A GRANDE CHANCE STJ APOSTA NO FILTRO DE RELEVÂNCIA PARA SÓ JULGAR O QUE DE FATO IMPORTA
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2023, lançado no dia 10 de maio, no Supremo Tribunal Federal. A publicação está disponível gratuitamente na versão online (clique aqui para acessar o site) e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa (clique aqui para comprar).
A lenda de Sísifo – aquele personagem da mitologia grega condenado pelos deuses a empurrar uma pedra até o alto da montanha para vê-la rolar morro abaixo e ter de recomeçar a mesma tarefa indefinidamente – aplica-se à perfeição ao desafio posto diante do Superior Tribunal de Justiça: uma corte de uniformização que, antes de cumprir sua função constitucional, vê condenada a julgar eternamente um número crescente de processos que sempre voltam à corte na forma de novos recursos ou desdobrados em minuciosos pormenores, alvos de novas frentes de judicialização.
Ao contrário de Sísifo, cuja punição é perpétua, o STJ tem diante de si uma chance de quebrar esse círculo vicioso. A Emenda Constitucional 125/2022, aprovada em julho, criou o requisito de relevância, um filtro recursal que vai permitir que a corte só tenha de julgar questões federais relevantes a ponto de inaugurar jurisprudência especial. Mais do que uma nova fronteira institucional – muito mais estreita e controlada do que a atual –, a nova disposição constitucional oferece ao tribunal a última chance de se transformar em um tribunal de precedentes.
“Temos a dimensão do desafio e a certeza de que se não aproveitarmos essa última oportunidade não teremos outra”, afirmou o ministro Marco Aurélio Bellizze, em evento sobre o tema. “É a última chance de o STJ se impor como uma corte superior, com uma função específica na Constituição – que não é de controle judicial”.
O STJ, de fato, já viu a pedra rolar morro abaixo algumas vezes. Nenhuma das transformações propostas desde a Reforma do Judiciário (EC 45/2004) resolveram o problema da corte. Lá se vão quase duas décadas desde que foram iniciados o uso de súmulas, a fixação de teses vinculantes em recursos repetitivos e a criação de uma cultura de precedentes, turbinada pelo Código de Processo Civil de 2015.
Essas ferramentas não impediram o aumento exponencial de recursos. Na primeira década do século XXI, quando se deu a Reforma do Judiciário, o número anual de processos julgados pela corte estava na casa dos 300 mil. Em 2022, este número quase dobrou, passando dos 560 mil julgados.
O filtro da relevância é uma solução viável porque emula uma experiência que deu certo: a repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. Quinze anos depois de sua entrada em vigor, em 2007, a sistemática deu à corte constitucional um padrão de razoabilidade para trabalhar. Os efeitos da inovação podem ser na evolução, ou involução, do acervo de recursos pendentes nos últimos anos que baixou de 90 mil em 2010 para pouco mais de 20 mil em 2022. A tendência é que o STJ se inspire totalmente no STF.
A implementação do filtro depende de regulamentação. Sob o comando do próprio ministro Bellizze, o STJ elaborou internamente um anteprojeto de lei, encaminhado ao Congresso Nacional em dezembro de 2022, para dar início à tramitação. O documento define questões relevantes do direito federal como as que, do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ultrapassam os interesses subjetivos do processo. Tudo sobre o filtro ainda depende de confirmação. A tendência é usar o ambiente virtual para julgar as arguições de relevância.
Para não apreciar um recurso, será necessária a manifestação de dois terços dos julgadores da seção. As turmas julgarão casos em que a EC 125/2022 prevê relevância presumida: ações penais; de improbidade administrativa; processos com valor superior a 500 salários mínimos; que possam gerar inelegibilidade; e que contrariem jurisprudência do STJ.
Assim, os recursos repetitivos fatalmente serão absorvidos pelos julgados considerados relevantes, inclusive porque terão caráter vinculante, mediante sua inclusão no rol do artigo 927 do Código de Processo Civil. Essa vinculação vai valer não apenas para aqueles em que a relevância for admitida, mas também para os casos em que for recusada: isso indicará que determinados temas não merecem análise no STJ e, portanto, delegará a última palavra aos tribunais de segundo grau, com todos os ônus e bônus que isso acarreta.
Os ministros terão o formidável poder de fazer a própria agenda: pinçar exatamente o que querem julgar e construir a jurisprudência conforme bem entenderem. Isso também significa que, até que esses precedentes qualificados sejam formados, a função de filtro é a que vai preponderar.
3ª Seção reunida: os Habeas Corpus corresponderam a 18% dos processos que chegaram ao STJ em 2022Lucas Pricken/STJ
Segundo o assessor-chefe do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e de Ações Coletivas (Nugepnac), Marcelo Marchiori, esse cenário vai tirar das partes o chamado “fator ‘vai que’”: vai que o tribunal aceita, vai que a jurisprudência muda. Outra consequência grave é que a decisão colegiada que analisa a relevância será irrecorrível.
Contra ela não vai caber agravo – que serve para enfrentar a decisão do tribunal de segundo grau que não admite a tramitação de um recurso especial – nem agravo interno – que só serve contra a decisão monocrática do relator. Assim, as portas do STJ estarão efetivamente fechadas.
A expectativa entre os ministros é que, após a regulamentação, o número de processos recebidos caia de 30% a 40%. A previsão bate com levantamento feito pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas, sob coordenação do ministro Luis Felipe Salomão. O grupo identificou que, em 2021, apenas um terço dos 291 mil recursos recebidos teria relevância presumida. Há, ainda, a possibilidade de o Congresso acrescentar hipóteses de relevância presumida por meio de lei ordinária.
Haverá problemas. O mais imediato é como oferecer um contraditório substancial para eleger o que é ou não relevante. Hoje, o Nugep facilita o trabalho dos ministros ao receber das instâncias ordinárias a indicação de temas a serem uniformizados ou identificá-los com ajuda da inteligência artificial. No caso da relevância, as razões e contrarrazões recursais serão suficientes para fazer esse cotejo? Como será tratada a figura do amicus curiae – que, por sinal, há muito tempo não age como “amigo da corte”, mas como terceiro interessado?
Além disso, será preciso definir o impacto dos julgados relevantes individuais sobre as ações coletivas. Nelas, uma sentença de procedência beneficia todo mundo, mas a eventual improcedência não vincula as pretensões particulares de cada habilitado.
O STJ também precisará definir como tratar o eventual desrespeito aos provimentos após a instituição do filtro e reafirmar a própria autoridade. Atualmente, a corte não admite o uso da reclamação para discutir a aplicação de suas teses vinculantes firmadas em repetitivos. O STF, que não faz essa restrição, tem vivido uma explosão de reclamações sintomática do desrespeito à cultura de precedentes.
Na visão do ministro Marco Buzzi, as questões envolvendo a relevância serão naturalmente percebidas, adaptadas e resolvidas pelo tribunal. “Alcançaremos a finalidade, que é dar mais efetividade à prestação jurisdicional nos casos”, diz. Para a ministra Assusete Magalhães, a relevância vem para aprimorar o funcionamento do STJ. “É melhor que julgue menos, mas só julgue o que for relevante”, diz. Ela avalia que hoje o tribunal funciona como uma corte de controle dos acertos e desacertos das instâncias ordinárias e assim não pode permanecer.
Um problema relevante que a EC 125/2022 não conseguirá resolver está na questão criminal. O filtro recursal em nada afetará os colegiados que estão mais abarrotados e que enfrentam maior dificuldade de uniformizar entendimentos. Isso ocorre porque há uma resistência de juízes e tribunais em seguir a jurisprudência da 3ª Seção, uma desobediência exemplificada na postura do Tribunal de Justiça de São Paulo, o que mais encaminha processos ao STJ.
Se cada um decide como quer, o resultado é mais recursos, que demorarão a ser julgados. Isso faz com que o Habeas Corpus se torne mais atrativo, por oferecer resposta mais rápida. O remédio heroico, apesar de formar precedente, não vincula posição.
O resultado é que, em 2022, o HC foi a segunda classe processual mais recebida – correspondeu a 18% dos processos que ingressaram no STJ, atrás apenas do AREsp. O ministro Joel Ilan Paciornik diz isso é decorrência de uma questão de cultura jurídica entre os operadores do Direito: aos poucos, esse cenário foi transformando o Habeas Corpus em um “santo remédio”. Para o ministro Rogerio Schietti, isso só ocorre porque o Brasil é o único país do mundo em que HC serve para discutir abusos que não digam respeito à liberdade do réu.
“Por outro lado, como não usar o Habeas Corpus?”, indaga. “Restringir esse uso é desproteger o réu”, analisa. O ministro que mais os recebeu foi Sebastião Reis: 7.446 HCs, média de mais de 20 para cada dia do ano. Integrantes da 3ª Seção relatam que chegam a receber 80 deles em determinadas datas. Além disso, somados os últimos cinco anos, os quatro assuntos mais julgados pela corte são do Direito Criminal: tráfico de drogas, roubo majorado, homicídio qualificado e prisão preventiva. À frente, inclusive, da execução fiscal, considerada o maior gargalo do Judiciário brasileiro.
Se não há saída processual, os ministros recorrem a outras estratégias: privilegiam julgamentos monocráticos e fazem apelos públicos de conscientização – dos advogados, no uso de HCs, dos juízes, no respeito à jurisprudência e dos membros do Ministério Público, contra recursos em temas já pacificados. “Todos nós somos culpados. Inclusive o próprio STJ”, diz Sebastião Reis.
Além disso, a 5ª e a 6ª Turmas têm jurisprudência muito alinhada. Já não há mais como intuir que uma é mais punitivista que a outra. Soma-se a isso o ato de o colegiado estar desfalcado: há duas vagas a serem preenchidas, decorrentes das aposentadorias dos ministros Felix Fischer e Jorge Mussi. Elas se destinarão a um representante da advocacia e outro da Justiça Estadual. O STJ receberá listas de candidatos – uma selecionada pela OAB e outra diretamente dos desembargadores interessados – e as reduzirá a listas tríplices.
Em um momento em que a corte é presidida por uma mulher – a ministra Maria Thereza de Assis Moura –, a exemplo do que acontece com a ministra Rosa Weber no STF, já se abre a discussão sobre permitir alguma paridade de gênero nas opções a serem enviadas ao presidente Lula. Essa hipótese é incentivada por ministras da casa, atualmente, apenas seis entre 33 cadeiras.
“É importante ampliar o número de magistradas nos tribunais superiores, atualmente ínfimo. Porém, é preciso que mulheres devidamente habilitadas se apresentem para a disputa, para que se possa efetuar uma boa escolha”, afirma a ministra Regina Helena Costa.
No dia 8 de abril, a Justiça brasileira perdeu o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, aos 63 anos, vítima de um câncer. Membro da 3ª Turma, deixou legado de valor inestimável para o Direito Imobiliário, tendo acumulado a relatoria de diversas decisões importantes para o setor. O ministro ocupava cadeira destinada à Justiça Estadual.
A relevância presumida das ações penais foi um dos pontos que ajudou a destravar o andamento da proposta de emenda constitucional no Congresso, durante a gestão de Humberto Martins à frente da corte, com atuação do presidente do Comitê de Assuntos Legislativos, Mauro Campbell. Ao fim e ao cabo, a aprovação da EC 125/2022 é mesmo uma grande vitória do STJ, que deve ser conduzida com o devido cuidado. A criação de um filtro recursal tal como a repercussão geral do STF começou a ser gestada há dez anos, na presidência do ministro Felix Fischer, que assumiu a direção do STJ em 2012.
Na visão de Gurgel de Faria, o filtro vai sedimentar o sistema de precedentes, sem qualquer prejuízo das partes que, eventualmente, não consigam mais acessar a instância especial. Todos os processos passarão por análise criteriosa de juiz togado e de um colegiado em segunda instância, com opção de recursos e embargos. “Seu caso vai terminar ali se o interesse for só das partes. Só vai chegar à instância especial o que tiver relevância. Essa é a ideia”, aponta.
Para Marco Aurélio Bellizze, a relevância vai dar à corte um sistema para, ao fazer a interpretação do direito federal, traçar padrões de conduta a serem seguidos pela sociedade. “Julgar muito não é ter poder. Julgar bem é”, resume. “Sem essa ferramenta processual o STJ está condenado a cumprir um infindável trabalho, uma missão mitológica assemelhada àquela de Sísifo”, avisa Assusete Magalhães. “Mas de um modo mais negativo ainda, pois há prejuízo na entrega da prestação jurisdicional.”
ANUÁRIO DA JUSTIÇA BRASIL 2023
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Edição: 2023
Número de Páginas: 261
Editora: Consultor Jurídico
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