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ATUAÇÃO POLICIALESCA DE GCMS AFRONTA TESE E ONERA STJ COM EXCESSO DE HABEAS CORPUS

Contrariando determinações do Superior Tribunal de Justiça, a atuação das Guardas Civis Metropolitanas como se fossem forças policiais tem gerado um contexto de insegurança jurídica, com diversos Habeas Corpus sendo concedidos por causa de prisões ilegais — mas que continuam ocorrendo diariamente.

Guardas civis têm desrespeitado sistematicamente tese fixada pelo STJ
Divulgação

A profusão de HCs joga luz sobre a duvidosa eficácia dos entendimentos do tribunal superior, a desnecessária oneração a que o poder público tem sido submetido e a própria responsabilidade objetiva do Estado nessas situações em que as provas e, consequentemente, as prisões acabam anuladas.

Os casos têm enredo e tipificação semelhantes: abordagem durante patrulha ostensiva e prisão por tráfico de drogas, precedida, por vezes, da invasão do domicílio do suspeito. A atuação policialesca das Guardas Civis Metropolitanas, que não têm essa prerrogativa legal, está em discussão desde a criação dessas instituições pelos municípios. 

Em agosto do ano passado, o STJ delimitou a atuação das Guardas por meio de tese fixada pela 6ª Turma, assinada pelo relator do REsp 1977.119, ministro Rogerio Schietti, deixando claro que o trabalho da GCM no sentido de policiamento ostensivo e de busca pessoal é ilegal. O Ministério Público Federal acatou a decisão, mas o Ministério Público de São Paulo recorreu do acórdão.

A Corte superior determinou que a atuação da GCM não pode ser pautada por "fundada suspeita"; que os guardas não têm atribuição de atuação ostensiva; que as prisões e abordagens têm de ter como base "estado flagrancial visível"; e que seu trabalho tem de ter a relação clara, direta e imediata com a tutela dos bens municipais. O STJ também deixou claro que os municípios não têm poder de criar suas próprias polícias.

Desde então, uma série de prisões efetuadas por guardas de municípios foi anulada pela Corte. No entanto, nesse meio tempo, as instâncias inferiores e o próprio Ministério Público têm se esquivado de aplicar a tese do STJ, que não é vinculante.

"Existe um número muito grande de decisões que contrariam a jurisprudência dos tribunais superiores, e nós, como Defensoria Pública, temos de recorrer por dever de ofício. As decisões geram insegurança jurídica e erro judiciário, como nesses casos dos guardas municipais. E, quando o STJ intervém,  a pessoa já está presa há meses", diz o defensor público Bruno Shimizu, que atuou no caso em que a corte superior fixou tese limitando a atuação das GCMs. 

Um caso de Americana (SP) exemplifica as problemáticas decorrentes da atuação desses agentes de segurança. A Guarda Civil da cidade fazia patrulha ostensiva com cão farejador, que indicou a presença de drogas em um veículo dentro de uma residência. Os guardas, então, invadiram ilegalmente o local e prenderam um homem, que depois teve a detenção convertida em preventiva. 

A vara municipal não recebeu a denúncia, argumentando justamente o fato de que a atuação da Guarda foi ilegal. O MP-SP recorreu e, em 18 de novembro de 2022, portanto poucos meses após a jurisprudência consolidada pelo STJ, a 2ª Turma Cível, Criminal e da Fazenda Pública do Colégio Recursal da Comarca de Americana mudou a decisão e recebeu a denúncia por tráfico. Um mês depois, o TJ-SP negou pedido de Habeas Corpus, concedido posteriormente pelo STJ.

Chama a atenção a fundamentação do juízo que anulou a decisão e ordenou a recepção da denúncia: "É louvável o trabalho e o interesse da Guarda Civil Municipal em coadjuvar os trabalhos das demais polícias, Civil e Militar, no combate ao grave crime de tráfico de drogas".

O argumento vai de encontro ao que diz a lei específica sobre a atuação das guardas (Lei nº 13.022, de 8 de Agosto de 2014) e a Constituição sobre as competências das forças de segurança (artigo 144).

"Fora da capital, nas cidades do interior, a Guarda Civil acabou usurpando o trabalho da polícia. Há cidades em que a maior parte dos flagrantes é feita pela Guarda, e não pela Polícia Militar ou Civil. Esse policiamento não tem autorização legal e nem constitucional", afirma Shimizu. 

Subterfúgios da acusação
O Ministério Público e as instâncias inferiores usam subterfúgios para conseguir levar adiante denúncias e prisões decorrentes de ações da Guarda Civil. Invariavelmente, as fundamentações se baseiam em dois artigos do CPP: o que autoriza "qualquer um do povo" a prender quem esteja cometendo crime em flagrante delito (artigo 301) e o que versa sobre as infrações permanentes (artigo 303).

No segundo caso, os guardas se utilizam de interpretação dúbia da lei em relação ao crime de tráfico de drogas. O argumento — considerado insustentável pelos advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico — diz que, enquanto o indivíduo estiver portando drogas, ele está cometendo crime de forma permanente. Dessa forma, os guardas efetuam prisões em flagrante mesmo que esse não seja visível, o que contraria as teses do STJ. 

Prisões têm onerado o Judiciário e dezenas de HCs estão sendo julgados pelo STJ
Arquivo PMBC

"Eles atingem a clientela preferencial do sistema. A alegação de crime permanente só é conveniente. Guardas não invadem condomínios ou empresas para coibir associação criminosa ou estelionato", diz o advogado criminalista William Oliveira, do escritório William Oliveira, Infante, Vidotto & Alves Advogados, que atuou no caso envolvendo o cão farejador da GCM.

Para os criminalistas ouvidos pela ConJur, os tribunais superiores, em especial o STJ, mudaram de posição de alguns anos para cá. As teses de acusação de que qualquer cidadão pode efetuar prisão em flagrante e dos crimes permanentes acabaram dissolvidas nos limites impostos pela Corte, que vieram na esteira de decisões que também restringiram a invasão de domicílio por parte de agentes de segurança.

"As decisões do STJ (sobre limites de atuação das Guardas) são reflexos dos posicionamentos sobre violabilidade de domicílio e buscas pessoais. Eles foram além. É uma espécie de refinamento teórico sobre a causa provável, sobre a fundada suspeita para restringir um direito individual. A mudança na composição das turmas acabou refinando a jurisprudência, que hoje é mais técnica e profunda", diz Oliveira. 

Responsabilidade do Estado
A atuação das Guardas à revelia da lei também suscita discussões sobre a responsabilidade objetiva do Estado nas privações de liberdade que são posteriormente anuladas.

O fato de as GCMs não receberem treinamento para policiamento ostensivo e não possuírem corregedoria ou órgão de controle próprio corroboram para um cenário em que os pedidos de indenização por erros judiciais — ou abusos de autoridade — são recorrentes.

Em Salto (SP), a Justiça condenou a prefeitura a indenizar uma mulher cuja casa foi invadida por guardas municipais enquanto ela estava viajando. E o município de São Pedro (SP) terá de indenizar um homem que foi torturado após ser "enquadrado" por membros da GCM. 

O advogado Guilherme Castro, do escritório Castro Advocacia Criminal, atuou em quatro casos recentes de prisões ilegais feitas por guardas em Salto, posteriormente anulados pelo STJ com a concessão de HC ou trancamento da ação. Segundo ele, somente no último final de semana os guardas municipais da cidade fizeram 14 prisões em flagrante. 

"Temos conversado com os clientes presos ilegalmente para entrarem com indenizações para que o município possa responder de outra forma. Além das investigações ilegais, eles muitas vezes se excedem na abordagem pela falta de treinamento e também acabam danificando o patrimônio", diz o advogado. 

"A jurisprudência vem no sentido de que, se a prisão preventiva tinha respaldo na legislação no momento, não cabe indenizar. Mas, a partir do momento em que se reconhece a ilicitude da prova, a ação ilegal por parte do Estado, é possível pleitear indenização", diz o advogado William Cardoso. "Daqui para frente vamos ver mais casos nesse sentido."

Outro ponto que permeia a discussão é a oneração do Poder Judiciário com o acúmulo de casos que, por essência, não deveriam estar sendo julgados, já que não há respaldo legal para a atuação dos agentes de segurança.

"É uma irresponsabilidade institucional para com o orçamento do sistema de Justiça, que acaba prejudicando o próprio direito coletivo à segurança pública", argumenta o defensor Bruno Shimizu.

Mais uma lacuna
Enquanto as turmas do STJ delimitam cada vez mais a atuação das Guardas, uma ação de descumprimento de preceito fundamental impetrada pela Associação dos Guardas Municipais do Brasil tenta incluir as GCMs no artigo da Constituição que elenca as forças de segurança do país, suas competências e as particularidades de suas atuações.

O texto que corre no STF diz que é "insofismável que as Guardas Municipais são detentoras do poder de polícia" e que um dos principais motivos de sua "existência é justamente a de disciplinar as relações sociais, seja propiciando segurança aos indivíduos, seja na preservação da ordem pública ou mesmo praticando atividades que tragam benefício à sociedade".

A ADPF está parada por causa de pedido de vista do ministro André Mendonça, em março passado. 

Para os advogados consultados pela ConJur, a decisão via Supremo será mais morosa do que uma possível afetação de matéria promovida pelo STJ, que poderia ter efeito vinculante.

"Pela quantidade de recursos que estão subindo pelo STJ, creio que logo a corte vai afetar a matéria para delimitar as atribuições dos guardas (de forma vinculante), para assim os tribunais inferiores passarem a obedecer a lei", diz Guilherme de Castro. 

ADPF 995
REsp 1.977.119
HC 798.130
Processo 1004085-25.2019.8.26.0526
Processo 1001247-95.2020.8.26.0584