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É PRECISO AVANÇAR: CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOVA LEI DE LICITAÇÕES E A MP 1.167/2023

Steven Johnson, um best-seller em inovação, em seu já clássico De Onde Vêm as Boas Ideias: uma Breve História da Inovação, explora o interessantíssimo conceito do "possível adjacente" [1]. O argumento principal a dar substância ao conceito cuida, grosso modo, de desmistificar as inovações revolucionárias e transcendentais, tão romantizadas. Conforme Johnson explica — e exemplifica fartamente —, as inovações que de fato prosperaram ao longo da história resultaram de um trabalho de bricolagem; foram fabricadas a partir de detritos das velhas ideias. A inovação é um futuro que paira "nas bordas do estado atual de coisas".

A Lei 14.133/2021, a chamada Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA), invoca o "possível adjacente" de Steven Johnson. A norma é fruto de um processo de amadurecimento há tempos em progresso; da sistematização de institutos já cogitados ou até já elaborados e utilizados. Enfim, é inovação, mas é também um arranjo evolutivo possível.

Deve-se reconhecer, no entanto, que o processo de amadurecimento das normas de contratação pública, que culminou com a NLLCA, não foi uniforme no país. Há, sob muitos aspectos, certo protagonismo do governo federal em regulamentação e em experimentação das práticas e institutos. Ademais, há diferenças estruturais abissais entre os entes submetidos à nova legislação. Por vezes, entre os órgãos e entidades que os compõem.

Dessa evolução desigual parecem decorrer as maiores angústias em relação à transição entre os regimes gerais de licitação. Do sentimento de despreparo germinam, aparentemente, os esforços por um prazo mais dilatado para a adequação às novas normas. Voltaremos a essa reflexão.

Se as causas das inseguranças em relação à NLLCA são, deve-se admitir, meras conjecturas, as suas consequências são agora reais. No último dia útil do mês de março, precisamente a data limite estipulada para a convivência entre os regimes, foi editada a Medida Provisória 1.167/2023, que deu sobrevida às regras anteriores à NLLCA.

Mas as primeiras impressões sobre a MP, prestes a ser definitivamente apreciada pelo Congresso Nacional, revelam que pouco se ganhou de tempo adicional para a conformação dos entes às regras da NLLCA. É pouco, pelo menos, se tomado como parâmetro o que já havia sido recentemente estabelecido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no Acórdão 507/2023-Plenário, proferido na sessão de 22/3/2023 [2].

Na oportunidade, o TCU firmou entendimento no sentido de que "os processos licitatórios e os de contratação direta nos quais houve a 'opção por licitar ou contratar' pelo regime antigo (Lei 8.666/1993, Lei 10.520/2002 e arts. 1º a 47-A da Lei 12.462/2011) até a data de 31/3/2023 poderão ter seus procedimentos continuados com fulcro na legislação pretérita, desde que a publicação do Edital seja materializada até 31/12/2023".

Além disso, a Corte entendeu que a expressão "opção por licitar ou contratar" disposta na NLLCA se materializa por manifestação expressa da autoridade competente, ao optar por um ou outro regime, ainda na fase preparatória do certame, em processo administrativo já instaurado. Os processos que não contivessem a referida opção até o final de março deveriam observar com exclusividade os comandos contidos na Lei 14.133/2021.

Em função dos entendimentos fixados, o TCU determinou ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) que procedesse aos necessários ajustes na regulamentação até então vigente sobre o assunto aplicável aos órgãos da Administração Federal Direta, Autárquica e Fundacional e aos demais órgãos e entidades aderentes ao sistema de compras do poder executivo federal, materializada na Portaria Seges-MGI 720/2023 [3], de modo a contemplar as conclusões do acórdão.

Verifica-se que a decisão do TCU se divide em duas partes. A primeira delas aclara o texto legal quanto à expressão "opção por licitar ou contratar". Pensamos que a interpretação pode e deve ser adotada por todas as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

Não descuidamos das críticas — merecedoras de atenção — ao caráter abstrato-normativo de que acabam se revestindo decisões do TCU, como essa, vinculativas. No entanto, é de se reconhecer que a aplicação da lei, no ponto, carecia realmente de esclarecimento, circunstância que justifica a atuação, nos termos da Súmula TCU 222 [4]:

"As Decisões do Tribunal de Contas da União, relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios."

Na segunda parte da decisão, a corte fixa um prazo razoável para a publicação do edital. Não se trata, aqui, de pura interpretação da norma. O TCU fez uso do princípio da razoabilidade, no âmbito das competências próprias de sua missão constitucional de zelar pelo interesse público, ao identificar "risco de excessiva dilação no prazo de aplicação das normas que o Parlamento buscou revogar" (voto do Acórdão-TCU Plenário 507/2023). Entendemos que, por isso, nesse ponto, restringe-se a aplicação da Súmula 222, de modo que a abrangência do julgado alcança somente os entes federais sob a jurisdição do órgão.

Não por outra razão, o TCU encaminhou cópia da deliberação ao Conselho Nacional de Justiça, ao Conselho Nacional do Ministério Público, à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal e à Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon). Reconheceu, ao que tudo indica, os limites de sua decisão. Ademais, primou pela segurança jurídica na publicação dos editais com base no regime anterior, na expectativa de que tais entidades pudessem induzir uma uniformidade, respeitadas distintas realidades e resguardado o interesse público.

De todo modo, a MP, tal como o julgado, estipulou o final do presente exercício como limite máximo para a publicação de editais construídos sob a égide do arcabouço normativo mais antigo. Assim, eventuais divergências quanto ao efeito vinculante do Acórdão-TCU Plenário 507/2023 perdem, em boa medida, a importância.

É certo que a MP conferiu maior elasticidade para a opção a ser feita pela administração contratante do que a decisão do TCU, conforme leitura combinada das alterações promovidas nos artigos 191 e 193 da NLLCA. A essência de ambos os instrumentos, no entanto, segue a mesma, qual seja, a de que a opção a que se refere a NLLCA deve se dar até o término da vigência do regime anterior. A lógica é simples: não há que se falar em opção por regime já extinto. Uma vez prorrogada a vigência, contudo, prorroga-se, automaticamente, o prazo para a opção por licitar ou contratar por um ou outro regime. Portanto, as mudanças advindas da MP estão, na essência, alinhadas à decisão da Corte de Contas federal.

Se, por um lado, a MP apaziguou a maioria das dúvidas sobre a abrangência e os efeitos das regras de transição dos regimes — afora garantir um prazo extra aos gestores —, por outro lado não resta claro se ela de fato resolverá todos os problemas aos quais parece ter sido endereçada.

Conforme a exposição de motivos que a justifica, a MP veio como uma resposta ao risco de paralisação nas contratações públicas "ante a dificuldade de atender de modo pleno a nova legislação diante da complexidade das alterações, em especial em municípios de menor porte" [5]. Sabe-se, ainda, que as alterações são resposta a pleito da Confederação Nacional dos Municípios e da Frente Nacional de Prefeitos, após a repercussão da Marcha dos Prefeitos ocorrida na semana de 27 a 30 de março de 2023, em Brasília. O alargamento do prazo, nos termos da exposição de motivos, permitiria os legislados "adaptar as suas estruturas e se capacitar em seus próprios regulamentos e sistemas de informação".

Ao que tudo indica, após mais de dois anos da promulgação da NLLCA, avaliou-se que os cerca de nove meses de convivência adicionais seriam suficientes à implementação pelos estados e municípios, especialmente os de menor porte.

Mas parece-nos legítimo questionar: se dois anos não foram suficientes à plena operação da lei, como, em apenas mais alguns poucos meses tudo será resolvido para que a transição ocorra adequadamente? Diante desse cenário, avulta-se, de fato, o risco de prorrogações sucessivas ou demasiado ampliadas, o que atrasaria ainda mais importantes avanços esperados com a NLLCA. Tal risco já se materializou no próprio processo legislativo para apreciação da MP, eis que a Emenda 3 à MP 1.167/2023 [6] propõe alterar o prazo citado para o final do ano de 2024.

É preciso ponderar ainda que o novo marco de vigência do regime antigo é agora a data limite, tanto para a opção do gestor pelo regime novo ou antigo, quanto para a publicação dos editais construídos com base no regime antigo. Logo, mantidas as regras da MP, a partir de janeiro de 2024 os novos editais já deverão, todos, ser publicados com base na NLLCA. Como toda licitação necessita passar por uma regular fase de planejamento, imperioso concluir que os entes devem estar preparados, e já aplicando efetivamente a NLL, muito antes do término do ano, para que possam construir os editais a serem publicados até o prazo limite.

Na prática, os entes, órgãos e entidades têm poucos meses adicionais — talvez três ou quatro, em previsão otimista — para adaptarem suas estruturas, se capacitarem em seus regulamentos próprios e implementarem as necessárias ferramentas tecnológicas à plena implementação da NLLCA. Assim, o prazo adicional poderá contribuir com a conclusão da implementação, antes da virada de chave, para aqueles que já estiverem em fase adiantada, mas não socorrerá os que não souberam aproveitar o prazo de transição de dois anos inicialmente previsto.

O risco de se constatar, ao final do novo prazo de vigência do regime antigo, que a almejada preparação não foi concluída é alto. E o custo desse processo moroso para a sociedade brasileira pode ser ainda maior. E talvez não fosse mesmo necessário lidar com esses riscos e custos.

Em primeiro lugar, como já se argumentou, a inovação promovida pela lei não é, de fato, inteiramente inédita. Ademais, o próprio modelo de organização das normas e institutos que a compõem é benéfico ao aplicador inexperiente. Em que pesem as inúmeras críticas quanto ao caráter maximalista da NLLCA, que mescla questões estratégicas de governança pública com prescrições estritamente operacionais, os caminhos delineados conduzem naturalmente o gestor a uma reflexão mais acurada acerca da finalidade e dos resultados pretendidos com as contratações. Isso, por si, é um avanço que facilita a mitigação de alguns dos riscos mais significativos associados às compras públicas.

Além disso, a lei estabelece uma maior organização institucional, com papéis mais bem definidos. Promove também a transparência e o acesso à informação em todas as fases do processo. Viabiliza, portanto, o aprimoramento da contratação, tanto por via da delimitação mais clara de responsabilidades dos agentes públicos, quanto por meio do controle cidadão.

Sob o ponto de vista estritamente operacional, não se vislumbram empecilhos incontornáveis a obstar a aplicação imediata do novo regime. De acordo com o Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas, em informação divulgada por meio do Comunicado nº 1/2023 [7], o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) "encontra-se operacionalmente apto a viabilizar a divulgação centralizada e obrigatória dos atos essenciais praticados sob a égide da NLL". O portal pode ser adotado por qualquer órgão ou entidade interessado, por meio de utilização direta ou de integração com outro sistema público ou privado contratado pelo ente.

Nem mesmo a carência de regulamentação se mostra entrave invencível. Em que pese a justa e plausível argumentação de que a regulamentação própria é essencial para refletir a realidade vivenciada pelos entes municipais e estaduais, o caminho já percorrido no âmbito federal pode ser um porto seguro de referência. A maturidade alcançada nos muitos regulamentos expedidos pelo poder executivo federal — suficientes ao pleno atendimento da NLLCA — pode ser aproveitada, como base aos regulamentos próprios dos entes [1].

Sobre o ponto, a NLLCA não apenas traz explícita a possibilidade, em seu artigo 187, de aplicação pelos estados, Distrito Federal e municípios, dos regulamentos editados pela União para a sua execução, como abre espaço para raciocínio semelhante em diversos outros dispositivos. É o caso, por exemplo, das disposições do artigo 19, incisos II e IV, que tratam da adoção do catálogo eletrônico de padronização e de modelos de minutas de editais, de termos de referência, contratos e outros instrumentos.

Verifica-se, portanto, que é possível a adoção imediata dos instrumentos, sistemas e regulamentos já vigentes, sem prejuízo da paulatina adaptação às realidades e dificuldades peculiares de cada ente e, com muito mais propriedade, a partir da vivência prática da condução das contratações com base nas novas regras. Esse caminho parece ser muito menos tortuoso e mais racional do que a preparação prévia na busca do ambiente ideal – se é que isso seria possível — para a implementação das mudanças exigidas pela nova lei. Alinhamo-nos ao ministro Benjamin Zymler na reflexão de que "o açodamento, na tentativa desenfreada de regulamentar tudo desde logo, pode não ser interessante, pois a normatização surge também da experiência e da observação de boas práticas na utilização da lei".

É preciso reconhecer que a aplicação da NLLCA significa avanços importantes no cenário das contratações públicas nacionais. A postergação da sua plena exigibilidade, ainda que avidamente desejada, pode não ser a medida mais alinhada ao interesse público. Postas, como já estão, as bases estruturais mínimas, é preciso coragem de avançar.

 


[1] JOHNSON, Steven. De onde vêm as boas ideias: Uma breve história da inovação / Steven Johnson; tradução Maria Luiza X. de A. Borges, 1ª ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

[2] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 507/2023 - Plenário. Relator: Ministro Augusto Nardes. Julgado em 22/3/2023.

[3] BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Portaria Seges-ME nº 720, de 15 de março de 2023: Fixa o regime de transição de que trata o art. 191 da Lei º 14.133, de 1º de abril de 2021, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.

[4] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Súmula TCU nº 222. Decisão nº 759/1994-Plenário. Relator: ministro Iram Saraiva. Julgada em 13/12/1994.

[5] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. EM nº 00046/2023 MGI, de 31 de março de 2023: Exposição de motivos do projeto de Medida Provisória que altera a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, para prorrogar a vigência da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, da Lei nº 10.520, de 17 de junho de 2002, e dos arts. 1º a 47-A da Lei 12.462, de 4 de agosto de 2011. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Exm/Exm-1167-23.pdf. Acesso em 14 abr. 2023.

[6] BRASIL. Comissão Mista da Medida Provisória nº 1167/2023. Emenda 3 à MP 1167/2023, de 4 de abril de 2023. Deputado Federal Paulinho Freire. União/RN. Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9309774&ts=1681305070926&disposition=inline&ts=1681305070926. Acesso em 14 abr. 2023.

[7] BRASIL. Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas. Comunicado nº 1/2023 - Portal Nacional de Contratações Públicas, de 3 de março de 2023. Disponível em https://www.gov.br/pncp/pt-br/acesso-a-informacao/comunicados/comunicado-no-1-2023-portal-nacional-de-contratacoes-publicas-pncp. Acesso em 14 abr. 2023.

 

[1] A lista completa dos regulamentos pode ser obtida no endereço https://www.gov.br/compras/pt-br/nllc