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REVISÃO DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Em 29/3/2023, foi ajuizada a ADPF 1.051 perante o Supremo Tribunal Federal, com relatoria do ministro André Mendonça, em que se busca o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional (ECI) a justificar a revisão das obrigações pecuniárias previstas nos acordos de leniência celebrados sob a égide da Lei 12.846/2013 por empresas investigadas durante a operação "lava jato".

Dentre as reações da comunidade jurídica, os críticos à ADPF 1.051 destacam possíveis prejuízos ao combate à corrupção no país, ao passo que seus simpatizantes defendem a readequação das obrigações pecuniárias (multas e ressarcimento ao Erário), segundo critérios a serem definidos pelo STF, de modo a preservar a atividade empresarial das empresas colaboradoras.

O presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade de revisão das obrigações pecuniárias previstas em acordos de leniência sob o prisma do microssistema do direito de insolvência.

Primeiro, há que se diferenciar a empresa, enquanto conjunto organizado de capital e trabalho para a produção ou circulação de bens ou serviços [1], do empresário — pessoa física ou jurídica que a controla. O princípio da preservação da empresa tem como pressupostos a proteção da atividade empresarial em razão da sua função social na geração de riqueza, emprego e renda e o estímulo à atividade econômica, independentemente da situação dos seus controladores.

A diferença de conceitos é evidente no contexto da insolvência, em que o legislador previu mecanismos de preservação da atividade empresarial, como a constituição de unidades produtivas isoladas (artigo 60, Lei 11.101/2005), ao mesmo tempo em que preza pela transparência e probidade ao prever hipóteses em que o devedor ou seus administradores são afastados da condução da atividade empresarial em casos de desvio de conduta (artigo 64, Lei 11.101/2005).

No mesmo sentido, o acordo de leniência, enquanto mecanismo auxiliar de combate à corrupção, incentiva a efetiva colaboração da empresa para as investigações de atos lesivos contra a administração pública nacional ou estrangeira, com a responsabilização da pessoa jurídica pelos atos praticados, tendo como contrapartida a isenção ou atenuação de sanções aplicáveis como multas e pena de inidoneidade, sem prejuízo da reparação integral do dano causado, pressupondo a continuidade da atividade empresarial.

O objetivo de preservação da empresa fica ainda mais claro com o acordo de cooperação técnica (ACT) [2] firmado em 6/8/2020 sob a coordenação do Supremo Tribunal Federal, que tem como oitavo princípio aplicável aos acordos de leniência da Lei 12.846/2013 a "preservação da empresa e dos empregos, considerando que a continuidade das atividades de produção de riquezas é um valor a ser protegido sempre que possível, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora e o emprego dos trabalhadores, preservando-se suas funções sociais e o estímulo à atividade econômica, observado o disposto no Artigo 5 da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, promulgado pelo Decreto 3.678, de 30 de novembro de 2000".

Portanto, no tocante à proteção da atividade empresarial, não há dissonância entre os microssistemas de combate à corrupção e de insolvência – em ambos os regramentos, o legislador cuidou de prever mecanismos de preservação da atividade empresarial que traz benefícios à coletividade como um todo (geração de riqueza e empregos, cadeia de produção, recolhimento de impostos), ao mesmo tempo em que prevê a exclusão do mercado dos agentes que não demonstram viabilidade de gerar benefícios que justificam o sacrifício coletivo, seja pela dissolução compulsória ou pela decretação da falência.

Diante da grave crise que atingiu parte significativa das empresas colaboradoras, inevitável a discussão quanto à possibilidade de revisão das obrigações pecuniárias previstas nos acordos de leniência firmados, em especial aqueles anteriores ao ACT de 06/08/2020, quando a atuação dos órgãos competentes passou a ser expressamente regida também pelo, "Nono princípio: da objetividade dos parâmetros para fixação proporcional e razoável dos valores a serem pagos a partir de, ao menos, dois tipos de rubricas: (i) rubrica de natureza sancionatória, referente às multas da Lei nº 12.846, de 2013, e da Lei nº 8.429, de 1992; e (ii) rubrica específica referente a uma estimativa justa e consensual dos valores a serem ressarcidos, considerando a necessidade de se dar efetividade à recuperação de ativos e observadas as condições subjetivas do colaborador".

Observou-se ao longo dos anos que as empresas colaboradoras, em especial aquelas investigadas no âmbito da operação "lava jato", sofreram expressivo encolhimento de suas estruturas, com significativa redução de faturamento e de postos de trabalho, tendo alguns grupos empresariais se valido da recuperação judicial como forma de superação da crise econômico-financeira vivenciada, seja em decorrência direta dos ilícitos praticados ou em razão da recessão econômica e redução dos investimentos em infraestrutura no país.

Independentemente do entendimento quanto à sua sujeição ou não ao procedimento concursal, fato é que os acordos de leniência firmados contam com cláusula de rescisão em caso de renegociação ou inclusão dos créditos em recuperação judicial, o que faria cessar os benefícios de redução de penalidades e possível declaração de inidoneidade, podendo acarretar a total inviabilidade das empresas, mesmo se bem-sucedida a novação em âmbito recuperacional.

Além da aparente impossibilidade de revisão e sem qualquer juízo de valor sobre a razoabilidade, proporcionalidade ou até legalidade das obrigações pecuniárias impostas às empresas colaboradoras no passado, deve-se analisar a real possibilidade de cumprimento dos acordos de leniência sem prejuízo da continuidade da atividade empresarial, com especial atenção ao estado de (pré-)insolvência consubstanciado nos pedidos de recuperação judicial ajuizados.

Sendo a recuperação judicial um meio de reestruturação da atividade empresarial através da renegociação de dívidas elegíveis, quase sempre com o alongamento de prazos e deságio consideráveis, o sacrifício aceito pelos credores sujeitos à recuperação judicial pode se tornar inócuo diante do vulto das obrigações pecuniárias dos acordos de leniência, cabendo a reflexão sobre a necessidade de reescalonamento também desses créditos, possibilitando o seu cumprimento e visando assegurar a consecução dos objetivos da recuperação judicial, "a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica" (artigo 47, Lei 11.101/2005).

Isso porque, da mesma forma que o plano de recuperação judicial ao qual estarão sujeitos credores trabalhistas, fornecedores, instituições financeiras, entre outros, tem como requisito de validade estar ancorado em premissas que sejam factíveis, devendo discriminar os meios de recuperação e demonstrar a sua viabilidade econômica (artigo 53, Lei 11.101/2005), os acordos de leniência devem ter critérios claros e objetivos para definição de valores e forma de cumprimento das obrigações pecuniárias que sejam condizentes com a realidade econômico-financeira das empresas colaboradoras.

Há um tênue equilíbrio a ser buscado: no tocante ao combate à corrupção, mostra-se necessária a revisão dos instrumentos utilizados, cuidando-se para que isso não possa ser interpretado como anistia dos ilícitos praticados ou perdão das dívidas decorrentes obrigações firmadas no âmbito dos acordos de leniência, sem perder de vista a necessidade de se preservar as empresas que possuem condições de atingir sua função social, de modo a compatibilizar ambos os institutos.

Ao que nos parece, a grave crise econômica enfrentada pelo país tem exigido cada vez maior empenho e criatividade dos operadores do Direito para a preservação da atividade produtiva, sendo bastante oportuna a discussão trazida pela ADPF 1.051 para revisão exclusivamente das obrigações pecuniárias previstas em acordos de leniência firmados sobretudo antes do ACT de 06/08/2020.

 

[2] Acordo de cooperação técnica firmado pelo Ministério Público Federal, Controladoria-Geral da União, Advocacia-Geral da União, Ministério da Justiça e Segurança Pública