República democrata nos encheu de esperanças para enfrentarmos os desafios que devemos experimentar no ano de 2023.
Especialmente, quase no fim do ano passado, um julgado nos inspirou a escrever este artigo sobre um dos temas jurídicos atualmente mais importantes do sistema jurídico pátrio e, talvez, um dos mais caros do nosso processo penal. Trata-se de decisão unânime absolutória da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, cujo voto alentador do ministro relator Ribeiro Dantas [1] enfrentou profundamente a tese recorrente do direito de defesa debatida nos tribunais do país, de que a condenação por tráfico de drogas e outras infrações não podem ser fundamentadas exclusivamente na versão dos policiais que efetuaram a prisão em flagrante sobre a ocorrência do delito.
No seu voto, o ministro relator entendeu pela necessidade da corroboração de gravação audiovisual dos fatos pela polícia para ter validade, mesmo quando houvesse outros elementos probatórios trazidos aos autos, tese que é amplamente defendida pela doutrina estrangeira e aplicada pelos tribunais americanos. Ao final do julgamento, prevaleceu na decisão absolutória o fundamento da ausência de provas para a condenação, restando neste particular vencidos os ministros Reynaldo da Fonseca e Ribeiro Dantas.
Esse debate tem gerado uma profunda discussão nas cortes estaduais e no STJ. Inclusive tem se consolidado uma postura garantista deste tribunal para anular os flagrantes obtidos por agentes policiais após ingresso forçado em residência do acusado, com base exclusivamente em denúncia anônima por tráfico de drogas no local. Um desses casos tratava-se de prisão realizada pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, com apreensão prévia de entorpecentes, durante busca pessoal realizada na porta da casa do réu que supostamente teria autorizado o ingresso em seu domicílio [2].
A leitura desses acórdãos desvela a compreensão do papel do Poder Judiciário brasileiro que, em regra, reconhece o valor incontestável da palavra dos policiais nas condenações criminais. A confiança cega dos juízes e tribunais no testemunho policial, enquanto agentes estatais, reveste-se de uma credibilidade absoluta ao revés da descrença do relato apresentado pelo acusado, razão pela qual entendem que incumbiria à defesa o ônus de comprovar sua inocência. A certeza da verdade na narrativa policial é o único meio probatório pela qual os juízes obtêm a fundamentação necessária para punir os acusados, especialmente nos casos de tráfico de drogas.
Desde que o começo do governo do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, em 2019, ampliou-se uma política de (in)segurança pública — também operacionalizada pelos governadores do estado do Rio de Janeiro — marcada pelo enfrentamento e pela radical intolerância por meio da qual tem se consolidado a chamada necropolítica. Tal política se alinha a fracassadas ações de intervenção policial, causando alarmante morticínio de vítimas da letalidade policial.
Segundo o último levantamento do Anuário da Segurança Pública, em 2021, o Brasil teve 47.503 mortes violentas, sendo que 6.145 — quase 13% do total — foram causadas por operações policiais; ou seja, os agentes estatais mataram pelo menos 17 pessoas por dia no país no ano de 2021 [3]. Esses números assustadores apontam para a necessidade de se buscar compreender as causas dessa realidade tão agressiva, que coloca em risco a vida de centenas de inocentes. O morticínio de policial é também consequência desse quadro. Nessa guerra insana de ambos os lados todos são perdedores. Por isso, merece todos os aplausos o entendimento do ministro Ribeiro Dantas, ao exigir a filmagem audiovisual sobre os fatos envolvendo prisão em flagrante delito pela autoridade policial. Essa mudança de paradigma constituiria um instrumento importante para redução de mortes provenientes da letalidade policial e tal realidade não pode ser ignorada pelo Poder Judiciário, como costuma ocorrer habitualmente.
Para além desse cenário, a tortura como método de atuação policial nos autos de resistência e de prisão em flagrante se apresenta como outro dado alarmante em nosso país. Embora seja alegada tal prática pelos acusados, o Poder Judiciário simplesmente a ignora, haja vista que apesar dos relatos de torturas em 2019, 75% das condenações por tráfico de drogas estão amparadas na Súmula 70 do TJ-RJ, que autoriza a condenação tão somente na palavra dos policiais [4]. Não existe um controle estatal para fiscalizar as abordagens policiais no momento da prisão em flagrante. As garantias constitucionais são reiteradamente violadas.
Em sua obra O Povo Brasileiro: a Formação e o Sentido do Brasil [5], o grande antropólogo Darcy Ribeiro descreve como no processo de formação do povo brasileiro se reproduzem as práticas autoritárias e violentas como a tortura, revelando a permanência e as consequências destes ranços dos passados até os dias atuais, no imaginário social das autoridades brasileiras, principalmente nas instituições. Uma sociedade marcada pelas injustiças e desigualdades que defende a punição como remédio para os comportamentos desviantes e os conflitos sociais; e, ainda carrega na alma a marca do torturador de séculos de escravidão. Além de uma ideologia racista e classista, que cumpre silenciosamente a função de apagar as diferenças de classe e fornece aos membros da sociedade tão somente uma percepção aparente do sentimento de "identidade social".
Os mecanismos e sistemas de justiça não deixam de se contaminar por esse discurso ideológico que permite a fabricação de uma história imaginária (ilusão) a qual é assumida como verdadeira, relativizando a percepção de uma realidade belicosa, que opõe de um lado o "cidadão de bem" e do outro extremo o inimigo a ser exterminado, "o perigoso traficante de drogas". Por intermédio dessa visão de mundo tomamos "o falso por verdadeiro, o injusto por justo", ocultando a realidade social e a dominação de classes [6].
Nesse sentido, acolhemos a mesma perspectiva construída por Michael Löwy, de que a polícia — tanto os membros do ministério público, magistrados e advogados — devem ser considerados representantes ideológicos (em nível jurídico) da classe dominante, segunda a qual esses "intelectuais são assimilados por essa classe, se integram a elas, são, de alguma maneira, apêndices dela, mas não representam em si mesmos uma força independente, uma força autônoma, que tenha poder real distinto do poder das classes dominantes" [7].
Bons ventos hão de soprar no horizonte em 2023, trazendo mudanças de paradigmas, a partir do olhar de uma sociedade mais solidária e inclusiva, que acredite na transformação do mundo em toda a sua diversidade, através da construção de um novo tipo de "humanismo revolucionário" [8], visando avançar na luta antirracista da Justiça criminal. Eis o caminho de esperança que venha impactar a vida de milhares de homens e mulheres, pobres, pretos e jovens, os quais se encontram encarcerados pelo sistema penal brasileiro; portanto, recomenda-se que estejamos dispostos a abraçá-lo, a fim de transformar o mundo.
[1] STJ. 5ª Turma, Agravo Regimental em Recurso Especial nº 1.936.393 – RJ (2021/0232070-2). Relator: ministro Ribeiro Dantas, publicado em 08/11/2022.
[2] STJ, 6ª Turma, AgRg no HC 724.231/DF, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 29/03/2022, DJe 01/04/2022.
[3] STJ. 5ª Turma, Agravo Regimental em Recurso Especial nº 1.936.393 – RJ (2021/0232070-2). Relator: ministro Ribeiro Dantas, p. 09, DJe 8/11/2022.
[4] Ibidem, p. 11.
[5] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[6] CHAUÍ, Marilena de Sousa. O que é ideologia? São Paulo: Brasiliense, Coleção: Primeiros Passos; n° 13, 2006.
[7] LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 2010, p. 119-120.
[8] HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2016.