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BASEADO NO STF, TJ-SP AUTORIZA INTERRUPÇÃO DE GESTAÇÕES DE FETOS COM MALFORMAÇÕES

Entre janeiro e março deste ano, as Câmaras de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo reformaram pelo menos seis decisões de primeira instância para autorizar a interrupção de gestações de fetos com malformações e sem possibilidade de vida extrauterina.

FreepikTJ-SP autorizou interrupção de seis gestações de fetos com malformações entre janeiro e março

Em um caso de feto diagnosticado com malformação nos pulmões e ausência de rins, por exemplo, a 15ª Câmara de Direito Criminal autorizou a interrupção da gravidez, de 19 semanas, por entender que a condição do bebê foi comprovada por exames de ultrassom e por laudo assinado por uma equipe médica.

"Outrossim, não se pode exigir que a paciente leve a termo sua gestação, diante da irremediável situação do feto, com exposição aos riscos inerentes ao caso, com prejuízos de ordens física e psicológica, igualmente descritos pelo i. profissional médico", argumentou o relator, desembargador Bueno de Camargo.

O magistrado aplicou, por analogia, o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54, julgada em 12 de abril de 2012, em que foi declarada a inconstitucionalidade da interpretação que tipifica como aborto a interrupção voluntária da gravidez em casos de anencefalia fetal.

"Nesse contexto, conquanto respeitáveis os fundamentos trazidos pelo MM. juízo a quo e, embora não se trate de feto anencéfalo, o caso admite, com todo o respeito, mutatis mutandis, aplicação extensiva ao julgamento da alta corte na ADPF 54", afirmou o desembargador.

A 14ª Câmara de Direito Criminal também se baseou na ADPF 54 para permitir a interrupção de uma gestação de 28 semanas depois que o feto foi diagnosticado com uma doença letal. Para o relator, desembargador Freire Teotônio, ficou demonstrada a inviabilidade da vida extrauterina, além do risco à saúde da gestante, especialmente no aspecto psicológico.

"Afigura-se inegável que ambas as condições (anencefalia e displasia esquelética do tipo letal) redundam, segundo o conhecimento médico atual, no mesmo fato, inviabilidade da vida fora do útero, dando azo, pois, à mesma interpretação constitucional da norma penal", explicou Teotônio.

Situação desumana
A 5ª Câmara de Direito Criminal autorizou a interrupção da gestação de um feto diagnosticado com pentalogia de Cantrell, uma doença que causa diversas malformações, como por exemplo na parede abdominal, deixando os órgãos expostos, no diafragma e no coração. A mulher estava grávida de 17 semanas quando houve o diagnóstico.

Em um longo voto, de 50 páginas, o relator, desembargador Maurício Henrique Guimarães Pereira Filho, afirmou que é "inimaginável" obrigar uma mulher a prolongar uma gestação com impossibilidade de vida extrauterina, "o que seria, no mínimo, desumano".

"Nesse passo, a preservar a saúde psíquica da gestante, é necessária a interrupção da gravidez. Também a preservar a saúde física da gestante se faz necessária a interrupção da gravidez, já que além dos riscos inerentes a uma natural gestação, haverá riscos outros, ante a situação fática suportada pela gestante."

Conforme o magistrado, o entendimento jurídico autoriza a interrupção da gravidez, mesmo que nem sempre com o mesmo fundamento. Para alguns, trata-se de conduta atípica, ante a impossibilidade de vida extrauterina. Para outros, apesar de típica, é possível a aplicação da excludente de ilicitude.

"Ainda há entendimentos no sentido de que por tratados e convenções internacionais, dos quais o Brasil é signatário, já haveria possibilidade da interrupção da gravidez", disse Pereira Filho. Segundo o relator, não é porque a ADPF 54 tratou apenas de fetos com anencefalia que será necessária nova manifestação do STF em relação a cada caso de síndrome ou patologia que impeça a vida extrauterina, "o que seria, no mínimo, ilógico".

FreepikTJ-SP tem aplicado tese do STF na ADPF 54 não apenas para fetos com anencefalia

Sem juízos morais e religiosos
Em razão do diagnóstico de síndrome de Edwards, uma doença genética letal, a 2ª Câmara de Direito Criminal autorizou a interrupção de uma gestação de 17 semanas. O relator, desembargador André Carvalho e Silva de Almeida, disse que o Superior Tribunal de Justiça já autorizou o procedimento em fetos diagnosticados com a mesma doença.

"É hipótese de aborto terapêutico, cuja natureza corresponde a uma causa especial de exclusão de ilicitude, descrita no inciso I do artigo 128 do Código Penal, dado o grave e concreto risco à vida da paciente, além do terrível dano psicológico existente em se obrigar a gestante a levar a termo a gravidez de um feto inviável, situação, por certo, análoga a uma tortura física, emocional e psicológica."

Almeida sustentou que o inciso I do artigo 128 do Código Penal não exige que o perigo à vida materna seja atual ou iminente, uma vez que eventual intervenção médica tardia poderia levar a gestante à morte, e, por isso, impor o prolongamento da gravidez só implicaria sofrimento psicológico e risco inútil à vida da paciente.

"O caso em tela, além de se incluir na hipótese de aborto terapêutico (artigo 128, I, do Código Penal), possui diversos pontos em comum com a ADPF 54, referente a fetos anencefálicos. Isso porque, embora se trate de anomalia distinta, em ambos os casos, se o feto resistir ao período da gestação, grandes são as chances de padecer no parto e, com certeza, ainda que sobreviva, a expectativa de vida, extremamente curta, experimentará intenso sofrimento."

O magistrado também embasou a decisão no princípio da dignidade humana, "em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada da mulher", e disse que não compete ao Poder Judiciário emitir juízos morais e religiosos, que cabem exclusivamente às pessoas que propõem as ações, devendo o magistrado se ater à análise da legalidade da conduta.

"No caso, uma vez que se trata de uma vida inviável, ainda que se encerre dentro do primeiro ano após o nascimento, considerando o risco à vida da gestante e os danos físicos e psíquicos a que está submetida, ao contrário do que afirmou a autoridade coatora, não se verifica razoabilidade em que o direito à possível breve vida do feto prepondere sobre o direito à vida, saúde e dignidade humana da gestante."

Direito à vida
A 16ª Câmara de Direito Criminal permitiu que uma mulher, grávida de 23 semanas, interrompesse a gestação após o feto ser diagnosticado com síndrome de body stalk, uma doença rara e incurável que impossibilita a vida extrauterina, pois não há cordão umbilical, nem fechamento da parede abdominal, deixando os órgãos expostos.

Segundo o relator, desembargador Marcos Alexandre Coelho Zilli, o direito à vida previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, além de abranger a vida humana independente, também protege a vida humana intrauterina. Assim, o bem jurídico tutelado pelo tipo penal previsto nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal é a vida do ser humano em formação, seja embrião ou feto.

No entanto, Zilli afirmou que o Código Penal acolheu o sistema de indicações, isto é, embora a vida do feto seja um bem jurídico digno de proteção penal, há situações em que determinados interesses da mãe devem se sobrepor. Nessas hipóteses, portanto, permite-se expressamente a interrupção da gravidez.

Conforme Zilli, o aborto terapêutico, previsto no artigo 128, inciso I, do CP, encontra respaldo no estado de necessidade, isto é, em razão de uma situação de perigo e da impossibilidade de proteger, de forma simultânea, a vida do bebê e a da gestante, opta-se pela vida da mulher.

Entre as hipóteses de aborto legal, disse o magistrado, não está a situação do feto portador de anomalias incompatíveis com a vida extrauterina: "Contudo, na doutrina penal, há quem sustente ser possível a aplicação da excludente supralegal da culpabilidade da inexigibilidade da conduta diversa nesses casos, eis que seria inadmissível exigir outra conduta da mãe, diante do risco à sua saúde mental em razão da gestação de um feto inapto à vida extrauterina."

O relator também afirmou que, seja sob o fundamento da incidência da causa supralegal da inexigibilidade de conduta diversa, seja pela aplicação de analogia à causa de justificação prevista no artigo 128, inciso I, do CP, é "inviável a punição da gestante que carrega em seu ventre feto que não tenha condições de sobrevivência fora do útero."

"No âmbito dos tribunais superiores, tais casos têm sido tratados sob o prisma da tipicidade. No Superior Tribunal de Justiça, verifica-se o entendimento de que somente a conduta capaz de inviabilizar nascimento com potencialidade de vida extrauterina subsumir-se-á ao delito de aborto. Assim, o caso do feto portador de anomalia incompatível com a vida fora do ventre materno não se subsume à figura prevista nos artigos 124 a 126 do Código Penal", frisou Zilli.

Agência BrasilPara desembargador, não cabe ao Poder Judiciário emitir juízos morais e religiosos

Punição dupla
Para a 11ª Câmara de Direito Criminal da corte paulista, a criminalização da interrupção da gravidez quando é inviável a vida extrauterina constitui uma punição dupla, na medida em que a paciente seria obrigada a gestar uma vida comprovadamente predestinada ao fracasso, além de ser submetida aos riscos de uma gravidez.

A paciente do caso julgado pela 11ª Câmara estava grávida de 26 semanas no momento da impetração do Habeas Corpus pela Defensoria Pública de São Paulo. O feto foi diagnosticado com ausência de ambos os rins e de líquido amniótico, além de comprometimento do desenvolvimento pulmonar, o que impediria a vida fora do útero.

O relator, desembargador Tetsuzo Namba, afirmou que, nesse caso, não há vida a ser tutelada pelo Direito Penal, já que "o nascituro está fadado, infelizmente, à letalidade, sem indicação de recuperação por tratamento ou terapia, conforme repisado pelos laudos técnicos".

O magistrado lembrou que a interrupção da gestação e a antecipação do parto não podem ser considerados fatos típicos, pois o aborto, no Código Penal, pressupõe a potencialidade de vida fora do útero, o que não se verifica no caso dos autos, em que já foi comprovada a impossibilidade de vida extrauterina.

Namba afirmou que manter uma gestação nessas condições também seria submeter a mulher a "violência psicológica", e citou a dignidade da pessoa humana, "princípio fundante de todo sistema jurídico, o qual deve ser chamado a amparar os direitos das mulheres que se vêem em condições análogas ao feto anencefálico".

Processo 2003745-51.2023.8.26.0000
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