CONTRATOS BANCÁRIOS: O PACTO SUNT SERVANDA E O LUCRO ARBITRÁRIO
No reino do faz-de-conta o consumidor é livre para pactuar nos contratos bancários de adesão. Porém, é evidente, de que não há a igualdade material, substancial ou real. No caso concreto, o banco é o grandão, o fortão que tem a expertise, aliás, lucrando bilhões de reais por ano. O consumidor o vulnerável. O fraquinho. O Tavinho.
Spacca
Há, também, a falácia de que o consumidor é o "rei do mercado". A liberdade é mera ficção com os contratos de adesão. É o vetusto liberalismo de Adam Smith, do século 18. Até parece que a mão invisível vai harmonizar os interesses do "banqueirão" e do pobre consumidor.
Pior: Na faculdade de direito, infelizmente, com o ensino acrítico, fala-se em pacto sunt servanda, em autonomia da vontade, em liberdade para contratar, que ninguém é obrigado a contratar, sem nenhuma reflexão e consciência crítica. Há exceções, certamente.
Aqui nesta ConJur, Lenio Streck [1] escreve muito bem sobre as consequências do ensino acrítico do Direito:
"Por que tem tanta gente que faz faculdade de direito e sai odiando a Constituição? Nosso ensino jurídico não foi, até hoje, capaz de ensinar — direito — conceitos básicos de Teoria do Direito. Por que tem tanta gente reacionária no Direito? Não mais permita que se forme tanta gente inculta e jus blasfema. Que as faculdades de direito ensinem direito, não uma má teoria política do poder."
Consequentemente, no dia a dia, essa práxis, "apreendida" lá atrás, é reproduzida e aplicada mecanicamente pelos advogados(as), delegados (as), juízes (as), promotores (as), desembargadores (as), promotores (as), ministros (as).
Onde foi que erramos?
E outro dia vi a fundamentação de uma sentença do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) onde dizia: "Todos os contratos foram livremente pactuados entre as partes, sendo o autor maior e capaz, ausente a existência de qualquer vício."!
Pois é. Todos os contratos foram livremente pactuados, Excelência?! Sendo contrato de adesão o consumidor é livre como um pássaro?! (free as a bird) Pode escolher, por exemplo, as taxas de juros, a forma de capitalização do empréstimo: diária, mensal ou anual?! Pode, livremente, optar por juros simples ou composto?!
A resposta, com honestidade intelectual, só pode ser: não, não e não!
No contrato de adesão, o consumidor não discute as cláusulas em igualdade de condições. Não, mesmo! É, sim, ontologicamente, uma incongruência falar em pact sunt servanda. Vejamos o que ensina o Rizzatto Nunes [2]:
"Agora, anote-se que o uso do termo adesão não significa manifestação de vontade ou decisão que implique concordância com o conteúdo das cláusulas contratuais. No contrato de adesão não se discutem cláusulas e não há que se falar em pacta sunt servanda. É uma contradição falar em pacta sunt servanda de adesão."
Daí a observação de Fernando Capez [3]:
"A aderência ao contrato não consiste na manifestação de concordância do consumidor com seu inteiro teor. Ao aderir, o cidadão não explicita anuência com o conteúdo trazido na avença porque não participou da elaboração das obrigações ali estabelecidas. Até porque, hodiernamente, convenhamos, se o cidadão quiser adquirir qualquer coisa, será obrigado a aderir à oferta, preço, condições de pagamento e demais pormenores."
Logo, o pacto sunt servanda é, sim, um faz-de-conta...!
O juízo argumenta de que consumidor é maior e capaz, nos contratos bancários. Há para o necessitado do dinheiro sequer a liberdade de escolha?! Não há a conexão do direito à vida real. O Direito é uma porção da realidade social.
Hoje, o direito privado caminhou da igualdade formal para a igualdade substancial. A pessoa não contrata porque quer, mas porque precisa. Simples assim.
André Augusto Salvador Bezerra [4]:
"O pretendido pacta sunt servanda incondicionado, tão demandado pelos donos do grande capital (...), não encontra lugar sob a vigente Constituição que, de um lado, determina como objetivo do Estado brasileiro a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3o, I) (...) Em termos constitucionais, portanto, a liberdade econômica a ser assegurada pelo Estado brasileiro é aquela que nega a celebração de contratos para a exploração do social e economicamente mais fraco: o consumidor."
Pergunto: o cidadão que vai tomar um empréstimo sabe das terríveis Súmulas 539 e 541 do STJ? Ele domina a ciência contábil e financeira? Sabe ou é informado de que os juros simples caminham em uma progressão aritmética e os juros compostos em progressão geométrica?
Mas, pelo faz-de-conta dos nossos magistrados... Me lembrei de um clássico livro do Eros Grau: "Por que tenho medo dos juízes...".
Quantos tomadores de empréstimo, em situação de necessidade e fragilizados, poderão escolher livremente as cláusulas no contrato bancário de adesão?! As cláusulas pactuadas estão expressas e de forma clara?!
Ora, ora, não basta a igualdade formal para que todos sejam iguais na sociedade. Temos que perseguir a igualdade material, substancial ou real.
É preciso ressaltar, na linha de autorizado magistério doutrinário dos professores Antonio Herman V. Benjamin, Claudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa [5]:
"A igualdade perante a lei e a igualdade na lei só podem realizar-se hoje, no direito brasileiro, se existir distinção entre fracos e fortes, entre consumidor e fornecedor, e se for efetivo um direito tutelar do consumidor, daí a importância desta nova visão tripartite do direito privado, que é centrada na dignidade da pessoa humana e na ideia de proteção do vulnerável, o consumidor."
Não obstante, infelizmente, o STJ aplica, nas revisões dos contratos de empréstimos, a taxa média de juros do mercado, que de média não tem nada. Na verdade, é a "média" feita pelos bancos sem a participação do consumidor.
Ou seja, a "taxa média" é estipulada sem qualquer interferência do mutuário. Daí seu caráter manifestamente potestativo.
Além do que, a cobrança da taxa de juros até uma vez e meia (1,5 x taxa média do Banco Central), não haveria abusividade pelo STJ. Como assim? A matemática financeira não mente!
Pense, por exemplo, em um empréstimo com a taxa nominal de 2,9 % e pesquisando no BC descobriu-se que a taxa média é de 1.2 % ao mês (1.2 x 1.5= 3.0), pela jurisprudência do STJ, não seria o caso de juros abusivos, já que foi cobrada taxa de 2.9%, onde o limite seria 3.0%. Como assim?!
Como a capitalização dos juros ocorre em periodicidade mensal há um crescimento exponencial dos juros compostos a partir do primeiro ano de amortização, vale dizer, a dívida fica estratosférica com o passar dos anos.
Mas o Estado-Juiz não promoverá a defesa do consumidor?! (artigo 5º, XXXII, CF).
Pois então. É o "deus mercado" ditando as regras na economia, na cultura, nas relações pessoais etc. O mercado, infelizmente, passa a ser a medida de todas as coisas. De forma perversa: o ser humano vira coisa. O mercado vira deus. E a dignidade humana que é fundamento da República?
Não se discute que os juros são devidos pelo contratante até o pagamento. Que o devedor tem que cumprir com suas obrigações. Não é isso. Os juros podem ter a função de recompensar o uso do capital.
Vamos ao ponto: o banco empresta 100 e quer ganhar 1.000. E a eticidade nos contratos? Por obvio, há o instituto da lesão que vem do Direito alemão. Uma desproporção. No nosso CC está elencada no artigo 157:
"Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta."
Há uma desvantagem exagerada e excessivamente onerosa para o consumidor, ou seja, a vantagem é manifestamente excessiva e as condições se sujeitam ao puro arbítrio de uma das partes. (artigo 51 c/c artigo 39, V, CDC, c/c artigo 122 CC)
Ocorre que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (artigo 421 do CC). O CDC é norma de ordem pública. Daí serem indisponíveis e inafastáveis através de contratos bancários.
O Brasil é o país com um dos maiores spread (lucro bancário) do mundo. Ganha medalha de prata. Os juros não são civilizados.
A combinação explosiva entre as maiores taxas de juros do mundo com capitalização mensal dos empréstimos gera o lucro arbitrário. É a gênese de acumulação de capital pelos bancos. O pecado original. É a maneira "bem simples" como os bancos ganham rios de dinheiro, com o beneplácito dos tribunais.
Por fim, o que adianta a CF dizer, no artigo 173 § 4º, que a lei reprimirá o aumento arbitrário dos lucros?! A Constituição não "pega". Que coisa! Ela só vale para os bancos?! E o consumidor Tavinho? Só nos restar mostrar indignação e lutar!
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Referências
[1] STRECK, Lenio. https://www.conjur.com.br/2022-dez-22/senso-incomum-minha-cartinha-papai-noel-nescios-bom-velhinho
[2] NUNES, Rizzatto, 13ª edição, 2019, p. 699
[3] CAPEZ,Fernando. https://www.conjur.com.br/2022-set-22/controversias-juridicas-economia-mercado-prevalencia-contratos-adesao
[4] BEZERRA, André Augusto Salvador. https://www.conjur.com.br/2019-ago-30/opiniao-constituicao-protege-funcao-social-contrato
[5] BENJAMIN, Antonio Herman V, MARQUES, Claudia Lima e BESSA, Leonardo Roscoe, Manual de Direito do Consumidor, 7ª edição, 2016, Revista dos Tribunais.