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FÔLEGO RENOVADO PARA A SUPERAÇÃO DA SÚMULA 231 DO STJ

Não foi sem entusiasmo que recebi a notícia de que o ministro Rogério Schietti convocou audiência pública para fomentar e incrementar o debate quanto à possível revisão da súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça.

A crítica ao enunciado é antiga e atravessa décadas. Captando esses sinais, no último dia 21 de março, a 6ª Turma da Corte afetou para julgamento, no âmbito da 3ª Seção, três recursos especiais (REsps 2.057.1812.052.085 e 1.869.764), os quais veiculam e discutem essa mesma questão.

Sem maiores delongas, o referido enunciado de súmula, tombado sob o número 231, e publicado em 15/10/1999, dispõe que "incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal".

O debate, ao que me parece, está apenas começando. Exigirá, como habitual, que recrutemos os melhores fundamentos — os quais precisarão, inevitavelmente, ser reconduzidos ao nível das fontes constitucionais. É que, a rigor, a matéria exige mesmo um olhar constitucional. Mas ainda bem que a questão ganhou — ou pode ganhar — um renovado fôlego.

Pois bem. A Súmula 231 do STJ, a qual, devo dizer, não é vinculante, foi sendo paulatinamente aplicada pelos tribunais e impede que a pena intermediária seja inferior ao limite mínimo estabelecido pela legislação. Esse entendimento, a meu sentir, embora remanesça quase que sedimentado por mais de duas décadas, não encontra guarida na Constituição de 1988, eis que afronta direitos fundamentais e postulados constitucionais, a exemplo da individualização da pena, da isonomia e da legalidade.

A seu turno, o Código Penal, no artigo 65, assevera que as circunstâncias ali delineadas sempre atenuam a pena. Opto por reiterar, para chamar a atenção do leitor propositadamente: o legislador foi categórico ao dizer que a pena sempre deve ser atenuante. O comando é cogente, impositivo, não admitindo exceções, sejam elas oriundas da lei, da jurisprudência ou de qualquer atividade hermenêutica que se pretenda levar a cabo.

O ministro Rogério Schietti, do STJ
Nelson Jr./STJ

De mais a mais, a compreensão diversa anuncia uma série de injustiças, desigualdades e incongruências. No âmbito de uma teoria da decisão que se pretende caracterizada por uma racionalidade jurídica, não há como emprestar, ao dispositivo, outra interpretação.

Aproveito para ilustrar a posição ora sustentada com hipóteses com as quais me deparei, na atividade judicante, um sem-número de vezes.

Para tanto, basta imaginar a situação de dois sentenciados despossuídos de quaisquer circunstâncias judiciais desfavoráveis. Na ocasião, porém, apenas um deles confessa o delito.

Diante desse cenário, não é preciso dar a volta ao mundo para perceber que a incidência da Súmula 231 do STJ desfigura a confissão, levada a efeito por um dos réus, de qualquer valor jurídico, desvelando uma verdadeira irrelevância para fins de individualização da pena.

Em outras palavras: se na primeira fase da dosimetria as circunstâncias tenham sido consideradas favoráveis ao réu, de forma que a pena-base tenha permanecido idêntica à pena mínima cominada pelo legislador, eventual presença de circunstância atenuante não surtirá efeito algum, eis que a circunstância atenuante então desprezada jamais poderá ser computada na terceira fase da dosimetria, própria somente à consideração das causas de diminuição e de aumento.

Chega-se, portanto, à conclusão lógica e inevitável: só será beneficiado com o cômputo de eventual atenuante, o réu cuja pena-base foi superior ao mínimo legal.

Noutro vértice, caso a reprimenda não seja diminuída para além do mínimo legal, não se afigura benéfico ao acusado do exemplo mencionado em linhas pretéritas, a toda evidência, confessar o delito, uma vez que se difunde sua equiparação com outro denunciado que não colabora com o Poder Judiciário. É dizer: estabelecer-se-ia uma punição maior àquele em detrimento deste último, ferindo de morte o primado da isonomia, ou ainda, conforme lição de Cézar Roberto Bitencourt[1], haveria uma verdadeira farsa:

"O equivocado entendimento de que a ‘circunstância atenuante’ não pode levar a pena para aquém do mínimo cominado ao delito partiu de interpretação analógica desautorizada, baseada na proibição original do parágrafo único do art. 48 do Código Penal de 1940, não participar do crime menos grave – mas impedia que ficasse abaixo do mínimo cominado. (...) Ademais, naquela orientação, a nosso juízo superada, utilizava-se de uma espécie sui generis de interpretação analógica entre o que dispunha o antigo art. 48, parágrafo único, do Código Penal (parte geral revogada), que disciplinava uma causa especial de diminuição, insta-se, e o atual art. 65, que elenca as circunstâncias atenuantes, todas estas de aplicação obrigatória. Contudo, a não aplicação do art. 65 do Código Penal, para evitar que a pena mínima fique aquém do mínimo cominado, não configura como se imagina, interpretação analógica, mas verdadeira analogia – vedada em direito penal – para suprimir um direito público subjetivo, qual seja, a obrigatória atenuação da pena. (...) Em síntese, não há lei proibindo que, em decorrência do reconhecimento de circunstância atenuante, possa ficar aquém do mínimo cominado. Pelo contrário, há lei que determina (art. 65), peremptoriamente, a atenuação da pena em razão de um atenuante, sem condicionar seu reconhecimento a nenhum limite; e, por outro lado, reconhecê-la na decisão condenatória (sentença ou acórdão), mas deixar de efetuar sua atenuação, é uma farsa, para não dizer fraude, que viola o princípio da reserva legal." (p. 588/589).

Nessa urdidura, é encontradiça a conclusão no sentido de que a súmula 231 é ultrapassada e inviabiliza a correta aplicação da Constituição da República, eis que anuncia uma interpretação da legislação penal em desfavor do acusado.

E vou além: o próprio STJ, pouco depois de editar a multicitada súmula, já se manifestou no sentido que ora se sustenta, conforme aresto abaixo colacionado:

"PENAL. PENA. INDIVIDUALIZAÇÃO. PENA-BASE. GRAU MÍNIMO. CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE. INCIDÊNCIA. REDUÇÃO ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL. - No processo trifásico de individualização da pena é possível a sua fixação definitiva abaixo do mínimo legal na hipótese em que a pena-base é fixada no mínimo e se reconhece a presença de circunstância atenuante, em face da regra imperativa do art. 65, do Código Penal, que se expressa no comando literal de que tais circunstâncias sempre atenuam a pena.- Habeas corpus concedido." (HC 9.719-SP, STJ, 6ª Turma, Rel. Min. F. Gonçalves, Rel. p/acórdão Min. Vicente Leal, DJ 25/10/99, grifamos)

No mais, é válido colacionar julgados de tribunais de segunda instância que não se limitaram à mera observância automática do enunciado sumulado e reconheceram a possibilidade de aplicação da pena intermediária aquém do mínimo legal. Transcrevo, por oportuno, algumas decisões de lavra de Tribunais Regionais Federais:

"APLICAÇÃO DA PENA ABAIXO DO MÍNIMO-LEGAL. POSSIBILIDADE. CONTINUIDADE DELITIVA CONFIGURADA. (...) O inciso XLVI do art. 5º da Carta Política estabelece o princípio da individualização da pena que, em linhas gerais, é a particularização da sanção, a medida judicial justa e adequada a tornar o sentenciado distinto dos demais. Assim, o Enunciado nº. 231 da Súmula do STJ, ao não permitir a redução da pena abaixo do mínimo legal, se derivada da incidência de circunstância atenuante, data venia, viola frontalmente não só o princípio da individualização da pena, como, também, os princípios da legalidade, da proporcionalidade e da culpabilidade. 6. Em consonância com a Constituição Federal de 1988 (Estado Constitucional e Democrático de Direito), e à luz do sistema trifásico vigente, interpretar o art. 65, III, "d", do Código Penal - a confissão espontânea sempre atenua a pena -, de forma a não permitir a redução da sanção aquém do limite inicial, data venia, é violar frontalmente não só o princípio da individualização da pena, como também os princípios da legalidade, da proporcionalidade e da culpabilidade. (...)” (ACR 200634000260137, JUIZ TOURINHO NETO, TRF1 - TERCEIRA TURMA, e-DJF1 DATA: 28/10/2010 PAGINA:251.) (grifei)
"(...) Respeitadas opiniões já tem se levantado no rumo da possibilidade do reconhecimento, ao exemplo da credenciada doutrina de Rogério Greco, sustentando, em síntese, que a vedação da referida redução é fruto de interpretação contra legem. Isto porque, o art. 65 do CP não restringiu a sua aplicação aos casos em que a pena-base tenha sido fixada acima do mínimo legal; ao contrário, o mencionado artigo determina que “são circunstâncias que sempre atenuam a pena”. VII - Fosse a vontade do legislador que se excepcionasse a regra prevista, não teria, o mesmo, lançado mão do advérbio "sempre", indicando aí o caminho interpretativo e a conclusão possível de que é coerente aplicar-se o dispositivo a toda e qualquer pena aplicada na primeira fase de sua fixação. Mantida a sentença no ponto. (...)." (ACR 200650010071827, Desembargador Federal MESSOD AZULAY NETO, TRF2 - SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R - Data: 23/09/2010 - Página:2010.) (grifei)

Nesse passo, por mais que existam vozes dissonantes, e novamente trazendo a lume os argumentos acima vincados, ressalto que o jurista não deve se comportar de uma forma estritamente positivista-exegética, tolhido pelos lindes expressos da lei ou da jurisprudência unificada, acomodado, tal qual um burocrata dos tempos idos. A esse propósito, em caloroso discurso, aduziu Gustavo Octaviano Diniz Junqueira:

"Estou farto de um Direito tão comedido, de um Direito funcionário público com livro de ponto expediente e manifestações de apreço ao sr. Juiz, de um Direito que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas! De resto, um Direito sem sentimento não é Direito, mas sim contabilidade, tabela de cossenos secretários do amante exemplar, com cem modelos de petições e diferentes maneiras de agradar. Quero antes o Direito dos loucos, dos bêbados, o Direito difícil e pungente dos bêbados, o Direito dos clowns. Não quero mais saber de Direito que não seja libertação!"

Também não custa rememorar as clássicas e perpétuas palavras explanadas pelo processualista italiano Piero Calamandrei[2], que, na sua sempre louvável agudez e percuciência espiritual, aventou essa lúcida digressão, in verbis:

"O ofício do jurista consiste não em tirar as leis do ambiente histórico em que nasceram, para poli-las e coloca-las belamente, como amostras embalsamadas, em suas caixinhas acolchoadas, em um sistema harmônico que dê aos olhos a ilusão tranquilizadora de sua perfeita simetria, adormecendo as consciências ao fazer acreditar que o direito vive por sua conta inatacável em um 'céu' teórico no qual as contingências humanas não podem chegar a perturbá-lo; mas sim em dar aos homens a tormentosa mas estimulante consciência de que o direito está perpetuamente em perigo, e que somente de sua vontade de leva-lo a sério e de defendê-lo a todo custo depende sua sorte terrena, e também a sorte da civilização."

Depreende-se, portanto, que o jurista estanque, acomodado e hostil a novas — e alvissareiras — práticas é uma figura que não subsiste à mais singela das análises no quadrante hodierno. Forçoso seja o aplicador do Direito aberto a novos institutos e afável à oxigenação da aplicabilidade prática daqueles já existentes.

Em outros termos: é repudiável que se lancem luzes negativas sobre a relativização da súmula 231 do STJ, como se fosse revelado um panorama obscuro e não tolerado. 

Nessa urdidura, note-se que qualquer argumento porventura existente que tente fustigar e rechaçar o entendimento ora sustentado torna-se insubsistente diante da pletora de motivos que se corporificam para o seu acolhimento.

Sob essa idiossincrática desenvoltura, urge acentuar que todo o raciocínio exposto não ressoa absorto apenas em premissas jurisprudenciais, principiológicas e lógico-argumentativas, porquanto encontra travejamento no direito posto, a saber, no próprio Código Penal.

Portanto, resta evidente o equívoco ontológico da Súmula 231 do STJ, a qual merece ser reavaliada pelo STJ, sob pena de perpetuar a inviabilização do direito fundamental à individualização da pena, e se desconsiderar o próprio postulado da isonomia.

Alfim e ao cabo, devo recordar que Reinhart Franck, em artigo noticiado em 1898, usa, pela primeira vez, a expressão "hipertrofia penal", salientando que o uso da pena tem sido abusivo, e por isso perdeu parte de seu crédito, e, portanto, de sua força intimidatória, já que o corpo social deixa de reagir do mesmo modo que o organismo humano não reage mais a um remédio administrado com excesso.[3]

Neste contexto, me parece contraditório, para dizer o menos, corroborar com um sistema que acolhe a aplicação de acordo de não persecução penal como corolário da confissão, e nega o reflexo inerente à atenuante legalmente prevista.

Numa última palavra, é digna de encômios a iniciativa da Corte de Justiça, materializada na atitude do ministro Rogério Schietti e em seus desdobramentos, seja pela convocação da comunidade jurídica para um debate mais refinado, sofisticado e plural acerca do tema, seja ainda por aventar a possibilidade de alteração do entendimento assentado, de há muito, pelo próprio tribunal.


[1]     BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Pebal. vol. 1. 11. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2007

[2] CALAMANDREI, Piero. Estudos de Direito Processual na Itália. Tradução: Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN Edital, 2003, p. 120.

[3] Breve digressão de Heleno Cláudio Fragoso no artigo “Livramento Condicional – Concurso Material – Penas Inferiores a Três Anos”, publicado na Revista dos Tribunais – RT 455/1973.