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DE BRASÍLIA A KHERSON: QUANTO VALE A ARTE DE UM POVO?

Era uma manhã de outono quando tropas russas cercaram um prédio ucraniano com dezenas de soldados e cinco caminhões táticos. Numa operação militar extremamente coordenada, as forças invasoras sitiaram e saquearam, durante quatro dias, o Museu Regional de Arte de Kherson. O alvo não era dos mais comuns, e tampouco era o comando da operação. Em meio a uma complexa e sangrenta disputa territorial, um batalhão inteiro carregava veículos militares com pinturas sob as ordens e berros de especialistas em arte.

O ataque não foi um movimento isolado. Desde o início da "operação militar especial" de Vladimir Putin, autoridades ucranianas estimam que as forças russas já tenham roubado ou danificado mais de trinta museus espalhados por Kherson, Mariupol e Melitopol, sendo responsáveis pelo desparecimento de (número certamente já desatualizado nesta data) mais de quinze mil peças e artefatos únicos. Trata-se do maior roubo coletivo de arte desde a pilhagem nazista na Segunda Guerra Mundial [1]. Diante de um comando tão bélico e estrategista, não se pode subestimar o objetivo de tais ações.

Alguns meses mais tarde, do outro lado dos mais de dez mil quilômetros que separam a cidade ucraniana da capital brasileira, uma multidão de fanáticos vindo dos mais diversos cantos do Brasil, marchou por Brasília, ocupando a praça dos Três Poderes. Momentos mais tarde, entrou em confronto com a guarda local e invadiu, numa coordenação que presume planejamento, os Palácios do Governo, Justiça e Congresso Nacional.

Dentro dos prédios, os vândalos destruíram símbolos do poder, cadeiras, gabinetes, púlpitos, placas... e obras de arte. Além dos próprios prédios, tombados pelo Iphan desde 2007, um relógio datado do século XVII de Dom João VI, um vitral de Marianne Peretti, uma escultura de Alfredo Ceschiatti, outra de Victor Brecheret, um painel de Athos Bulcão e um mural de Di Cavalcanti foram destruídos para, em muitos casos, além das possibilidades de restauro [2]. Na capital há quase três décadas reconhecida pela Unesco como patrimônio mundial, o terror foi tão direcionado quanto havia sido naquela manhã de outono em Kherson.

O ataque deliberado a obras de arte não é uma tática inovadora. A ameaça ao patrimônio cultural de um povo já foi utilizada como estratégia bélica em diversas ocasiões históricas e, desde 1954, é prática internacionalmente proibida, especialmente em cenários de guerra. A Convenção de Haia para Proteção de Bens Culturais em casos de Conflitos Armados [3], nos presenteia com lampejos capazes de conceber um necessário entendimento da importância da arte e, ao mesmo tempo, elucidar os métodos usados em Kherson e Brasília.

Ao lembrar que "os danos causados aos bens culturais pertencentes a qualquer povo constituem um prejuízo ao patrimônio cultural de toda a humanidade", o diploma internacional fortalece a visão holística da história humana, numa narrativa de socialização das perdas decorrentes da destruição da arte. Ainda que fundamental para a real compreensão da importância de tais bens, o entendimento da dimensão exata do fenômeno que motiva genocidas, golpistas e invasores a dizimar tudo aquilo que compõe a cultura depende da individualização dos povos. Afinal, se inimigos desejam destruir, é porque vale a pena preservar.

Os exemplos se completam. Ucrânia e Brasil da década de 2020 ecoam a mesma tragédia. Ao mirar museus e instituições culturais, o exército russo tenta encurtar a guerra. Trata-se de um ataque àquilo que é mais caro a um povo e, ao mesmo tempo, mais vulnerável: o orgulho, a cultura, a identidade. Putin, como qualquer outro que conhece as tragédias da guerra, sabe que batalhas são vencidas por soldados e armas, mas apenas o orgulho, a cultura e a identidade conseguem manter a chama da resistência acessa tempo o suficiente para ver a vitória.

Na mesma linha, ao esfaquear um mural de Di Cavalcanti, um dos mais importantes modernistas nacionais, celebrado por retratar a brasilidade e seus personagens, por narrar o país que existe em detrimento dos diversos projetos de nação, os golpistas atacavam o orgulho, a cultura e a identidade. Com facas, fogo e ferro, tentavam destruir o que realmente sustenta a democracia brasileira: os símbolos que nos identificam enquanto um povo.

O terror do dia oito de janeiro de 2023 não pode, em qualquer hipótese, ser relativizado. Tampouco pode ser subestimado. Foi daqueles episódios para os quais a história reserva um lugar particular. Uma iconoclastia maligna conduzida com ferramentas que são proibidas até nos mais devastadores conflitos armados. Ainda assim, a tutela do bem jurídico em questão como resposta estatal ainda parece carecer da força necessária para responsabilizar aqueles que atacaram cinco séculos de história numa única tarde. A monetização dos danos é a simplificação do que não se sabe explicar.

Em boa parte, tal falha deriva de uma incompreensão extensa quanto ao valor dos bens culturais e artísticos no Brasil. Negligência institucionalizada, cortes de verbas, incêndios que destroem a memória, desvalorização da história e desumanização dos projetos educacionais são alguns dos ingredientes que contribuem para uma realidade que não se dobra, não se contorce e praticamente não sente com a devida intensidade a violência da destruição artística.

Ao Direito da Arte e do patrimônio cultural cabe a ingrata missão de salvaguardar o bem que poucos enxergam. Vulnerável, mas ainda assim, caro. Negligenciado, mas ainda assim, central. De Brasília a Kherson, a arte ainda é o que mata e o que mantém vivo um povo inteiro.