O ARTIGO 193-A DA LEI 11.101/2005 E O CASO DAS LOJAS AMERICANAS
A Lei 14.112/2020 trouxe diversas alterações à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, dentre elas, a inclusão do artigo 193-A, que dispõe sobre a não afetação, ou suspensão, do exercício dos direitos de vencimento antecipado, e de compensação, no âmbito de operações compromissadas e de derivativos, pelo pedido de recuperação judicial, deferimento de seu processamento ou da homologação do plano de recuperação.
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Para melhor compreensão de tal dispositivo legal, faz-se necessário entender, primeiramente, o que são operações compromissadas e derivativos.
As operações compromissadas tratam de contratos de compra e venda de ativos financeiros atrelados a um outro contrato, que pactua a recompra destes ativos vendidos no primeiro contrato, por preço e data predefinidos. Já os derivativos são aqueles firmados em um momento, com direitos e obrigações exigidos ou executados posteriormente e que são vinculados a um outro ativo subjacente.
As operações compromissadas, quando envolvem títulos de renda fixa, são reguladas pelo Banco Central (Resolução BCB 3.339/06). De outro lado, os derivativos são regulados pela Comissão de Valores Mobiliários (Instrução CVM 467/08) e pelo Banco Central (Circulares BCB 3.809/16 e 3.904/18). Como característica comum, observe-se, além da natureza de álea envolvida em seu objeto, tratam-se, ambos os instrumentos, de negócios jurídicos submetidos ao Conselho Monetário Nacional (Resolução CMN 4.662/18), integrando o Sistema Financeiro Nacional.
Essas características trazem como consequência, tanto para as autoridades regulatórias do mercado financeiro, como também para os intérpretes desses contratos no âmbito judicial, a necessidade de ponderação. Se por um lado tem-se os possíveis conflitos de interesse existentes na relação contratual bilateral, de outro, tem-se os seus efeitos sobre o mercado financeiro, considerando os riscos que lhes são inerentes, sobretudo, o risco sistêmico, ao qual se expõe o sistema financeiro como um todo.
É a partir dessa perspectiva que a lei recuperacional passou a dispor, conforme mencionado, que o exercício dos direitos de vencimento antecipado, de compensação nas operações compromissadas e nos contratos derivativos não serão afetados ou suspensos pelo pedido de recuperação judicial, deferimento de seu processamento ou com a homologação do plano de recuperação. Ou seja, resta previsto que nesses casos, havendo previsão em contrato ou em regulamento, poderá ocorrer o vencimento antecipado por inexecução, com a consequente compensação do crédito e do débito da referida operação, o que resultaria na extinção das obrigações se não houver saldo remanescente em favor da empresa recuperanda. No caso de haver saldo devedor, este estará sujeito à recuperação judicial, sendo ressalvada a existência de garantia de alienação ou cessão fiduciária.
Cabe observar, que o cunho teleológico da inclusão desse dispositivo na reforma do sistema de insolvência foi objeto de destaque no relatório do parecer do deputado Hugo Leal, favorável ao substitutivo que resultou no texto final da Lei 14.112/20. De acordo com o relator, este mecanismo ajuda a garantir às empresas que buscam tais operações no mercado financeiro, que haja uma maior oferta de crédito bancário.
Ressalta ainda, o mencionado relatório, que a previsão do artigo 193-A tem como objetivo afastar a lacuna da Lei de Falências e Recuperação de Empresas quanto ao que dispõe a Medida Provisória nº 2.192-70, de 24/8/2001, que afirma que é possível a formalização de acordo de compensação e liquidação de obrigações no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, dentro do que é estabelecido pelo Conselho Monetário Nacional. Ainda, de acordo com a Medida Provisória em questão, tal compensação e liquidação acordada não sofrerá afetação pela decretação de insolvência civil, concordata, intervenção, falência ou liquidação extrajudicial da empresa, nos termos do artigo 43 e artigo 52, I do antigo Decreto-Lei que regulamentava as insolvências empresariais.
Dessa forma, a proteção legislativa em questão já figurava expressamente em texto legal pertencente ao marco regulatório do Sistema Financeiro Nacional desde 2001, de modo que a sua inclusão na Lei de Falências e Recuperação de Empresas resulta da necessidade de neutralizar o risco do mercado, principalmente de derivativos, que, em caso de inadimplemento, descasaria as operações e poderia gerar reflexo negativo em todo o sistema, com o alastre da crise. Ou seja, o vencimento antecipado dá segurança ao contratante para liquidar a operação e evitar a valorização da prestação da contratada.
Com efeito, a inclusão do direito de compensação das operações compromissadas e de derivativos com previsão contratual ou regulatória de vencimento antecipado — os chamados "closeout netting" —, dentre os instrumentos contratuais que não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, aproxima ainda mais o sistema de insolvência brasileiro ao estadunidense, uma vez que esse é o tratamento previsto para os contratos financeiros dessa natureza naquele país.
Trata-se do que a doutrina norte-americana denomina de uma "safe harbor provision", ou seja, regras constantes da Lei de Falências, aplicadas de forma restrita para as contrapartes e os contratos de derivativos, dentre outros contratos financeiros.
Tal tratamento excepcional dado às operações de derivativos é objeto de críticas, inclusive nos Estados Unidos. Um dos aspectos suscitados como negativo na adoção dessa proteção, encontra-se no fato de que tal excepcionalidade gera uma situação de vantagem para o credor financeiro, pois o vencimento antecipado seguido da compensação pode reduzir os ativos de uma empresa em recuperação judicial em favor desse credor, mesmo que em detrimento dos demais créditos sujeitos aos efeitos da recuperação judicial. Esse quadro, inclusive, teria ocasionado o não reconhecimento ao direito de vencimento antecipado em processos de recuperação judicial cuja tramitação se deu no Brasil após a vigência da Lei 11.101/05, mas ainda anteriormente à inclusão do artigo 193-A.
Apesar disso, a doutrina estadunidense entende que esse favorecimento ao credor financeiro seria justificável. Nesse sentido, compreende-se que o safe harbor para esses contratos financeiros, ao oferecer segurança jurídica ex ante quanto à não sujeição aos efeitos da recuperação judicial, permite que a sua realização tenda a ocorrer em maior escala, aumentando-se a oferta de crédito no mercado financeiro, justamente o efeito socioeconômico esperado pelo deputado Hugo Leal em seu relatório sobre o projeto de lei da reforma da Lei de Falência e Recuperação de empresas. Além disso, outro efeito relevante apontado pela doutrina norte-americana envolve o fato de que a operação de closeout netting, ou seja, o vencimento antecipado seguido da compensação, permite às instituições financeiras melhor dimensionar os riscos existentes diante de sua exposição de crédito em relação à empresa em crise. Tal aspecto teria relevância, como enfatizado acima, não apenas para a instituição financeira credora, mas para o sistema financeiro como um todo, mitigando-se a exposição do mercado financeiro a um quadro de risco sistêmico.
No caso da recuperação judicial do Grupo Americanas, tal tema veio à baila pelo fato da empresa devedora ter realizado contratos derivativos com credores financeiros, que opuseram embargos de declaração em face da decisão cautelar que havia suspendido as cobranças dos credores por trinta dias e determinado que nenhum contrato poderia ser declarado vencido em tal período, deixando de analisar o disposto no artigo 193-A da Lei 11.101/2005.
Tal omissão foi afastada pela decisão de processamento da recuperação judicial proferida em 19/1/2023, na qual constou expressamente que as exceções previstas no artigo 193-A da lei recuperacional deveriam ser observadas, considerando-se a data de ajuizamento da medida cautelar que antecedeu o pedido de recuperação.
Diante de tal decisão, restou garantido o exercício dos direitos de vencimento antecipado e de compensação nas operações compromissadas e nos contratos derivativos daqueles credores que haviam realizado contratos com tais cláusulas, os quais têm buscado a liquidação de parte de seus contratos derivativos.
Resta a conclusão de que o tema foi muito pouco debatido na doutrina e menos ainda na jurisprudência nacional, e que terá, certamente, o caso da recuperação judicial da Americanas como referência para a questão.