OPINIÃO O RETORNO DO VOTO DE QUALIDADE NO CARF: QUE DEIXE O STF JULGAR
Houve recente edição da Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023, compondo um "pacote de medidas de recuperação fiscal", onde se revoga o artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002 [1], estabelecendo, expressamente, em seu artigo 1º que: "Na hipótese de empate na votação no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o resultado do julgamento será proclamado na forma do disposto no § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972" [2].
Tem-se, assim, o retorno do que se convencionou denominar "voto de qualidade". Equivale dizer: no julgamento de recursos perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), tribunal que tem por função e missão o controle da legalidade, havendo empate, dada a paridade na composição entre conselheiros representantes do Fisco e do contribuinte, os presidentes exercerão a competência de um "duplo voto", ou seja, ao empatar, votará novamente para solucionar o desempate.
A justificativa para este retrocesso seria o fato de que haveria, no modelo anterior, uma perda de arrecadação, na medida em que diversos temas, inclusive, listados em apresentação pelo governo, teriam um posicionamento pacífico em favor do Fisco. Daí porque, como medida política de pura tentativa de arrecadação, contando de antemão com a parcialidade do novo presidente na Câmara Superior ou daqueles que forem nomeados presidentes, haverá doravante julgamento em favor do Fisco para tais temáticas, entre outras.
Uma primeira crítica para tal medida, decorre da busca, mais uma vez, por instrumentos que aumentem a arrecadação, independentemente dos fins, não dando prioridade ao ajuste e maior controle de gastos pelo poder público. Equivale dizer: a cultura do Estado brasileiro não envolve, por regra, reduzir despesas, mas aumentar receitas, enviando a conta a ser paga aos cidadãos em geral, mesmo que constatemos recorde de arrecadação em períodos recentes [3].
Outro aspecto altamente relevante e preocupante acerca do devido processo legal e, sobretudo, a impessoalidade, consiste no fato de que, ao mencionar temas que, em tese, teriam vitórias com a nova sistemática de julgamento, na essência, está de antemão antecipando o resultado deste, estabelecendo uma pressão e vinculação aos conselheiros presidentes de Turmas a votar, quando do desempate, em favor do Fisco, eliminando a autonomia técnica e necessária imparcialidade imposta pela própria Constituição Federal, inclusive, à administração pública.
Vale lembrar que a função do Tribunal Administrativo não é arrecadar e sim exercer um pleno controle de legalidade.
Outro grave equívoco, por sua vez, é a certeza de que os contribuintes, ao sofrerem derrota na fase do processo administrativo fiscal, render-se-ão ao pagamento, mesmo que parcelado, dos supostos créditos tributários. É natural que, um ou outro contribuinte, possa optar por esta alternativa, especialmente, utilizando de medidas temporárias que permitem descontos e utilização de prejuízo fiscal, como ainda de futura transação. Todavia, tratando de um devido processo legal administrativo tido por injusto, onde houve desempate por representante do Fisco sobre a matéria, não há dúvida de que a maior parte dos contribuintes optarão em buscar o direito constitucional previsto no texto constitucional de acionar o Poder Judiciário para apreciar o tema, com a esperança de que os magistrados, por serem essencialmente imparciais e técnicos, não estando hierarquicamente vinculados à administração pública em seus julgamentos, poderão ter posicionamento em sentido diverso aquele exarado na fase administrativa.
Até porque, ao contrário do que afirma o governo federal em sua apresentação, tais temas não estão pacíficos, especialmente, perante o Poder Judiciário, sobretudo, em favor do Fisco federal.
Bem por isso, em contradição às pretensões dos últimos tempos, o que teremos será um possível aumento do contencioso tributário judicial. Isto é, não teremos aumento de arrecadação, mas de litigiosidade em temas tributários, gerando maiores gastos aos contribuintes, como também ao poder público.
Nossas críticas à referida medida não se encerram em tais aspectos, pois, como é de conhecimento, houve um devido processo legislativo perante o Congresso Nacional, onde se optou democraticamente por solucionar as questões fiscais em discussão perante o Carf, quando da existência de empate, em favor dos contribuintes.
Mais que o isso, o próprio governo federal, após aprovação, sancionou referido texto normativo integralmente, acolhendo o proposto pelo artigo 28 da Lei nº 13.988/2020, incluindo o artigo 19-E na Lei nº 10.522/2002.
Juntamente com este fato, não se deve olvidar que, da mesma forma, em recente apreciação do PLP 17/2022, que cuida especialmente do "Código de Defesa do Contribuinte", aprovou-se na Câmara dos Deputados dispositivo exatamente na mesma linha do artigo que se pretende revogar por meio de Medida Provisória.
Ora, sem pretensão de sustentar ser ou não constitucional as opções do legislador democrático brasileiro, o fato incontestável é que tal tema já foi objeto de análise do Congresso Nacional, mais de uma vez, o que nos leva a afirmar que, pela mera troca de comando do governo federal, já editar a excepcional Medida Provisória, com intuito confesso puramente arrecadatório, efetivamente, não contribui para se reconstruir uma relação de cidadania fiscal, pautada pela ética e boa-fé das partes, sendo uma decisão de mau perdedor e que não respeita princípios comezinhos democráticos, tão caros a serem atualmente resguardados de verdade e não no discurso puramente.
Deste modo, apesar de ser até formalmente possível a edição de Medida Provisória, não obstante ter o Congresso Nacional e o próprio Poder Executivo sancionado a matéria, cabe lembrar da excepcionalidade deste veículo normativo e a necessidade de se atentar aos requisitos da relevância e urgência.[4] - [5]
Por fim, nos parece inadequada, com total de desvio de finalidade e até má-fé, a presente Medida Provisória, pois, busca, por via indireta, também impedir a legítima atuação do Supremo Tribunal Federal, uma vez que houve o ajuizamento de 3 (três) Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs n. 6.399, 6.403 e 6.415) com o objetivo exatamente de questionar a constitucionalidade do disposto no art. 19-E da Lei n. 10.522/2002, cujo julgamento já se iniciou[6] e, atualmente, com vistas para o Ministro Nunes Marques.
Sendo assim, nos parece que, a nova tentativa do Governo Federal, por meio da excepcional Medida Provisória, de alterar a legislação para reinstituir o revogado voto de qualidade, deixa a triste mensagem de que o Fisco é um mau perdedor dentro das regras democráticas estabelecidas pelo texto constitucional[7].
Com efeito, a decisão democrática e razoável no momento, à luz inclusive da boa-fé e segurança jurídica, que desejamos seria o Congresso Nacional não aprovar esta Medida Provisória e deixar o Supremo Tribunal Federal dar continuidade ao julgamento já em andamento.
[1] “Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”
[2] “§ 9o Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes. (Incluído pela Lei nº 11.941, de 2009)”.
[3] Arrecadação federal bate recorde e atinge R$ 205,475 bilhões em outubro. Acumulado de janeiro a outubro de 2022 alcançou R$ 1,836 trilhão, registrando o melhor resultado desde 1995 in https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2022/novembro/arrecadacao-federal-bate-recorde-e-atinge-r-205-475-bilhoes-em-outubro#:~:text=No%20acumulado%20de%20janeiro%20a,quanto%20para%20o%20per%C3%ADodo%20acumulado.
[4] “A crescente apropriação institucional do poder de legislar, por parte dos sucessivos presidentes da República, tem despertado graves preocupações de ordem jurídica, em razão do fato de a utilização excessiva das medidas provisórias causar profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. Nada pode justificar a utilização abusiva de medidas provisórias, sob pena de o Executivo, quando ausentes razões constitucionais de urgência, necessidade e relevância material, investir-se, ilegitimamente, na mais relevante função institucional que pertence ao Congresso Nacional, vindo a converter-se, no âmbito da comunidade estatal, em instância hegemônica de poder, afetando, desse modo, com grave prejuízo para o regime das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema de checks and balances, a relação de equilíbrio que necessariamente deve existir entre os Poderes da República. Cabe ao Poder Judiciário, no desempenho das funções que lhe são inerentes, impedir que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culmine por introduzir, no processo institucional brasileiro, em matéria legislativa, verdadeiro cesarismo governamental, provocando, assim, graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes. STF, ADI 2.213 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 4-4-2002, P, DJ de 23-4-2004.
[5] “O que justifica a edição dessa espécie normativa, com força de lei, em nosso direito constitucional, é a existência de um estado de necessidade, que impõe ao poder público a adoção imediata de providências, de caráter legislativo, inalcançáveis segundo as regras ordinárias de legiferação, em face do próprio periculum in mora que fatalmente decorreria do atraso na concretização da prestação legislativa. (...) É inquestionável que as medidas provisórias traduzem, no plano da organização do Estado e na esfera das relações institucionais entre os Poderes Executivo e Legislativo, um instrumento de uso excepcional. A emanação desses atos, pelo presidente da República, configura momentânea derrogação ao princípio constitucional da separação dos Poderes.” STF, ADI 221 MC, rel. min. Moreira Alves, voto do min. Celso de Mello, j. 29-3-1990, P, DJ de 22-10-1993.
[6] 24/03/2022: “Decisão: Após os votos dos Ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, que julgavam improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, pediu vista dos autos o Ministro Nunes Marques. Ficou consignado, nesta assentada, que o Ministro Marco Aurélio (Relator), em voto proferido em sessão virtual de 2 a 12 de abril de 2021, julgava procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade formal do artigo 28 da Lei nº 13.988/2020, mas, se vencido, julgava improcedente o pedido, tendo, portanto, nessa parte do mérito, sido acompanhado pelos Ministros Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. Aguardam os demais Ministros. Presidência do Ministro Luiz Fux. Plenário, 24.3.2022.”
[7] Neste sentido, destacamos também as greves que dificultaram, após aprovação do art. 19-E, da Lei n. 10.522/2002, sua plena aplicabilidade, bem como a Portaria ME Nº 260/2020 restringindo sua amplitude ou mesmo aquelas com tetos ou alçadas para julgamento.