TRANSFERÊNCIA DE PENA ENTRE ITÁLIA E BRASIL: A COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
Está em voga e pode ser julgada a qualquer momento a possibilidade de execução, no Brasil, de pena transitada em julgado no estrangeiro, mais especificamente, na Itália.
De início, é indispensável apresentar que trata-se, o caso, de crime de estupro praticado contra uma mulher, por diversos homens, o que é, ao mesmo tempo, um fato grotesco e que se repudia veementemente. No entanto, é preciso advertir que este artigo se predispõe a abordar, tão somente, nos termos da técnica jurídica, a possibilidade de transferência de execução de pena da Itália para o Brasil.
Como já é de conhecimento público, trata-se do caso do jogador de futebol Robinho, que foi processado, julgado e condenado, com trânsito em julgado na Itália, pela prática do delito de estupro. No entanto, no momento em que o procedimento transitou em julgado e a execução da sua pena privativa de liberdade fora determinada pelo país europeu, o condenado já se encontrava em território brasileiro. Desse modo, as autoridades italianas solicitaram ao Brasil a extradição do condenado, para que lá cumprisse a pena. No entanto, o Brasil, como assim determina a Constituição brasileira em seu artigo 5º, inciso LI, negou a extradição pelo motivo do referido ser brasileiro nato [1].
Com a negativa, o país europeu solicitou, então, a transferência da execução da pena, ou seja, requereu que a sentença italiana fosse homologada pelo Estado brasileiro e, assim, fosse determinada a execução de sua pena, o que, apesar da determinação da apreensão do passaporte do jogador, ainda não foi apreciado pelo Superior Tribunal de justiça.
Desde o trânsito em julgado dessa sentença na Itália, diversos juristas têm se manifestado sobre a possibilidade jurídica ou não dessa transferência de execução de pena, havendo duas posições possíveis: a primeira afirma que é possível a homologação da sentença estrangeira e a segunda afirma que não é possível a transferência de pena, à qual esta autora se alinha.
Entende-se que o processo penal deve se ater aos seus princípios domésticos e, sobretudo, aos princípios do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Como se sabe, o Processo Penal é um processo de garantias, um procedimento que há muito vem sendo aperfeiçoado para sustentar a estrutura democrática do Estado, na busca de se afastar dos Estados ditatoriais e inquisitivos de outrora.
Desse modo, explica-se: o caso envolve não somente a simples aplicação do Processo Penal e do Direito Penal brasileiro, mas a conjunção de normas diversas, pois, pedido de transferência de pena é modo de cooperação jurídica internacional em matéria penal, por essa razão, não há que se falar em aplicação do artigo 15 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), mas, sim, pelo princípio da especialidade, primordialmente, da Lei de Migração, Lei nº 13.445/2017, que trata especificamente deste modelo de cooperação jurídica.
Por isso, a reposta jurídica primordial para a questão está no artigo 100 da norma supramencionada, que explicita que "nas hipóteses em que couber solicitação de extradição executória, a autoridade competente poderá solicitar ou autorizar a transferência de execução da pena, desde que observado o princípio do non bis in idem". No caso em tela, como já decidido pelo Judiciário brasileiro, não cabe a extradição, portanto, transparece ser simplória a explicação da corrente à qual a autora se coaduna: pelo princípio da legalidade estrita, o legislador brasileiro entendeu que sua política externa, explicitada através do seu modelo de cooperação jurídica na modalidade de transferência, seria a de não extraditar seus brasileiros natos, e, de mesmo modo, de não autorizar a homologação de sentença penal estrangeira nos casos em desacordo com esta decisão de política externa, pois sim, cooperação jurídica internacional é uma escolha de sinalização de posicionamento internacional do país.
Há, no entanto, decisões do Superior Tribunal de Justiça em sentido diverso, contudo, tratou, o caso, de solicitação de transferência realizada por Portugal, país que com este o Brasil possui tratado de cooperação jurídica internacional em que esta modalidade é permitida (artigo 64), Decreto nº 3.927/2001 [ii], sendo assim, novamente, pelas normas dos artigos 29 [3], 30 e 31 da Convenção de Viena — ratificada pelo Brasil — e pelo princípio da especialidade, acertada foi, naquele caso, o decisório do Tribunal Superior. No entanto, devem ser julgados de forma diferente os casos italianos.
O Brasil também possui tratado de cooperação jurídica com a Itália, o Decreto nº 862/1993, todavia, em seu artigo 1, inciso 3, este é taxativo no sentido de que o referido "[...] não compreenderá a execução de medidas restritivas da liberdade pessoal nem a execução de condenações", portanto, nesses casos a norma a ser aplicada deve ser a regra geral do artigo 100 da Lei de Migrações, o que não significa impunidade, pois, conforme já aduzido pelo eminente professor Valério Mazzuoli, o Estado brasileiro pode, se assim entender, utilizar-se de provas emprestadas e reiniciar o processamento penal contra o jogador e, se assim for, determinar a execução de sua pena, se também condenado for.
Afirma-se que o Brasil ratificou normas internacionais de proteção aos direitos das mulheres, como a Convenção de Belém do Pará, em âmbito da Organização dos Estado Americanos, assim como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, e que, apesar disso, já foi condenado pela Corte Interamericana no caso Márcia Barbosa de Souza vs Brasil, pelo mau gerenciamento da persecução penal do seu homicídio especificamente por razões de gênero. Também é indispensável recordar que recentemente foi tornado obrigatório o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do Conselho Nacional de Justiça, a fim de o sistema de justiça brasileiro atente-se que as questões de gênero, para além de raça e classe têm interferido negativamente no acesso à justiça. No entanto, é indispensável que se aposte na técnica jurídica e nas garantias judiciais individuais de toda e qualquer pessoa, por isso, afirma-se que desviar do caminho do devido processo legal jamais trará segurança jurídica para o Estado Democrático.
[1] LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;
[2] 1. As Partes Contratantes comprometem-se a prestar auxílio mútuo em matéria penal e a combater a produção e o tráfico ilícito de drogas e substâncias psicotrópicas. 2. Propõem-se também desenvolver a cooperação em matéria de extradição e definir um quadro normativo adequado que permita a transferência de pessoas condenadas para cumprimento de pena no país de origem, bem como alargar ações conjuntas no campo da administração da justiça.
[3] Art. 29. A não ser que uma intenção diferente se evidencie do tratado, ou seja estabelecida de outra forma, um tratado obriga cada uma da partes em relação a todo o seu território.