Ver mais notícias

SUPREMA CORTE DOS EUA VAI DEFINIR LIMITE ENTRE AMEAÇA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A Suprema Corte dos EUA vai fazer, em abril, a primeira audiência de um caso em que terá, mais uma vez, a oportunidade de estabelecer a distinção entre o que é ameaça criminosa e o que é liberdade de expressão.

Em outras oportunidades, a corte decidiu apenas se os casos em julgamento eram uma coisa ou outra, mas se esquivou de estabelecer uma jurisprudência para orientar os operadores de Direito nessa fronteira nebulosa.

No processo Counterman v. Colorado, a corte também terá de prestar um esclarecimento sobre o ônus da prova que cabe ao promotor, quando denuncia uma pessoa por ameaça criminosa.

A corte deve decidir: 1) se o promotor deve provar que o réu teve a intenção clara, com a ameaça, de causar dano a alguém; ou 2) se basta ao promotor demonstrar que uma pessoa pode, razoavelmente, interpretar as ações do réu como uma ameaça de causar dano.

A decisão desse caso é importante, segundo site New Republic, porque atualmente é muito fácil para os americanos ameaçarem não só uns aos outros, mas também mesários e autoridades eleitorais, agentes do FBI, membros do Congresso e até mesmo ministros da Suprema Corte.

O autor da ação em julgamento é o réu Billy Counterman, que usou múltiplas contas do Facebook para mandar mensagens hostis, algumas ameaçadoras, algumas com palavrões, a um músico residente no estado do Colorado, nos EUA.

A vítima, que não respondeu às mensagens e bloqueou Counterman múltiplas vezes, finalmente contatou a polícia. Promotores do Colorado acusaram o réu de violar a lei estadual que condena o stalking.

A lei do Colorado define o criminoso, em caso de stalking, como alguém que "repetidamente segue, aborda, contata, coloca sob vigilância ou faz qualquer forma de comunicação com alguém, de uma maneira que leve uma pessoa razoável a sofrer um sério dano emocional".

De acordo com decisões das cortes do Colorado, os promotores não precisam provar que o réu teve a intenção de ameaçar uma pessoa. Basta mostrar que uma pessoa razoável entendeu as declarações como ameaças, o que é muito mais fácil de demonstrar em um julgamento.

O veredicto do júri, no julgamento de Counterman, foi o de culpado. Condenado, ele foi sentenciado a quatro anos e meio de prisão. Em grau de recurso, ele alegou que a condenação violou seu direito à liberdade de expressão, garantida pela Primeira Emenda da Constituição os EUA.

Doutrina da true threat
No recurso, os advogados de Counterman alegam que, para o réu ser condenado, suas palavras têm de se qualificar como "true threat" ("ameaça real") — a terminologia jurídica para ameaça criminosa. Isto é, os promotores têm de provar que ele teve a intenção de ameaçar alguém, de acordo com a decisão da Suprema Corte em Virginia v. Black, de 2003, que derrubou uma lei do estado de Virgínia que criminalizou a queima de cruzes.

Nessa decisão, a corte estabeleceu que true threat "abrange declarações em que uma pessoa comunica, poque quer, uma expressão séria de intenção de cometer um ato de violência ilegal". O site The First Amendment Encyclopedia tem uma explicação mais ampla:

"No linguajar jurídico, true threat é uma declaração que visa amedrontar ou intimidar uma ou mais pessoas específicas, levando-as a acreditar que lhes serão causados sérios danos pelo autor da mensagem ou por alguém sob suas ordens. True threats constituem uma categoria de fala – como obscenidade, pornografia infantil, palavras belicosas e promessa de uma ação ilegal iminente."

Mens rea
Os advogados do réu argumentaram, em sua petição, que não se pode encarcerar alguém apenas por fazer, negligentemente, um mau julgamento sobre como outras pessoas vão entender suas comunicações. E citaram as palavras de ex-ministros, para os quais "a doutrina da Primeira Emenda, em muitos contextos, impõe exigência de mens rea".

Traduzida literalmente como "mente culpada", essa expressão se refere, mais especificamente, à intenção criminosa — ou a um estado mental legalmente requerido para se condenar um réu por um crime em particular. Os promotores devem provar, acima de dúvida razoável, que o réu cometeu o crime com um estado mental de culpa, segundo o site New Republic.com.

O Legal Information Institute tem uma definição mais detalhada: "O Código Penal reconhece quatro níveis diferentes de mens rea: intenção (ou propósito), conhecimento, imprudência (ou temeridade) e negligência". E explica como cada um desses conceitos é entendido nos EUA:

  • Intenção: Uma pessoa age intencionalmente se o faz com a intenção de causar um certo resultado. Em outras palavras, o réu age com a intenção de — ou esperando que — sua ação irá produzir certo resultado.
  • Conhecimento: Uma pessoa age sabendo que sua conduta irá resultar em certas consequências. Em outras palavras, uma pessoa age sabendo que, na prática, sua ação irácausar um resultado específico.
  • Imprudência (recklessness): uma pessoa age imprudentemente se está consciente de que há um risco substancial de que um certo resultado irá ocorrer como consequência de sua ação e age assim mesmo. O risco deve ser substancial o suficiente, de forma que a ação represente um desvio grave da atitude de uma pessoa responsável.
  • Negligência: Uma pessoa age negligentemente se ela não está, mas deveria estar consciente de que há um risco substancial e injustificável de que sua ação terá uma certa consequência.
  • Diferença entre imprudência e negligência: Apesar de o nível de risco ser semelhante nos dois casos, a diferença entre as duas coisas é a de que o imprudente está consciente de seus atos, enquanto o negligente não está consciente dos riscos envolvidos em suas ações, embora deveria estar.

O estado do Colorado, por sua vez, pede à corte que mantenha o status quo. E enfatiza o impacto mais amplo que as ameaças podem exercer sobre as pessoas, por lhes causar medo e dano emocional, independentemente do que o autor da ação tenha em mente. E isso coloca tais ameaças fora do escopo das proteções da Primeira Emenda.

"Uma declaração que expressa uma intenção séria de causar dano não é uma declaração que estimula a conversação; nem é uma declaração que o ouvinte possa significativamente responder ou que possa resultar em uma troca de ideias. Ao contrário, por medo de violência, ela bloqueia a troca de ideias ou a conversação", diz o estado em sua resposta.