Ver mais notícias

ENTRE MITOS E VERDADES SOBRE O CARF, SÓ O DEBATE PERMITIRÁ ARBITRAR A RAZÃO

O debate (ou embate) sobre o retorno do voto de qualidade no Carf (Conselho de Administração de Recursos Fiscais) segue gerando muito calor e pouca luz.

Em 30/1, a Receita Federal divulgou, em forma de slides, o Relatório "Carf — paridade — voto de qualidade. Mitos e verdades" [1], com a finalidade de justificar a retomada integral do voto de qualidade, conforme previsto na Medida Provisória nº 1.160/23.

O relatório faz inferências sobre (1) a paridade do Carf, (2) a imparcialidade do fisco nos julgamentos, e (3) contribuintes que supostamente se beneficiaram da regra de desempate pró-contribuinte vigente a partir da publicação da Lei nº 13.988/20.

Este artigo propõe uma releitura dos dados e informações apresentados, com o objetivo franco de contribuir para o debate de forma republicana. Antes, precisamos destacar duas premissas básicas sobre a formulação de políticas públicas, que nos parecem estar sendo negligenciadas.

A primeira premissa é a de que, quando proposta uma nova política pública, devem ser disponibilizados à sociedade (e ao Congresso Nacional) todos os dados, estudos e informações que a justificam. Desde que anunciada a MP prevendo a retomada do voto de qualidade, contudo, os discursos têm sido gradativamente alterados ou complementados, seja em entrevistas, seja em relatórios como esse que acaba de ser divulgado. Sem subsídios estáveis e confiáveis, como será possível ao Parlamento avaliar a conveniência da mudança proposta? Como poderá a sociedade apresentar, de forma apropriada, suas contribuições aos debates sobre o tema?

Outra premissa que tem sido desconsiderada é a delimitação do objeto: o que a MP propôs foi o retorno do voto de qualidade, uma regra que atribui ao conselheiro representante do fisco o voto de desempate. Grande parte das manifestações — e os slides da Receita confirmam essa tendência —, porém, trata do modelo paritário de composição do Carf. Não é a paridade que está em discussão. Aliás, ela é questão logicamente prejudicial ao voto de qualidade.

Vamos aos slides.

Mito: paridade
O relatório afirma que o contencioso administrativo brasileiro é o único do mundo a ter três instâncias, conselheiros representantes dos contribuintes e, especialmente, composição paritária, cuja extinção teria sido recomendada pelo TCU.

O Brasil se diferencia do resto do mundo em diversos fatores, quase todos inter-relacionados: maior contencioso tributário [2], processos com longa duração [3], baixíssima eficiência da atividade orientadora da administração tributária [4], um dos sistemas tributários mais complexos [5] e mais inseguros do mundo [6]. Tudo isso somado ao modelo de cobrança baseado no lançamento por homologação, cuja "maldição" [7] atribui ao contribuinte o dever de interpretar o emaranhado de normas, recolher por conta própria e aguardar cinco anos para que o fisco avalie se a interpretação foi correta ou não.

Analisar o Carf (e sua composição) fora desse contexto é um equívoco.

O primeiro esclarecimento é que, de fato, os conselheiros são indicados por entidades representantes dos contribuintes. Contudo, são submetidos a um processo de seleção e renovação de mandato controlado pela própria Administração Tributária, no âmbito do Comitê de Acompanhamento, Avaliação e Seleção de Conselheiros (CSC) [8], que divulga os currículos dos candidatos e os critérios de seleção, representando um importante filtro de qualidade e imparcialidade dos julgadores.

Além disso, a afirmação de que nenhum outro país do mundo adota modelo similar ao do Brasil não é verdadeira.

A África do Sul possui um modelo que se aproxima da paridade brasileira, tendo colegiados compostos por um juiz, um contador e um representante do comércio [9]. Na Dinamarca, algumas matérias são apreciadas pelo Vurderingsankenævn (Conselho de Apelação e Avaliação, em tradução livre), integrado também por especialistas indicados por associações representantes de instituições financeiras e imobiliárias [10].

Quanto à suposta orientação de extinção da paridade pelo TCU, os acórdãos proferidos sobre o assunto determinaram que seja avaliada a conveniência de manutenção desse modelo. A partir das informações prestadas pelas unidades de instrução, os ministros do TCU recomendam o encaminhamento da cópia do relatório de auditoria aos órgãos envolvidos, para que "possam realizar os estudos pertinentes e adotar as medidas cabíveis, de maneira informada, dentro das suas esferas de competência" (ministro relator Bruno Dantas, no acórdão 336/2021).

São também nessa linha os votos e as recomendações finais formuladas nos acórdãos 1.076/2016, 2.497/2018 e 1.105/2019, que embasam as considerações sobre paridade na lista de alto risco da administração pública federal divulgada pelo TCU em 2022. Ou seja, o TCU não recomendou a extinção da paridade, mas apenas sua avaliação pelos órgãos envolvidos.

Os eventuais estudos sobre o tema, caso tenham sido elaborados pelos órgãos competentes, ainda não foram divulgados para debate público.

Mito: parcialidade do Fisco
No documento, a Receita informa que 25% das autuações foram derrubadas em primeira instância (DRJ) [11] e que a média histórica das decisões no Carf é de 40% a favor do contribuinte.

Esses dados permitem duas considerações altamente relevantes.

A primeira é que os altos índices de reforma evidenciam um problema na origem do lançamento dos créditos tributários. Ou seja, antes de se avaliar qual a melhor sistemática aplicável aos casos de empate nos julgamentos (sintoma do problema), convém focar o debate em entender por que a Receita, com um quadro de reconhecida qualidade técnica, tem lavrado autos de infração com um alto índice de erro (origem do problema).

Esse diagnóstico permitirá que o governo federal desenhe políticas públicas mais eficientes para assegurar a conformidade tributária e a racionalização do sistema.

A segunda consideração decorre da informação de que o Carf corrige 40% dos casos. Em contraposição a ela, o governo propôs a majoração do valor mínimo de alçada para acesso do contribuinte ao Tribunal de 60 para 1.000 salários mínimos (atualmente, aproximadamente R$ 1,3 milhão).

Se historicamente 40% dos processos julgados pelo Carf têm resolução favorável ao contribuinte, é importante saber qual o impacto dessa majoração nos processos em que as autuações vêm sendo reconhecidas como indevidas. Até mesmo porque, como observado pela própria Receita, "em valores (reais), o percentual é muito maior em favor dos contribuintes".

O que os dados revelam, na realidade, é a importância do Carf no controle de legalidade dos atos administrativos tributários. A conclusão, portanto, deveria ser pelo seu fortalecimento, não pelo seu esvaziamento.

Mito: paridade. Interesse de poucos contribuintes
A Receita usou dados sobre o tipo de resultado dos julgamentos — unanimidade, maioria ou critério de desempate — para afirmar que a paridade "interessa a pouquíssimos contribuintes, com débitos de centenas de milhões ou bilhões de reais", e que a extinção desse modelo, com a presença apenas de conselheiros do fisco, praticamente não repercutiria nos julgamentos.

As premissas indicadas neste slide não levam às conclusões alcançadas pela Receita, por três razões fundamentais.

A primeira delas é que, novamente, o relatório mescla discussões distintas: a adoção ou não de regra de desempate, seja ela qual for, e a paridade na composição do Carf.

Sobre a discussão posta — a regra de desempate —, vale lembrar que, entre 2017 e fevereiro de 2020, "em média 3,9% dos créditos tributários foram julgados por voto de qualidade favoravelmente aos contribuintes e 14,8% ao Fisco" [12]. Assim, ainda que pudéssemos superar a confusão entre paridade e critério de desempate, a conclusão do relatório não se sustentaria.

A segunda razão é que a Receita cria um novo mito ao supor que a quase totalidade dos julgamentos teria o mesmo resultado se o Carf fosse formado apenas por representantes do Fisco. É um exercício impossível e contrafactual prever os resultados dos julgamentos caso o Carf possuísse composição completamente diferente da atual.

A terceira e última razão consiste na impossibilidade de se afirmar, somente com base nos dados divulgados, que os votos de desempate não alcançam as "pessoas físicas, micro, pequenas, médias e a quase totalidade de grandes empresas". Para aprimorar o debate público e compreender a motivação da Receita, os dados que pautaram essa conclusão deveriam ser divulgados em sua integralidade.

Pra que(m) serve o voto de qualidade?
O relatório afirma que o voto de qualidade é destinado a poucos casos de elevado valor e que, em 2022, quando não teria sido aplicado, os empates favoreceram exclusivamente alguns poucos contribuintes.

Contudo, o voto de qualidade não apenas continuou sendo aplicado em 2022 [13], como aparece em percentuais maiores que o de processos julgados com desempate favorável ao contribuinte [14], repetindo a tendência dos anos anteriores.

Indo além, o gráfico que ilustra as afirmações acima traz informações sobre a concentração dos créditos tributários cancelados pelo Carf com base no artigo 19-E, aduzindo que R$ 22,2 bilhões estariam em litígios envolvendo 26 empresas. Não foram divulgados, contudo, os temas desses julgamentos, sua recorrência nas disputas em curso junto ao Carf, e os números de processos julgados e pendentes de apreciação envolvendo tais pessoas jurídicas.

A análise dos dados sem a referida contextualização não permite a adequada avaliação das tendências de julgamentos em casos de empate, tampouco a conclusão de que o voto de qualidade serve a "esses poucos contribuintes, com débitos de centenas de milhões ou bilhões de reais".

Algumas dúvidas adicionais precisam ser respondidas: qual o perfil de conformidade desses contribuintes que litigam? Quais temas têm gerado dúvidas ou divergências ao ponto de, não apenas ensejar o litígio, mas resultar em empate nos julgamentos por órgão qualificado como o Carf? Quais meios foram disponibilizados aos contribuintes para evitar que tais dúvidas ou divergências se tornassem litigiosas? Por que essas discussões não são mapeadas para embasar mudanças no sistema tributário que evitem novos litígios, como feito, por exemplo, na edição da MP nº 795/17, convertida na Lei nº 13.586/17 [15]?

Essas são as questões que, se enfrentadas, trariam ganhos a quem efetivamente interessa e beneficia o debate: a sociedade.

A discussão relevante
A parte final da apresentação elenca as iniciativas federais, com início no final de 2019, voltadas à mudança no paradigma de atuação do fisco e à construção de um novo modelo de relacionamento com os contribuintes, pautado pela cooperação e pelo diálogo.

Na contramão dessas medidas, a Receita sugere, de forma indevida, que algumas poucas empresas, com débitos de milhões e bilhões de reais, teriam sido beneficiadas pela "supressão do voto de qualidade nos dois últimos anos" e seriam as responsáveis por distorções no mercado ao se valerem do contencioso administrativo para adiar o recolhimento de tributos.

Primeiro, a afirmação revela uma visão equivocada do contencioso tributário: ele é uma garantia constitucional (artigo 5º, LIV e LV, da CF) e se presta a solucionar controvérsias entre Estado e pagadores de impostos. É elementar para o Estado Democrático de Direito [16].

Se maus contribuintes se valem do contencioso para "adiar o recolhimento de tributos", deve-se identificá-los e combatê-los com o rigor da lei. Nesse sentido, convém investir na regulamentação dos critérios para a caracterização de contribuintes como devedores contumazes e a imposição de tratamento mais severo àqueles assim enquadrados.

Bons contribuintes, por sua vez, merecem receber tratamento compatível com sua postura de cautela, transparência e cooperação, sendo incentivados a manter seu padrão de conformidade. Curiosamente, a apresentação oculta o fato de que a Receita, de modo elogiável, convidou os maiores grupos econômicos do país para desenhar conjuntamente seu programa de conformidade, o Confia.

A existência de dúvidas e divergências na interpretação da legislação tributária, que acarreta disputas na esfera administrativa, em nada muda esse cenário. Os reiterados empates nos julgamentos, diz-se novamente, são apenas sintomas de uma doença e o retorno do voto de qualidade parece ser um mau remédio para amenizá-lo [17] [18].

O efetivo tratamento do problema — e é nessa direção que o debate deveria estar focado — passa por medidas mais profundas e perenes, voltadas à reestruturação da governança tributária, à correção e ao aprimoramento dos processos de elaboração, interpretação, consolidação e orientação das normas tributárias.


[2] Conforme constatado pelo Insper, o contencioso tributário no país alcançava 75% do PIB em 2019. Disponível em https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/01/Contencioso_tributario_relatorio2020_vf10.pdf, acessado em 31/1/23.

 

[3] De acordo com o Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo (BID), o tempo mediano de tramitação dos processos desde a instauração do litígio até a conclusão do julgamento administrativo é de 19 anos e 4 meses. Disponível em https://abj.org.br/pdf/abj_bid_2022.pdf, acessado em 31/1/23.

[4] A ausência de uma postura orientadora da administração tributária foi constatada no Acórdão nº 1105/2019, do TCU. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/redireciona/acordao-completo/%22ACORDAO-COMPLETO-2347818%22, acessado em 31/1/23.

[5] De acordo com a pesquisa "Tax Complexity Index" (LMU Munich e Paderborn University), dos 69 países estudados em 2020, o Brasil figura na 5ª posição do ranking de complexidade da tributação da renda das pessoas jurídicas. Disponível em https://www.taxcomplexity.org/, acessado em 31/1/23.

[6] Na pesquisa "Measuring corporation tax uncertainty across countries: Evidence from a cross-country survey" (Centre for Business Taxation da Universidade de Oxford), o Brasil foi classificado como o 2º sistema tributário mais inseguro dentre os 21 países analisados. Disponível em: https://oxfordtax.sbs.ox.ac.uk/files/wp16-13pdf, acessado em 31/1/23.

[7] Confira-se o artigo "A 'maldição' do lançamento por homologação", de Eurico de Santi, disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-ago-01/eurico-santi-maldicao-lancamento-homologacao, acessado em 31/1/23.

[8] Ressaltamos que, em nossa avaliação, existem pontos a melhorar na etapa de seleção dos conselheiros, como exposto noartigo “15 propostas para melhorar o processo administrativo fiscal federal”, disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/15-propostas-para-melhorar-o-processo-administrativo-fiscal-federal-02032020, acessado em 31/1/23.

[9] Tax Administration Act No. 28, 2011. Section 118, disponível em: https://www.gov.za/sites/default/files/gcis_document/201409/a282011.pdf, acessado em 30/1/23.

[11] Esse índice supera, segundo a RFB, 50% nos lançamentos eletrônicos.

[13] Conforme as hipóteses definidas pela Portaria ME nº 260/20.

[14] Conforme Dados Abertos do Carf, disponíveis em http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-202212-final.pdf, acessado em 30/1/23.

[15] Reconhecendo o contencioso envolvendo a dedução das despesas com a etapa de desenvolvimento, no campo petrolífero, da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, a MP nº 795/17 foi editada para disciplinar o tema, tendo o Executivo, na Exposição de Motivos, apontado o aumento de litígios administrativos e judiciais, e de insegurança jurídica para as empresas e para o fisco entre as motivações para a mudança legislativa.

[16] Confira-se: "Reforma da renda: um PL com dados desatualizados", disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reforma-da-renda-um-pl-com-dados-desatualizados-30082021, acessado em 31/1/23.

[17] O programa Confia ainda está em fase de elaboração e, portanto, ainda não produz impactos na redução da complexidade, insegurança e litigiosidade do nosso sistema. Ademais, são incipientes os instrumentos de prevenção e resolução de conflitos tributários. A transação foi implementada apenas em 2019 no âmbito federal, não havendo previsão de medidas como mediação, arbitragem e procedimentos de autorregularização.

[18] Como já explorado por Vanessa Canado em https://braziljournal.com/opiniao-o-voto-de-qualidade-e-so-a-ponta-do-iceberg/, acessado em 31/1/23.