LIÇÕES CONSTITUCIONAIS CONTRA A EROSÃO DA DEMOCRACIA
Proteger o Estado democrático de Direito e propiciar condições básicas para permitir a continuidade do processo democrático: eis aí o labor essencial para defender os fundamentos da República Federativa do Brasil e realizar princípios e direitos básicos na perspectiva da dignidade humana. Em 333 páginas, "A Constituição e Sua Reserva de Justiça — uma teoria sobre os limites materiais ao poder de reforma", obra de 1999 relançada em 2023 pelo professor doutor Oscar Vilhena Vieira, fortifica em torno de cláusulas superconstitucionais a defesa da democracia.
A editora WMF Martins Fontes reeditou uma obra que já nasceu um clássico e presta assim, nesta edição segunda, um serviço à comunidade jurídica e ao País. Legisladores, julgadores e doutrinadores do Direito nela encontram um contributo refinado para o Direito Constitucional brasileiro. Oscar Vilhena demonstra que as dimensões dos afazeres dos intérpretes em páginas refinadas, analíticas, bem pensadas e bem escritas, como, aliás, consta do prefácio assinado pelo ministro Luís Roberto Barroso.
O professor é, afinal, uma inteligência empregada em favor do Brasil. Há alguns anos, seu trabalho doutrinário sobre o Supremo Tribunal Federal vem mudando a forma como as reflexões acadêmicas passaram a perceber a Corte. Os diálogos construtivos e críticos tem sido objeto de meditação e debate.
Conceitos criados por ele, como o de Supremocracia, são hoje base para as principais reflexões sobre os limites da jurisdição constitucional no país. Com efeito, consistem em pressupostos de compreensão sine qua non para quem deseje se dedicar ao estudo dos temas da democracia, da Jurisdição Constitucional e dos Direitos Fundamentais.
A obra é jornada com método e percurso. O texto se abre numa caixa de diálogo para haurir uma autêntica reserva de justiça constitucional. Para chegar às conclusões da obra, a partir do pensamento de Jürgen Habermas, Joseph Raz e Stephen Holmes, Oscar Vilhena faz o leitor percorrer os fundamentos teóricos das limitações constitucionais que resguardam os direitos das futuras gerações de se autogovernarem, principalmente diante de ameaças autocráticas.
Pedimos licença, neste escrito a modo de algoritmo de síntese, de caráter acadêmico, para enaltecer a território elevado no qual se situa o autor, aquele reservado aos intelectuais íntegros e generosos. Como evidenciou em recente evento que organizamos em nosso gabinete (a 25ª edição da Hora de Atualização, com expoentes da vida acadêmica), é um jurista que, sem favor algum, habita região que faz intercambiar conhecimentos e experiência, aquela que congrega a teoria à práxis, como bem demonstra seu trabalho à frente da Conectas.
Da releitura que viemos de realizar, veio em nós uma recensão que busca ser fiel à metodologia e à luminosa didática que o leitor encontrará ao ler pela primeira vez ou ao revistar esse clássico[1].
O trabalho divide-se em capítulos bem estruturados, como a introdução apresenta. Primeiramente, detém-se sobre a forma com a qual o pensamento político moderno buscou fundamentar a supremacia da Constituição, perpassando a doutrina de John Locke, Emmanuel J. Sieyès e Madison, bem como Jefferson e Thomas Paine. Numa segunda etapa, trata dos problemas que se associam à adoção de Constituições por diversos sistemas políticos. Na sequência, analisa as questões práticas que emergem da adoção das limitações ao poder de reforma constitucional. Especificamente, trata das jurisprudências constitucionais dos Estados Unidos, da Alemanha e do Brasil, observando o controle da constitucionalidade de emendas às respectivas Constituições. Nos capítulos finais, a partir do pensamento de John Rawls, John Hart Ely e Habermas, constrói um argumento sólido para justificar como as limitações materiais à possibilidade de alteração da Constituição podem escapar das armadilhas do jusnaturalismo ou do positivismo normativista e suas inerentes contradições.
Ao revisitar as teorias do constitucionalismo e direito natural em Locke, Oscar Vilhena demonstra que a contradição entre direito natural e necessidade humana de construção baseada no contrato social remontam a Hobbes, passando por Rousseau. Evidencia-se, assim, como a teoria do contrato social contém a origem da ideia de poder constituinte. Aponta-se, desse modo, como a insuficiência da ideia de direito natural como amparo para a superioridade da Constituição sobre as decisões da maioria fez com que o fundamento da supremacia fosse encontrado em outro lugar. Afinal, argumenta o autor, por mais democrático que seja um procedimento constituinte, ele não é suficiente para o modelo ideal de deliberação democrática tal como descrito por Rousseau.
Portanto, aceitar a supremacia não escapa da contradição de apenas transferir a soberania para outra classe, ou seja, naquela quadra histórica rousseauniana, da monarquia para a burguesia. A experiência constitucional norte-americana (sem olvidar que até 1808 a Constituição norte-americana protegia a escravidão) foi, desse modo, inaugural; na medida em que estabeleceu rito próprio para as emendas, pelo qual tornou-se possível alterar o texto da Constituição, conforme as necessidades impostas pela história.
Dedica-se, então, ao poder de reforma constitucional e ao modo como a experiência norte-americana engendrou um mecanismo que tornasse possíveis mudanças pacíficas na estrutura básica do sistema político. Nesse sentido, aponta a criação dos processos de emenda constitucional pode ser considerada, nas palavras do autor, a institucionalização de um contínuo processo revolucionário. Logicamente também houve conflitos nesse processo e o autor indica que as dificuldades para as alterações da Constituição norte-americana levaram a Suprema Corte daquele país a enfrentar o papel de atualização do conteúdo do texto, construindo uma interpretação do texto original, gerando, como é sabido, problemas tanto teóricos, quanto práticos e ainda controvérsias no campo político.
Explorando a história norte-americana, narra como a rigidez de 1787 trouxe obstáculos para a concretização do processo de igualdade racial, mas também política e social nos Estados Unidos. A escravidão, o New Deal e o processo de impeachment oferecem o pano de fundo para análise da rigidez da Constituição e como ela pode resultar em bloqueio de medidas de incremento democrático oriundas do Poder Legislativo.
Há contraponto. Para isso, toma como ponto de partida a crise da República de Weimar, a ascensão "constitucional" de Adolf Hitler ao poder e a subversão da Constituição de Weimar e a tragédia que todos conhecem.
Eis aí o risco: o perigo de erosão do sistema democrático contido na garantia meramente formal do constitucionalismo, ou seja, daquele que admite qualquer transformação do conteúdo da Constituição, desde que realizada dentro de seus próprios limites formais. Oscar Vilhena argumenta, com acerto, que ninguém pode ser ingênuo a ponto de entender que a ascensão do nazismo poderia ter sido, por si só, evitada se a Constituição de Weimar fosse dotada de cláusulas superconstitucionais.
Ainda assim, não se pode fechar os olhos, como aponta o autor, para o fato de que a interpretação majoritária da Constituição de Weimar favoreceu a inicial ascensão de Hitler pelos caminhos legais; conclui, desta forma, que é preciso que os pressupostos essenciais ao sistema democrático sejam retirados da esfera de deliberação majoritária. E essa preservação deve se dar com o escopo de evitar uma erosão democrática. Esta é a lição que nos deixa, na visão de Vilhena, na perspectiva do constitucionalismo, por nós sublinhada, a experiência nazista: a simples regra da maioria não basta para assegurar uma associação política baseada na igualdade e na autonomia dos indivíduos.
É preciso mais. O nazismo, o totalitarismo, os prenúncios de protótipos do velho fascismo e das novas velhas ditaduras, encapsulas em vernizes de defesa da própria democracia e da liberdade de aniquilar, impõem ao Direito uma demanda ética de respeito aos direitos humanos, de salvaguarda dos direitos fundamentais e de respeito aos pressupostos substantivos e não meramente formais.
Não há verdadeiro Estado de Direito sem democracia. A Constituição é a morada dessa condição de possibilidade das liberdades, da justiça e da igualdade. É uma fortaleza obstativa da reforma que vise afetar ou abolir o Estado de Direito democrático.
Encontra-se também no livro, por isso mesmo, uma visão em retrospecto dos procedimentos de emenda e dos limites ao poder de reforma constitucional no Brasil. Revisitando a experiência das Constituições brasileiras e mesmo a história nacional, o autor dirige arguto olhar para este caminho, que deságua em 1988. Afinal, nas palavras de Oscar Vilhena Vieira, a aplicação de um texto tão amplo e complexo como o de 5 de outubro de 1988 não poderia deixar de trazer uma série de dificuldades. As tensões estão por toda a parte, como repisa José Afonso da Silva, citado pelo autor. O estudo não poupa o leitor da monumental tarefa que cabe ao intérprete, bem como da necessidade de construção de uma teoria da interpretação consistente, que evite a discricionariedade arbitrária, totalmente incompatível, na visão do autor e por nós endossada, com a meta de governo das leis, ou, para usar a expressão em inglês, rule of law.
O estudo ainda nos leva para um exame de casos da Suprema Corte norte-americana que se detiveram em questões procedimentais, em escolha de caminho que optou por evitar o controle substantivo do poder de reforma outorgado aos órgãos políticos, uma vez já demonstrado o cumprimento das formalidades necessárias e exigidas para emenda à Constituição.
A atuação e a contenção são duas faces da mesma moeda. Por isso, propõe um exame atilado da experiência alemã, perpassando os casos da "Privacidade de Comunicação" — "BVerfGE 1", de 1970, da "Reforma Agrária" — "BVerfGE 84", de 1991 e o do "Tratado da União Europeia" — "BvergGE 89", de 1993. O autor aponta, a partir deste exame, que não é possível dizer que a Corte tenha desenhado limites para o poder reformador, ou seja, que não há, em suas palavras, uma linha precisa de interpretação que decorra das decisões do Tribunal Constitucional Alemão. Nada obstante, prestigia o dever de contenção. É como Ulisses determinando aos seus homens que o amarassem ao mastro da embarcação para não sucumbir ao encanto das sereias. Esse equilíbrio e vigor sinalizam alerta, porque além da autovinculação cumpre atender, num Tribunal guardião da Constituição, para o caráter supraindividual do poder de reforma, especialmente em sede de controle de constitucionalidade.
Por essa e outras razões, o autor traça um rico percurso sobre a jurisprudência brasileira do controle de constitucionalidade, a partir do julgamento sobre o Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras (IPMF, ADI 926/93 e ADI 939/93), bem como sua interrelação com o tema do federalismo, analisando, de forma percuciente, os votos proferidos nos casos. Ações e decisões mais recentes poderiam ser agregadas a esse acervo.
O caminho percorrido nos capítulos 6 a 8, por meio da análise dos casos submetidos às cortes americana, alemã e brasileira deságua no capítulo 9, no qual o autor transporta o leitor a verificar as grandes dificuldades contidas em implementar adequadamente as limitações ao poder de reforma constitucional. Trata-se, em verdade, como demonstra o autor, de enfrentar o dilema da aplicação do direito, que demanda a compreensão, por parte da autoridade estatal imbuída deste poder, do significado dos significantes contidos nas normas jurídicas.
Assim, analisando o pensamento de Hart (Herbert. L.A., na obra sobre o conceito de Direito), Montesquieu, Kelsen, entre outros clássicos, em análise detida e profunda, Oscar Vilhena demonstra as dificuldades inerentes ao trabalho do intérprete da Constituição.
A Constituição, sendo o estatuto do político, faz a ponte entre o universo jurídico e o não jurídico, nas palavras do autor. Contudo, como escreve Vilhena, "deve o intérprete constitucional recorrer aos princípios da argumentação racional para alcançar a devida compreensão do conteúdo aberto das cláusulas superconstitucionais, isto é, fundamentar e justificar as razões, uma obrigação de índole constitucional (Constituição da República, artigo 93, inciso IX)".
Aponta o texto para o caminho necessário de apresentar alternativas para enfrentar os problemas específicos da interpretação e aplicação dos dispositivos que limitam o poder de reforma, que vem carregados de aspectos não jurídicos. Oscar Vilhena então conduz o leitor ao pensamento de Ronald Dworkin e à necessidade de perquirir uma resposta correta, dentro do Direito, bem como o melhor caminho para alcançá-la.
É no capítulo 10 que a obra descortina ao leitor o pensamento de John Rawls em sua Teoria da Justiça, na qual defende que estabelecer padrões morais passa por uma construção racional e não de uma pressuposição. Didaticamente, descreve o modelo contratual aplicado por Rawls para demonstrar os princípios de justiça e o procedimento por ele desenhado para produzir resultados sempre justos. Assim, num primeiro estágio, o modelo de Rawls compreende indivíduos racionais distantes do mundo real por um "véu de ignorância", que os mantém afastados da possibilidade de pensar estrategicamente sobre o resultado das decisões que devem tomar. Nessa posição, chamada original, as pessoas devem escolher princípios maneira imparcial, já que ignoram qual status irão ocupar ao serem inseridos na sociedade. Na visão de Rawls, estes indivíduos deveriam buscar ampliar sua liberdade e minorar os efeitos das diferenças a que todas as pessoas estão arbitrariamente submetidas.
O engenhoso mecanismo de Rawls torna-se de fácil apreensão ao leitor graças à explicação iluminada. De forma criativa, a obra conduz ao examinar como, a partir dos princípios da justiça, seria possível estabelecer uma Constituição que conteria procedimentos justos para a tomada de decisão e elementos substantivos para o controle de eventuais resultados injustos decorrentes de seus procedimentos.
Vilhena demonstra como, ao assumir a teoria da aplicação do Direito, tal como proposta por Dworkin, Rawls compreende que o papel dos tribunais está em interpretar a Constituição da melhor forma possível, por meio de seu texto, precedentes e princípios. Oscar Vilhena advoga que, neste ponto, Rawls vai além de Dworkin, ao propor que o fundamento das decisões judiciais, quando necessário, também se encontre em uma concepção política de justiça.
O contraponto às visões de Dworkin e Rawls vem na alternativa apresentada por John Hart Ely, que estaria em procurar fora do texto constitucional o preenchimento do conteúdo das normas abertas. Nesse percurso, porém, Ely não cede à alternativa do direito natural. Ao propor que a busca desses valores interpretativos esteja na própria democracia, Ely preserva a integridade do próprio processo democrático. Vilhena Vieira faz um balanço crítico da função dos tribunais como fortalecedores da democracia, a partir do pensamento de Ely. Assim, não apenas na função contramajoritária, mas também na preservação das liberdades que envolvam participação política, como liberdade de expressão, consciência, associação, voto universal e igualitário, aí está a função do Judiciário. Vilhena demonstra como o pensamento de Ely é engenhoso e não guarda contradição com o regime democrático, guiando o leitor por uma revisitação dos fundamentos da teoria e formulações de Ely, essenciais para compreensão do poder dos juízes nas democracias constitucionais.
O capítulo derradeiro sustenta que os direitos fundamentais e a separação de poderes constituem, para além de limites, estruturas que habilitam o surgimento de uma esfera de decisão pública, nas palavras do autor, na qual cidadãos livres e bem-informados podem decidir seus próprios destinos, sem interferências arbitrárias do Estado ou de outros indivíduos.
Se democracia e Constituição não se confundem, precisam, ao mesmo tempo, conviver. Enquanto a primeira diz, quando menos, com o respeito ao voto da maioria, em síntese, a segunda é limite ao poder estatal. O autor descortina as tensões inerentes ao convívio entre democracia e Constituição, na medida em que o controle de constitucionalidade cabe a juízes não eleitos, dilema que os autores americanos enfrentaram e que se repetiu no Brasil, com a adoção do controle de constitucionalidade.
A obra de 1999, ora reeditada, traz caminhos e soluções para essas questões, a partir da doutrina e da experiência internacional e aponta, no pensamento de Stephen Holmes e de John Hart Ely, soluções para este dilema entre democracia e a Constituição, desde que, como ensina o autor, a Suprema Corte limite tão somente o indispensável.
Inexiste, por definição, unanimidade na inteligência do saber acadêmico. A dúvida e o debate são motores que produzem combustão às ideias. Dissensos doutrinários são próprios do ambiente acadêmico e jurisdicional de cariz democrático. O importante é a comunhão com a visão emancipatória e transformadora do Direito, lócus que eleva as mais pungentes questões da contemporaneidade no que se diferencia doxa e episteme.
O livro se instala num espaço dialógico e contam-se mais de duas décadas desde a primeira edição, no entanto os dilemas não poderiam ser mais atuais diante do conteúdo da publicação. A experiência revela que a Constituição de 1988 tem resistido aos duros testes a que foi submetida. Havendo risco efetivo (como, de fato, ainda há) à democracia e à independência do Poder Judiciário, as respostas que 1988 oferece são categoricamente democráticas.
A leitura se recomenda, porquanto contém lições imprescindíveis para quem pretende arrostar os desafios novos e as ofensivas insepultas contra a democracia constitucional brasileira. Rememorar 08 de janeiro pretérito é suficiente memorabilia da infâmia para preservar de 5 de outubro de 1988 os fundamentos da República Federativa do Brasil.
[1] Remetemos o leitor também ao artigo da lavra do próprio autor: VIEIRA, Oscar Vilhena, Constituição como reserva de justiça. Revista Lua Nova, SÃO PAULO, v. 42, p. 42, 1997.