INTERESSE PÚBLICO A AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO MARCO ZERO DE UMA NOVA GESTÃO
Inequívoco o amadurecimento da temática afeta à necessária relação entre Direito e políticas públicas num ordenamento constitucional como o brasileiro, em que se tem uma opção fundante em favor de um Estado — e, por via de consequência, de uma administração pública [1] — finalisticamente orientado. Tradução máxima do reconhecimento dessa conexão se teve na edição da Emenda 109/2021, que erigiu como dever das estruturas da administração pública "realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei".
Vivemos hoje primeiro momento de alternância de poder pela via do sufrágio, havido já sob a égide da referida determinação constitucional — e um componente relevante de sua compreensão parece merecer destaque, tendo em conta em especial as eventuais alternâncias de orientação política havidas por todo o território nacional. Refiro-me especificamente aos termos em que o dever constitucional de avaliação de políticas públicas se ponha em relação às novas gestões que se iniciaram há poucos dias.
É da natureza mesmo da alternância do poder que se empreenda à consequente revisão da orientação política até então vigente; e constituirá desdobramento natural desse processo, a eventual reconfiguração de políticas públicas antes em curso. Duas questões, todavia, restam sugeridas pela instituição expressa do dever constitucional em relação à avaliação desses mesmos programas de ação: 1) se há um dever específico relacionado à avaliação, antecedente lógico da revisão decorrente da alternância democrática de poder; e 2) caso positiva a resposta à primeira indagação, quais sejam os achados suficientes a justificar a reconfiguração de políticas públicas em curso.
Para o enfrentamento desses dois pontos da agenda investigativa que relaciona Direito e políticas públicas, será relevante esclarecer qual seja a concepção adotada em relação à etapa de avaliação: se uma inclinação de teor tecnicista, de simples conformidade entre os resultados de um programa em relação aos objetivos propostos [2]; ou se uma compreensão mais abrangente, alinhada com uma verdadeira sociologia política da administração pública, atenta às transformações nas condições de exercício do poder político e de sua legitimação [3].
A concepção que privilegia a dimensão de resultado, e tem em conta a aptidão da ação pública havida para gerar a entrega de bens ou serviços planejados, propõe relevantes informações sobre a dimensão de execução da política pública. Medição do desempenho governamental soa como ferramenta útil à aferição da eficiência da ação estatal, tanto quando esta seja determinada por uma simples lógica de alocação racional de recursos públicos disponíveis, quanto na hipótese em que a orientação seja a da alocação redistributiva de bens e serviços. Inequívoco o aprendizado potencial desse tipo de iniciativa, eis que é no plano concreto da ação estatal que se poderá aferir equívocos na formulação; a existência de bloqueios fáticos ou institucionais ao programa de ação inicialmente formulado, ou ainda tantos outros incidentes que podem conduzir a um resultado distinto do concebido no plano teórico.
Na segunda compreensão da avaliação de políticas públicas – na qual as variáveis incidentes sobre o problema público e as estratégias eleitas para seu enfrentamento são igualmente consideradas, não só na formulação, mas em toda a implementação e avaliação — amplia-se o objeto de análise para além do (des)acerto das escolhas técnicas empreendidas pelo formulador da política pública. Mais do que uma simples aferição de adequação objetiva entre metas e indicadores, tem-se um verdadeiro exercício de política na avaliação das políticas públicas[4]. Esse juízo, que transcende a simples aferição técnica objetiva do alinhamento entre o planejado e as alterações determinadas pela implementação da política pública permitirá, por sua vez, distintos usos, identificados por Faria como (a) instrumental; (b) conceitual; (c) como instrumento de persuasão; e (d) para o "esclarecimento".
Retomemos então a questão sugerida a este breve ensaio: a avaliação de políticas públicas, no singular momento do marco zero de uma nova gestão governamental, se apresenta como premissa à formulação de decisões de descontinuidade ou reformulação dessa mesma estratégia de enfrentamento de problemas públicos?
A essa primeira indagação, a resposta, na compreensão desta articulista, é de ser inequivocamente positiva, e por várias razões.
Em que pese o resultado do sufrágio indicar uma identidade do eleitorado com uma visão de mundo e de Estado detida pelo vencedor da eleição, dificilmente essa orientação ideológica compreende, em detalhes, quais sejam os termos de políticas públicas a serem conduzidas nas áreas "x" ou "y". Evidentemente, em situações extremas — que alguns dirão vivenciadas no momento — se pode identificar uma dissonância radical entre programas de governo, o que já indica a necessidade do câmbio. Mesmo em situações que tais, todavia, o princípio da eficiência, reforçado agora pelo dever constitucional de desenvolvimento de avaliação de políticas públicas, exige uma aproximação fundada em evidências, que permita "entender como uma política foi feita, destrinchar os seus resultados e amparar tecnicamente as decisões para eliminação, continuação ou ampliação de determinada política pública, privilegiando a análise técnica e uso otimizado dos recursos públicos às muitas necessidades sociais" [5].
Importante frisar que o que se defende é a necessidade da existência de elementos de avaliação que amparem o juízo de reformulação ou descontinuidade. Esses mesmos elementos podem ter sido produzidos inclusive pela equipe do governo que se finda — que tem em seu favor, é sempre relevante se destacar, a presunção de legalidade e veracidade. Inexistentes elementos com um mínimo de atualidade, imponível será o desenvolvimento dessa mesma avaliação de parte dos que chegam, como suporte de validade do juízo técnico a ser manifesto em relação à política pública antes em curso.
Vale ainda dizer que a afirmação de que a avaliação em sentido estrito, identificada como consonância entre planejamento e execução; entre metas e resultados seja necessária, não afasta a possibilidade de se preservar as políticas públicas em curso no que se está chamando de "marco zero", para que se possa desenvolver a avaliação em sentido mais amplo, acima já referida — que, evidentemente, exige mais tempo.
Tem-se então o tema suscitado na segunda questão: quais os achados decorrentes da avaliação de políticas públicas que autorizariam a reconfiguração das estratégias de ação?
Essa é pergunta que não admite resposta em abstrato. É certo que o descumprimento do plano de ação, ou mesmo o inatendimento dos resultados inicialmente previstos, sinalizam a necessidade de uma análise quanto às causas deste outcome — mas não permitem por si só afirmar o dever de reconfiguração da estratégia inicialmente desenhada. As razões para o não atingimento dos objetivos previstos podem ser diversas, e possivelmente serão identificadas com mais precisão, a partir da realização de uma avaliação de escopo mais abrangente, que identifique e pondere externalidade negativas que tenham influído no resultado.
De todo o exposto, o que resulta é que a legitimação democrática que recai sobre o vencedor do pleito, em especial no marco zero de nova gestão, não parece suficiente a autorizar redesenho ou descontinuidade de políticas públicas, sem a precedente informação originária de um exercício, ainda que mais recortado, de avaliação dos programas de ação antes em curso. Tenha-se em conta que mesmo na perspectiva da política, a avaliação pode se apresentar, como já indicado acima, como um relevante elemento de persuasão.
Importante, todavia, tematizar a questão, inclusive para subsidiar a eventual edição da lei reguladora, prevista pelo artigo 37, § 16 CF, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 109. Também neste domínio o Direito se vê chamado a resistir a velhos esquemas compreensivos cuja subsistência no imaginário do jurista leva à má compreensão do fenômeno das políticas públicas. Manifestação clara dessa irradiação das matrizes tradicionais do pensamento jurídico é a sobrevalorização que hoje se empreende no campo do Direito, à chamada avaliação ex ante de políticas públicas — que ecoa na verdade a ideia do processo legislativo ou regulatório, com uma preocupação predominante com o dever-ser.
O ponto principal é que o marco zero a que se refere o título deste ensaio é de uma gestão — mas nunca da administração pública em si, ou de suas estratégias de enfrentamento de problemas públicos. Uma política pública pode ser reconfigurada ou descontinuada por várias razões — mas nunca pela exclusiva circunstância de que ela seja associada a alguém que foi apeado do poder.
[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Moralidade administrativa - do conceito à efetivação. Revista de Direito Administrativo, v. 190, p. 1-44, 1992.
[2] ALA-HARJA, Marjukka; HELGASON, Sigurdur. Em direção às melhores práticas de avaliação. Revista do Serviço Público, v. 51, nº 4, p. 5-60, 2000.
[3] KÜBLER, Daniel e MAILLARD, Jacques de. Analyser les politiques publiques, France: Presses Universitaires de Grenoble, 2009, p. 13.
[4] FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de. A política da avaliação de políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, p. 97-110, 2005.
[5] MOTTA, Fabrício e BONIFÁCIO, Robert. Políticas públicas: o jabuti do bem. Coluna Interesse Público, Conjur, publicado em 1º de abril de 2021, disponível em https://www.conjur.com.br/2021-abr-01/interesse-publico-politicas-publicas-jabuti-bem, acesso em 18 de janeiro de 2023.