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LEI Nº 14.230/2021: INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS PENAL, CÍVEL E ADMINISTRATIVA

A Lei nº 14.230/2021 reformou a LIA (Lei de Improbidade Administrativa, nº 8.429/1992) e nela incluiu o artigo 21, §4º, que trata dos efeitos da absolvição criminal na esfera da improbidade, adotando assim a prevalência da decisão do juízo criminal quanto aos mesmos fatos, pois a justiça criminal é ordinariamente a mais vocacionada e alargada para o sancionamento das condutas ilícitas.

Acerca do tema, Gajardoni [1] leciona que:
"no sistema revogado não havia impedimento algum para o prosseguimento da ação de improbidade. Os fatos não provados no crime poderiam ser provados no cível. O indivíduo era absolvido por falta de provas no crime. Mas podia ser condenado por improbidade administrativa, nesses casos, devendo reparar os danos eventualmente causados, além de sofrer as sanções legais (perda do cargo, multa, suspensão de direitos políticos etc.).

Por óbvia simetria lógica, a nova regra se aplica ao direito administrativo sancionador, máxime quando a infração ético-disciplinar for coincidente com o ato de improbidade administrativa propriamente dito, como ocorre, a exemplo, com o artigo 240, inciso V, b, da LC nº 75/93, e com o artigo 132, inciso IV, da Lei nº 8.112/1990, que preveem a demissão do membro Ministério Público da União e dos servidores públicos civis da União em caso de improbidade administrativa."

O fato é que a capitulação legal pouco importa, não podendo o juízo criminal absolver o réu da acusação de homicídio, de roubo, de peculato, de corrupção etc. e, nas outras esferas, ser condenado apenas mudando-se a capitulação legal, ao pretexto de uma independência míope. Assim, o artigo 21, §4º, da Lei nº 8.429/1992 corrigiu uma antiga distorção sobre a independência das esferas penal, cível e administrativa.

Não obstante, em 27/12/2022, o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), relator da ADI 7236 MC/DF, proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), deferiu parcialmente liminar, ad referendum do Plenário, para suspender a eficácia do artigo 21, §4º, da Lei nº 8.429/1992.

Na decisão monocrática, o ministro entendeu que a independência de instâncias exige tratamentos sancionatórios diferenciados entre os atos ilícitos em geral (civis, penais e político-administrativos) e os atos de improbidade administrativa, e que a comunicabilidade ampla pretendida pela norma questionada acaba por corroer a própria lógica constitucional da autonomia das instâncias, o que indica, ao menos em sede de cognição sumária, a necessidade do provimento cautelar.

Ocorre que, em verdade, a norma impugnada não altera a independência das esferas penal, cível e administrativa, mas apenas explicita critérios lógicos que os tribunais insistem em não compreender.

É o que acontece quando os órgãos jurisdicionais confundem o alcance e os limites do instituto sob fundamentos impertinentes, tais como de que a infração disciplinar que configura ato de improbidade acarreta demissão, independentemente de ação judicial prévia [2], de que a aplicação da pena de demissão em casos de improbidade administrativa não é exclusividade do Judiciário [3], e de que a improbidade administrativa pode ser evocada pela Administração Pública federal como fundamento para aplicar a pena de demissão, não se exigindo que o Poder Judiciário se pronuncie previamente sobre a sua caracterização [4].

Apurar uma mesma conduta nas três esferas de responsabilização não é o mesmo que as esferas administrativa e da improbidade o fazerem quando o juízo criminal já pronunciou a absolvição. A Lei nº 14.230/2021 apenas estabeleceu que, nessa condição, não poderá mais o juízo da improbidade substituir a justiça criminal na apuração do fato criminoso propriamente dito, e que, por simetria, também não poderão mais os órgãos disciplinares substituírem as justiças criminal e cível na apuração do fato criminoso e de improbidade administrativa propriamente ditos.

O alarde criado em torno da inovação legal não se justifica porque se trata de mero enunciado novo sobre questão velha.

Vale dizer, haverá comunicação dos fundamentos da absolvição criminal quando 1) nas esferas disciplinar e de improbidade, na linha da Súmula 18 do STF, não houver a imputação de conduta ímproba ou disciplinar residual para justificar a persecução independente, mas tão somente a exata mesma conduta criminal já rechaçada pelo juízo competente; 2) houver exata identidade de imputação e de provas nas esferas; e 3) o juízo criminal já tiver pronunciado a atipicidade, a inexistência do fato ou a ausência de lastro mínimo para a acusação ou para a condenação pelos mesmos fatos que poderiam constituir a improbidade e a infração disciplinar.

Ausente qualquer imputação de conduta ímproba ou administrativa residual que autorize a persecução independente da criminal, cabe ao juízo cível e ao órgão disciplinar acolher o desfecho penal se a improbidade e se a infração disciplinar estiverem contidas in totum no crime, especialmente se idêntico o acervo probatório, até por força do princípio de vedação ao bis in idem, que além de proibir a dupla reprimenda pelo mesmo fato, também impede que o cidadão seja processado mais de uma vez pelo mesmo fato [5].

Portanto, se não houver atribuição de resíduo sancionável e houver identidade de fatos e provas, situações cuja ratio já foi contemplada pela Súmula 18 do próprio Supremo, a interpretação do artigo 126, da Lei nº 8.112/1990, e do artigo 935 do Código Civil há de ser temperada pelo artigo 21, §4º, da Lei nº 8.429/1992, e pelo o artigo 386 do Código de Processo Penal, resultando na vinculação das esferas administrativa e de improbidade à esfera penal em caso de absolvição criminal, inclusive por insuficiência de provas.


[1] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa: Lei 8.249/1992, com as alterações da Lei 14.230/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 493-494.

[2] STJ. MS 14.968/DF, relator ministro Sebastião Reis Júnior, S3, DJe 25/03/2014.

[3] STJ. MS 14.504/DF, relator ministro Jorge Mussi, S3, DJe 20/8/2013.

[4] STJ. MS 15.826/DF, relator ministro Humberto Martins, S1, DJe 31/5/2013.

[5] CRUZ, Rogerio Schietti. A Proibição de Dupla Persecução Penal. Salvador: Lumen Juris: 2008. p. 219.