DILEMAS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA: A PEDAGOGIA A SERVIÇO DO COMBATE À EVASÃO
Diferenças geracionais e pedagogia jurídica
A cada geração de estudantes, novos desafios se apresentam aos gestores educacionais e professores. As diferenças culturais entre gerações de professores e alunos sempre foram motivo de dificuldades. Mas quando há uma aceleração muito forte nas transformações sociais e culturais, o fosso geracional tende a intensificar os conflitos. É o que está ocorrendo com as profundas transformações tecnológicas e comportamentais desencadeadas a partir da criação do smartphone, das redes sociais, e que tendem a ser ainda mais marcantes com a recente acessibilidade de ferramentas de inteligência artificial (IA) ao grande público.
Pillar Pedreira/Agência Senado
Os dilemas do gestor acadêmico e do professor, no entanto, não são diferentes do que sempre foram, apenas porque a evolução da tecnologia se tornou mais veloz. Talvez essa velocidade apenas torne mais premente e mais indubitável a necessidade de revisão das metodologias pedagógicas.
Os profissionais do ensino detectam a existência de novas necessidades, mas não sabem ainda como reagir. Se cederem ao que as novas gerações demandam sem qualquer ressalva, corre-se o risco de se jogar fora uma tradição pedagógica que está em vigor há muito tempo e que atende de certa forma às exigências atuais da profissão jurídica. Além disso, o gestor e o professor foram formados nessa tradição secular e ainda não sabem se eventuais novas técnicas serão boas o bastante para oferecer aos estudantes uma formação profissional sólida. Afinal, juízes, promotores, delegados, advogados, em sua imensa maioria, são também formados na antiga tradição pedagógica. Reforça ainda esse temor o fato de que, em certos casos, interesses meramente de redução de custos preponderam na decisão de se adotar metodologias inovadoras.
Mas o fenômeno da evolução social é um emaranhado complexo de vetores, ações e movimentos simultâneos. As instituições antigas sobrevivem, mas são paulatinamente invadidas por novos movimentos e ideias. O processo judicial que sempre foi físico já é predominantemente virtual, audiências podem ser remotas. Mesmo o linguajar erudito e técnico do Direito tem sido questionado em seus excessos, abrindo espaço para representações visuais e mais acessíveis da argumentação jurídica. O Exame da OAB tem se transformado continuamente, adaptando-se a novas tendências. Aulas puramente teóricas, unidirecionais e desvinculadas não têm mais o mesmo impacto sobre os estudantes, que querem ver de forma mais rápida a conexão entre a teoria e a prática.
Dados que impactam sobre a tomada de decisão nos cursos de Direito
Os dilemas de gestores e professores se acentuam no atual contexto ultracompetitivo dos cursos de Direito. No período da pandemia houve uma retração no número de matrículas em Direito no Brasil. Segundo o Censo da Educação Superior (MEC) [1], em 2018 havia 861.245 matriculados em Direito no país, repartidos entre 1.311 escolas, o que dava uma média de 656 alunos por IES. Em 2019, havia 831.350 matriculados em Direito, em 1.577 IES, resultando numa média de 527 alunos por escola. Em 2020, o número de IES passou a 1.633, somando 757.317 matrículas, numa média de 463 alunos por IES. Em 2021, o Censo aponta 700.434 matrículas em Direito, com 1.706 IES, cada uma delas com uma média de 410 alunos.
O quadro aponta para um número cada vez maior de IES disputando um número decrescente de alunos durante a pandemia. Atrair os alunos sempre foi uma árdua missão. Retê-los passou a ser uma questão de vida ou morte de um curso de Direito. Essa necessidade de retenção do aluno é a tônica em qualquer IES privada hoje, o que tem impactos sobre toda a cadeia de planejamento, gestão e execução do processo pedagógico.
A resposta mais simples para atenuar o problema da evasão escolar seria afrouxar as exigências em relação aos estudantes, mas isso é contraproducente em matéria de desempenho qualitativo e enfraquece o principal agente do processo pedagógico, que é o professor. Numa sociedade cada vez mais informada, a consciência do estudante a respeito da probabilidade de ser aprovado na OAB ao escolher a escola A ou B tende a ser cada vez mais decisiva [2]. Por isso, no curto prazo, a IES pode até reter o aluno, mas no médio e longo prazos tende a não atrair os melhores alunos. Ou seja, minora de imediato a evasão, mas perde ingressantes no médio e longo prazos.
A resposta mais complexa, mas mais respeitadora da qualidade do ensino, é aumentar a captação pela atratividade de recursos pedagógicos e diminuir a evasão pelos mesmos fundamentos, tornando os estudantes mais envolvidos e motivados com o processo de aprendizagem. Nesses aspectos pedagógicos há novidades relevantes.
Engajamento das novas gerações e a linguagem jurídica
Os ingressantes hoje nos cursos de Direito são em sua maioria pertencentes à chamada Geração Z, dos nascidos entre 1995 e 2010. Eles cresceram com smartphones nas mãos, frequentam as redes sociais desde muito cedo e esperam das IES que acompanhem seu ritmo de capacitação tecnológica.
Não é atributo dessa geração a dificuldade com os conceitos abstratos do Direito. Todos sabemos da importância das classificações jurídicas, dos conceitos e das definições técnicas, que têm enorme utilidade profissional na resolução de problemas. Mas cada disciplina tem sua extensa lista de conceitos e classificações, e dominá-las não é tarefa simples. Os estudantes dos primeiros anos são aqueles que apresentam maior risco de evasão e não é desprezível a influência dessa abstração elevada sobre a decisão de abandonar o curso. Muitos ingressaram no curso de Direito impelidos pela imagem que se projeta nos filmes e séries em que os profissionais frequentemente surgem como protagonistas de situações extremamente impactantes e atraentes. Mas entre a expectativa e a realidade repousa uma montanha de livros a serem lidos, um grande número de procedimentos complexos que precisam ser compreendidos e uma verdadeira revolução redacional deve ser operada no estudante.
Como fazer com que esses novos estudantes se envolvam com as exigências da linguagem jurídica, sem ceder à tentação de reduzi-la ou rebaixá-la? Esse não é um problema novo e tampouco é exclusivo do Direito. A linguagem técnico-profissional é densa e adquirida a duras penas em qualquer meio. Os especialistas em qualquer área se comunicam por vocabulário peculiar, que faz sentido apenas para iniciados. E a densidade da linguagem profissional existe porque é indispensável para uma comunicação eficiente no meio em que se atua. Portanto, não há razão para querer simplificá-la pela redução de sua densidade.
Mas os exageros barrocos da linguagem jurídica já estão sendo devidamente afrontados, inclusive com excelentes iniciativas do próprio Judiciário. O projeto Petição 10, Sentença 10, de iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, propõe que as peças processuais se limitem a 10 páginas e já está sendo adotado em diversos Estados. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) incluiu o fortalecimento do relacionamento institucional do Judiciário com a sociedade como um dos macrodesafios definidos pela Estratégia Nacional do Poder Judiciário, instituída pela Resolução CNJ n. 325, de 30 de junho de 2020.
Mas quando lidamos com o problema pedagógico na graduação em Direito, o grande tema é como fazer com que a jornada do ingressante no curso de Direito seja mais motivadora na parte em que ele mais necessita se superar: o domínio do vernáculo, a habilidade da leitura e da interpretação de textos técnicos.
Técnicas de leitura e de estudo inovadoras
Neste ponto, há novidades, como o visual law, um conjunto de ferramentas de design para transformar a linguagem escrita em gráficos e imagens mais facilmente compreensíveis. Não se trata de uma substituição dos textos, mas uma forma adicional de tratar os conteúdos, que amplia a capacidade de compreensão do leitor [3].
Pessoalmente tenho me convencido de que a melhor forma de engajamento na compreensão de textos jurídicos está relacionada à problematização dos conteúdos e à fixação de metas. Ambas as tarefas estão relacionadas.
A leitura de um livro jurídico sem a formulação de problemas que ele deve resolver é quase estéril. O leitor passa pelas classificações sem saber para que servem e é incapaz de se lembrar precisamente delas, a menos que se esforce por decorá-las pela repetição. Mas isso não fica retido por muito tempo e não serve para todos os perfis de estudante. O leitor deve ser estimulado a encontrar no livro as respostas a problemas específicos. Esta é a forma como esse conhecimento tem mais chance de se consolidar no estudante. Se associarmos, ademais, a leitura dos livros à tarefa de resolução de problemas jurídicos formulados pelo professor, aumenta-se em muito a chance de aprendizado.
A fixação de metas de curto, médio e longo prazos atendem a uma particularidade do estudo profissionalizante. A quantidade de informações requerida pela formação em Direito é tão vasta e leva tanto tempo para ser absorvida, que por vezes o estudante se sente desestimulado, porque não se vê acumulando saber. O máximo que o aluno carrega como referência de sua evolução no estudo de Direito é a quantidade de anos que está na universidade. E notem como os estudantes se orgulham de serem os veteranos em qualquer circunstância comparativa. Mas falta no sistema regular de ensino um mecanismo de registro da evolução do conhecimento em cada disciplina.
Numa geração acostumada a jogos de computador, em que o jogador sobe de nível de tempos em tempos, que acumula e perde vidas ao sabor do seu desempenho, que luta por permanecer ativo e cada vez mais aparelhado para enfrentar os oponentes, é curioso que não haja na universidade mecanismos que reproduzam essas condições.
Ambas as técnicas podem ser objeto de treinamentos específicos para professores e alunos. São iniciativas pedagógicas que criam hábitos e que podem fazer a diferença na motivação dos estudantes. É muito difundida a metodologia de simulação de audiências, tribunais do júri, Moot Courts, torneios de argumentação jurídica. Mas hoje há também tecnologia digital na introdução de métodos envolventes para alunos e professores, capazes de fixar metas de curto, médio e longo prazos e estimular a leitura de textos jurídicos de forma associada ao desafio da resolução de problemas jurídicos.
Assim sendo, concluo que há sim estratégias inovadoras de preservação e melhoramento da qualidade do ensino do Direito que podem ser implementadas também com a finalidade de combater o perigo da evasão escolar. E para tanto é preciso avaliar as ferramentas hoje disponíveis em face das particularidades do projeto pedagógico de cada IES, sempre tendo em vista engajar e motivar o estudante na difícil mas muito recompensadora tarefa de formação do profissional do Direito.
[1] Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-da-educacao-superior/resultados. Acesso em 01.04.2023.
[2] Os dados relativos ao Enade e ao Exame de Ordem são públicos, mas não são ordenados por ordem de desempenho de cada IES. No site www.aguillar.net mantenho um ranking atualizado do desempenho dos cursos de Direito em relação a esses dois indicadores, utilizados em combinação (pesos idênticos) para compor o IAE, índice que classifica as IES.
[3] O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou recentemente a Resolução nº 347/2020, que dispõe sobre a Política de Governança das Contratações Públicas no Poder Judiciário. O documento, assinado pelo ministro Luiz Fux, elenca os recursos de Visual Law como sendo essenciais para tornar os documentos mais claros, usuais e acessíveis. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original170811202010155f8881fb44760.pdf e https://www.cnj.jus.br/iniciativa-piloto-usa-linguagem-grafica-para-facilitar-compreensao-de-julgamentos/. Acesso em: 02.04.2023.