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COMO RESOLVER A DICOTOMIA MENS LEGIS/MENS LEGISLATORIS?

Ponto de suma importância a quem objetiva discorrer sobre a Hermenêutica Jurídica é entendermos as nuances decorrentes da dicotomia entre mens legislatoris e mens legis.

Tal entendimento tem o condão de alterar, diametralmente, o entendimento do julgador, impactando diretamente no resultado dos julgados, motivo pelo qual assentada está a importância desse ponto para o fim que se propõe.

Conforme exposição de Tércio Sampaio Ferraz Jr [1], estes dois grupos podem ser classificados como subjetivistas e objetivistas, respectivamente.

Aqueles que defendem que o entendimento motriz da interpretação deve ser a mens legislatoris, assim o fazem com fulcro na ideia de que ao se conseguir identificar a vontade do legislador seria possível alcançar o sentido da lei. Tal construção tomou forma, principalmente, com a "Jurisprudência dos Conceitos", na Alemanha. Assim, a baliza interpretativa dos subjetivistas é a de que não se pode desdenhar o processo cognitivo-construtor das leis (principalmente as justificativas, discussões e premissas elaboradas nas respectivas Casas Legiferantes), sendo suas bases e fundamentos indispensáveis para o correto entendimento do sentido da lei.

Os objetivistas, que ganharam forma com a "Jurisprudência dos Interesses", também na Alemanha, arrazoam, por outro lado, que a alcunha "vontade do legislador" não passa de ficção, visto que a pluralidade de congressistas impede a personificação de "um legislador", do qual a vontade deveria ser considerada. Ademais, sob o prisma formal, aduzem que o que se chama de "vontade do legislador" é mera competência legal, já que a forma da lei deve ser aquela prevista no próprio ordenamento jurídico [2].

Além dos argumentos da vontade e formal, há ainda os argumentos da confiança e da integração. Conforme o primeiro, o intérprete deve fomentar a confiança nas palavras do texto normativo, as quais devem ser inteligíveis per si. Já para o segundo, deve-se contemplar a contínua mutação das relações sociais, de modo a se validar a criação jurisprudencial do direito [3], cujo fundamento é a mens legis, instituto mais maleável e adaptável às mudanças preconizadas pela dinamicidade social.

A reação dos subjetivistas é sem embargo. Para estes, recorrer à interpretação histórica e às discussões que construíram a lei é imprescindível, máxime pela impossibilidade de se ignorar o legislador originário. Outrossim, afirmam que o sistema sugerido pelos objetivistas, na verdade, criaria inusitado subjetivismo, alçando o intérprete não somente à estatura de mais "sábio" que o legislador, mas também mais "sábio" que a própria lei. Ademais, criar-se-ia perigoso desvirtuamento da segurança jurídica, visto que todos ficariam à mercê do intérprete [4].

Por outro lado, citado por Eros Grau, Carlos Maximiliano aduz que:

"A vontade do legislador não será a da maioria dos que tomam parte na votação da norma positiva; porque bem poucos se informam, com antecedência, dos termos do projeto em debate; portanto não podem querer o que não conhecem. Quando muito, desejam o principal: por exemplo, abaixar ou elevar um imposto, cominar ou abolir uma pena. Às vezes, nem isso; no momento dos sufrágios, perguntam do que se trata, ou acompanham, indiferentes, os leaders, que por vez prestigiam apenas o voto de determinados membros da Comissão Permanente que emitiu parecer sobre o projeto. Logo, em última análise, a vontade do legislador é a da minoria; talvez de uma elite intelectual, dos componentes, que figuram nas assembleias políticas em menor número sempre" [5].

Maximiliano reduz a alcunha "vontade do legislador" como a vontade de cada pessoa física componente do Parlamento, o que, a meu ver, não se coaduna com a significância holística da expressão. Deve-se compreender, ao se falar em "vontade do legislador", como a expressão motriz social-democrática que impulsiona o Parlamento à execução de alterações legislativas.

Diversas leis são alteradas a partir de determinado contexto social, a partir de um clamor ou anseio da sociedade; desta feita, não se pode simplesmente desconsiderar todos os fatores sociais-democráticos que impulsionaram o Parlamento a editar leis, como se um filho, ao ter seu cordão umbilical cortado quando em seu nascimento, deixasse de ser filho daquela que lhe deu à luz.

A celeuma, como sói ocorrer, se dá como se estivéssemos diante de verdadeiro "cabo-de-guerra", onde em uma extremidade está o Poder Legislativo (dando eco à voz da vontade do legislador), e na outra o Poder Judiciário (defendendo a vontade da lei, afinal, maior poder e liberdade teria aquele que interpreta e decide). A discussão de tão importante método interpretativo se mostra anêmica e pobre se o cerne argumentativo foi a mantença de poder pelo Legislativo ou Judiciário.

Ao partirmos do dínamo democrático, do qual todo poder emana do povo, a vontade deste povo, vivificada por seus representantes ou mesmo pelas demandas da sociedade junto a estes, não pode ser desprezada, ou mesmo mitigada, dando à lei vontade absoluta, a despeito dos fatores que influenciaram seu nascimento. Entendo que não há vinculação automática entre o intérprete e os motivos motores da edição da lei; todavia, não há, de igual modo, desprendimento absoluto daquele a estes.

Desta feita, penso que se deve aferir se aqueles motivos fundantes ainda persistem no seio da Sociedade (aqueles que impulsionaram e fundamentaram a edição da lei); caso a resposta seja positiva, devem ser considerados; caso seja negativa, deve-se aplicar a lei em seu caráter dinâmico e equitativo.

Eros Grau, ao citar Gadamer, apregoa:

O jurista sempre se refere à lei em si mesma. Mas seu conteúdo normativo há de ser determinado em face do caso ao qual ela deve ser aplicada. Para alcançar o conhecimento exato desse conteúdo normativo é necessário recorrer ao conhecimento histórico do sentido originário; por isso, o intérprete do direito há de considerar a situação histórica conferida à lei pelo ato legislativo. Não pode ele, no entanto, sujeitar-se, por exemplo, aos debates travados no Parlamento em torno da intenção dos que elaboraram a lei. Pelo contrário, está obrigado a reconhecer que as circunstâncias sofreram alterações e, consequentemente, a determinar em novos termos a função normativa da lei [6].

Reitero, portanto, que o jurista, de fato, não está vinculado aos motivos motores da edição das leis à época em que foram editadas, naquilo em que tais motivos tenham sido superados ou não existam mais. Por outro lado, não se deve pura e simplesmente desconsiderar os fatores sociais que ensejaram a edição de tal norma, tratando-a, após sua edição, como um ser individual, desprendido de qualquer teleologia que lhe fundamente. Conquanto não deva vinculação automática, deve-se eliminar os abismos temporais (existentes entre o contexto da época e o atual), tomando mão da exegese, considerando na interpretação presente aqueles motivos de outrora ainda subsistentes no tempo atual.

Assim, superando a dicotomia mens legislatoris/mens legis, que, na ótica do poder, se traduz pelo dualismo Poder Legislativo/Poder Judiciário, devemos atentar para a motriz geradora do poder, ou seja, o povo. Repito: o povo é o centro do poder ao se considerar os motivos fundantes de outrora e ainda existentes no presente como fatores a serem aplicados na interpretação da lei, bem como continua sendo o centro quando é a causa dos fatores que conferem dinamicidade ao manejo do direito, quando superadas as razões sociais-democráticas fundantes da lei.

Penso que, destarte, o povo (detentor do poder) é prestigiado tanto no passado - povo do passado — (mens legislatoris), quanto no presente — povo do presente — (mens legis), como no futuro — povo do futuro —, visto que, neste último aspecto, se garante a centralidade do povo como motor teleológico de eventuais ajustes interpretativos realizados pelos intérpretes da lei.

 

[1] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2003. p. 266.

[2] Ibid., p. 267.

[3] Ibid., p. 267.

[4] Ibid., p. 267-268.

[5] MAXIMILIANO. p. 33-51 apud GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a Interpretação / Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 116.

[6] Gadamer. p. 388-390 apud GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a Interpretação / Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003., p. 110-111.