A NOMEAÇÃO DO "DOGUÍNEO" BEETHOVEN E O "FAMOSO" LEON, O ADVOGATO
Em 1972 Christopher Stone publicou um artigo seminal para o Direito Ambiental. Should Trees Have Standing? Toward Legal Rights for natural objects [1], algo como "Devem as Árvores ter Legitimidade Processual?" fazia um trocadilho com "Standing" ("estar de pé" e, também, "ter legitimidade"). O autor, na parte introdutória advertia que até mesmo uma criança já foi considerada menos que uma pessoa, algo como um objeto ou coisa. A evolução fora tamanha que mesmo antes de serem crianças, enquanto ainda fetos, hoje recebem proteção legal [2]. Até a legitimidade processual das pessoas jurídicas (corporações) era questionável: "Esse ser invisível, intangível e artificial, essa mera entidade legal" — Chief Justice Marshall escreveu sobre a corporação no Bank of the United States v. Deveaux — "um processo poderia ser movido em seu nome"? [3]
Neste artigo não pretendo vaticinar qualquer posição ultrarradical em termos ambientais. O que se fará é a análise de uma boa intenção, sem que o fato seja tratado com as cores quase burlescas dadas na imprensa e os ataques até radicais das redes sociais. O tema específico: a nomeação de um animal, o cãozinho Beethoven Moreira, como membro de uma Comissão da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de Minas Gerais.
A OAB poderia ter "nomeado" o doguíneo Beethoven? Lógico que sim! Ao contrário do que fora divulgado, essa não foi sequer a primeira vez que a nomeação de um animal não-humano ocorrera no Sistema OAB.
Um case de sucesso: Leon, o advogato
É preciso recordar um case — portanto, já existe um precedente de sucesso — quando a OAB do Amapá teve um peculiar funcionário contratado, um advogado com crachá, gravata e tudo. E com ficha cadastral [4]. O famoso Leon, o Advogato [5]. Hoje falecido, Leon teve seu "cargo" assumido pela doutora Themis, Advogata.
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Famoso em vários países, Leon foi muito mais que um pet. Muito além de mascote. Era um verdadeiro embaixador da OAB-AP, para várias causas: da proteção animal às campanhas de conscientização na área de saúde, páscoa solidária ou contra o turismo sexual, ele estava lá. No Instagram tinha mais de 100.000 seguidores. Números de celebridade. O poderoso funcionário da OAB Amapá tinha até ficha cadastral na Seccional. E capacidade postulatória reconhecida, inclusive assiando seus próprios requerimentos [6].
Em 2020, visitei a Florida Bar, a Ordem dos Advogados do estado da Flórida. Estava fazendo um tour pelo lindo prédio histórico quando em várias salas de funcionários vi fotos de um simpático gatinho de gravata. Pensei: "eles têm um Leon" também? Qual não foi a minha surpresa: era o Leon, Advogato da OAB do Amapá. Tinha dezenas de admiradores no local. Reportaram-me que além dos advogados e empregados da Florida Bar, a fama do Leon era enorme naquele estado. Imediatamente mandei a notícia para o doutor Auriney Britto, presidente da seccional amapaense, reportando que o Leon tinha fãs na Florida Bar. Para admiração dos americanos, receberam uma foto do Leon à frente do Selo Oficial da Ordem dos Advogados da Flórida.
Leon é um case de sucesso. E veio espontaneamente, apenas a partir de uma ideia natural da Ordem dos Advogados.
Fazer do limão uma limonada
O caso de Minas teve um impacto significativo. Não se pode negar, a nomeação do "doguíneo" Beethoven Fernandes Moreira fez com que vários temas chegassem aos debates jurídicos e, mais além, ao debate popular.
Seguramente mesmo os comentários mais ferozes nas redes sociais contra o ato de nomeação, focaram na nomenclatura "animal não-humano" ou "filho bichológico", utilizada.
Em breve esses mesmos comentaristas, quando focarem na finalidade — o combate à crueldade contra animais — mudarão de ideia. Mesmo o churrasqueiro mais aficionado não será favorável à crueldade.
Certo é que a compreensão do ato simbólico teria sido muito mais facilitada se — e este é apenas um pitaco, já que esse não é um texto da área de marketing — desde a redação do ato, até mesmo os releases para a imprensa, tivesse sido mais explicitamente focado no combate aos maus-tratos contra animais, e não na “nomenclatura” dada ao Beethoven. Ao tentar impor uma categorização como "animal não-humano" e "filho bichológico" o documento publicado — mesmo informalmente — abriu o debate sobre o tema. E o resultado foi negativo (temporariamente).
Isso recorda a década de 1980 quando as leis ambientais começaram a ser aplicadas mais fortemente. Prenderam um sertanejo que caçou uma ave para dar de comer aos filhos. A notícia foi parar na imprensa nacional. Do dia para a noite a noção de "fiscalização ambiental" passou a ser vista com suspeita.
Animais: pessoas, propriedades ou pets?
Se a intenção da comissão fora estabelecer um debate sobre a condição jurídica de um animal, não parece que a peça divulgada tenha colhido uma visibilidade positiva com o público. A visão negativa, ou folclórica do caso, tem sido a média das leituras de comentários em redes sociais, ou comentários que se seguem às notícias jornalísticas.
Ocorre que o debate é altamente relevante. Pode-se discordar do ato, mas, não se pode dizer que não mereça debate a condição animal. Se o debate pode ser melhor realizado, isso é outra questão.
O tema sobre o status dos animais não é recente. Em 2006 "People, Property, or Pets? (New Directions in the Human-Animal Bond)" [7] já levantava a questão. Trazia posições esclarecedoras, até mesmo para quem — também equivocadamente — possa acreditar que a condição jurídica dos animais seja apenas "moda" de algum hippie. Envolve questões filosóficas, legais e mesmo biomédicas de alta indagação.
People, Property, or Pets? (New Directions in the Human-Animal Bond), livro organizado por Marc Hauser, Fiery Cushman e Matthew Kamen, discutia se os animais são "pessoas", "propriedades" ou "pets". Um quadro e um cão podem ser propriedades; ambos são abrangidos pelos direitos de propriedade. Mas um cão, o melhor amigo do homem, com emoções, deve ser abrangido pela mesma categoria que um quadro? Pode a lei ser tão insensível? São questões levantadas na obra.
Um dos autores com capítulo no livro acima, Bernard Rollin, publicou em outro texto de 2008, Animal Ethics and the Law [8], tratando especificamente do tema "ética para o tratamento dos animais".
“[...] ao preparar meu testemunho perante o Congresso em 1982 em defesa das leis que determinam o controle da dor e do sofrimento em animais de laboratório, encontrei em uma pesquisa bibliográfica apenas dois artigos sobre controle da dor, um indicador revelador do fracasso da comunidade de pesquisa em praticar o controle da dor . Hoje existem algo entre 5.000 e 10.000 desses artigos, e a prática do controle da dor tem aumentado exponencialmente, tudo como resultado de um mandato legislativo."
Rollin leciona que em termos históricos tanto as leis que protegem os animais quanto a ética social que as informa eram minimalistas. Proibiram essencialmente a "negligência ultrajante e deliberada, intencional, sádica, desviante, extraordinária ou crueldade desnecessária não essencial para ministrar às necessidades do homem" [9] Uma ética enraizada na Bíblia e na Idade Média. Recorda que São Tomás de Aquino questionava a crueldade contra os animais, pensamento que pode ter influenciado por volta de 1800, as leis anti-crueldade que começavam a ser codificadas nos sistemas legais da maioria das sociedades ocidentais [10].
Discutir o status animal envolve algo muito profundo. Vide o case de sucesso já referido: Leon, o Advogato. O querido gatinho adotado pela OAB Amapá, seria um pet, um mascote, ou tinha outro status? Um tratamento de "animal não-humano", a merecer um status especial. Ainda que essa nomenclatura não tenha sido imposta. O status do Leon, como verdadeiro embaixador da seccional veio com naturalidade.
Acredito que o enorme sucesso de Leon se deva a dois fatores: primeiro, verdadeiramente excedia à condição de simples pet, de simples mascote; e segundo, a OAB-Amapá fez isso tão "naturalmente", que não gerou controvérsia.
Limonada
O caso avaliado teve um impacto significativo. Não se pode negar, a nomeação do Beethoven Fernandes Moreira fez com que vários temas chegassem aos debates jurídicos e, mais além, virou uma questão popular. Cabe fazer da polêmica um caminho para o aperfeiçoamento. Seja a respeito do combate aos maus tratos contra animais — um tema que congrega a todos — ao outro tema mais complexo, que seria o status a ser empregado aos animais.
E, sim, o sistema da Ordem dos Advogados do Brasil, desde a OAB Nacional às seccionais, tem atribuição para tanto, como decorre da Lei 8.906:
Art. 44. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade:
I - defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;
II - promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.
Não é função única da OAB — seja o Conselho Federal os das Seccionais — a representação da advocacia. Ainda que tal função seja primordial, não se pode esquecer que a advocacia é uma profissão essencial para a sustentação da ordem jurídica.
Conclusão
Em conclusão, o debate a respeito de dois temas está posto. Um mais complexo — a categoria de personalidade jurídica a ser emprestada aos animais — e outro, até mais simples e de apelo popular, mas que ficou obliterado, que é o combate aos maus tratos animais. Esse último de uma importância ainda de grande emergência.
A Ordem dos Advogados tanto pode, quanto deve adentrar no debate. Entrar de forma plural, ouvindo todos os interesses envolvidos e, talvez, escoimar os extremos, compondo uma compreensão mediana que, ao final e ao cabo, possa avançar na proteção animal.
Aquela postagem da Comissão de Direito Animal da OAB-MG, ainda que de maneira inesperada, poderá trazer muita luz a um debate ainda restrito a círculos acadêmicos. Um debate que deveria ser mais popular.
Por fim, o presente texto segue como singelíssima contribuição, e confessada admiração pelos colaboradores ou diretores não-humanos do sistema OAB:
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Se esqueci de algum, por favor, perdoem-me. E enviem os casos para que possa atualizar o texto.
*este texto é uma homenagem póstuma a Leon, o Advogato
[1] Christopher D. Stone. Should Trees Have Standing? Toward Legal Rights for natural objects. Southern California Law Review. N. 45. 1972. Pp. 450-501
[2] Stone (1972), p. 450: "And even within the· family, persons we presently regard as the· natural holders of at least some rights had none. Take, for example, children". Tradução nossa: "E mesmo dentro da família, pessoas que atualmente consideramos como titulares naturais de pelo menos alguns direitos não tinha nenhum. Tomemos, por exemplo, crianças".
[3] Stone (1972), p. 452-3. [tradução nossa]
[7] People, Property, or Pets? (New Directions in the Human-Animal Bond). Marc Hauser, Fiery Cushman e Matthew Kamen (Org.). Purdue University Press. January 30, 2006.
[8] Bernard Rollin, Animal Ethics and the Law, 106 Mich. L. Rev. First Impressions 143 (2008).
Available at: https://repository.law.umich.edu/mlr_fi/vol106/iss1/2
[9] Rollin (2008).
[10] Rollin (2008).