PARADOXOS E BALIZAS PARA A RACIONALIZAÇÃO DA PRESCRIÇÃO PENAL
Este artigo pretende analisar a (im)possibilidade de a prescrição penal ser obstada ou alargada em razão da desconsideração de marcos interruptivos pelo reconhecimento de nulidades processuais. A partir de um caso hipotético, adaptado de circunstâncias concretas verificadas em processos criminais recentes, propõe-se que deve prevalecer uma interpretação pro reo na análise prescricional nestas hipóteses, de modo que o afastamento de um marco interruptivo, destacadamente o recebimento da denúncia, nunca possa representar, na prática, um alargamento do lapso temporal em que é legítimo ao Estado buscar a punição pela prática do delito.
A Lei 12.234/2010 excluiu a possibilidade de prescrição da pretensão punitiva retroativa no período entre a data do fato e o recebimento da denúncia, calculada com base na pena aplicada em sentença ou acórdão condenatórios [1].
Estando afastada tal forma de prescrição pela pena em concreto, até o recebimento da denúncia é possível apenas a prescrição da pretensão punitiva abstrata, regulada pela pena máxima cominada ao delito imputado, que normalmente ocorre em tempo muito superior.
Esta supressão de parcela da prescrição retroativa é criticada por diversos autores, dentre os quais Bitencourt (2015, p. 895-909) e Dotti (2010), que afirmam que padece de inconstitucionalidade, violando o princípio da proporcionalidade e a garantia da duração razoável do processo, e representaria a retomada de um movimento ocorrido durante a ditadura militar, quando o STF e o Congresso encamparam a perspectiva restritiva, que seria depois adotada na Lei 12.234/2010, contrariando o entendimento que vigorou a partir de precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal do início da década 1970 e, posteriormente, da reforma da parte geral de 1984 (Lei 7.209/1984) até 2010 [2]. Em suma, para Dotti (2010), "A lei 12.234/10 traduz a ideologia penal que animou as ações do Estado autoritário que vigorou de 1964 a 1985".
Em que pese concordemos com as críticas, o presente texto busca apresentar propostas de interpretação para a solução de casos concretos no marco legal atual, em que a Lei 12.234/2010 se encontra vigente e é considerada válida pelos tribunais superiores [3], afastando-se pontualmente sua incidência ao gerar incoerências sistêmicas. Em outras palavras, busca-se uma redução de danos ou, na expressão de Christie (2016), limites à dor infligida pelo sistema penal em circunstâncias específicas.
Paradoxo possibilitado pela Lei 12.234/2010: caso ilustrativo
Trataremos de uma situação paradoxal, possibilitada por essa alteração legal de 2010. O afastamento de circunstância que interrompia a prescrição, levando ao reinício da contagem, pode, ao invés de tornar a prescrição mais próxima ou consumada, o que seria lógico, impedi-la ou torná-la muito mais distante. Para melhor compreensão da questão, utilizaremos um caso hipotético, adaptado de casos reais, ilustrativo da discussão que se propõe.
O indivíduo foi denunciado pela prática de corrupção ativa (artigo 333, caput, CP), com pena de dois a 12 anos de reclusão e multa, que teria ocorrido em janeiro de 2012. A denúncia foi apresentada em janeiro de 2014, sendo proferida decisão de recebimento no mesmo mês. Em julho de 2019 foi proferida sentença condenatória, com a pena de reclusão de quatro anos, substituída por duas penas restritivas de direitos. Não houve recurso do Ministério Público. A defesa apelou, requerendo o reconhecimento de incompetência absoluta, entendendo que a competência seria estadual e não federal, e absolvição.
O recurso foi provido em julho de 2021, para reconhecer a incompetência absoluta da Justiça Federal, sendo determinada a remessa à Justiça Estadual, onde o Ministério Público ratificou a denúncia anterior. A denúncia foi recebida pelo magistrado em julho de 2022, que, de ofício, analisou a questão da prescrição, afirmando sua inexistência, pois até o recebimento não teria transcorrido os 16 anos da prescrição em abstrato da corrupção ativa (artigo 109, II, CP) e teriam sido invalidados os marcos interruptivos do recebimento da denúncia e da sentença condenatória pelo juízo incompetente. Não importaria, em sua visão, a pena em concreto aplicada anteriormente, em razão da vedação inserida no Código Penal pela Lei 12.234/2010, ainda que tenha reconhecido que esta seria o teto para eventual nova condenação, em razão da vedação ao reformatio in pejus.
Análise do caso e balizas para a racionalização da aplicação da prescrição
No caso descrito, caso fosse considerado o recebimento da denúncia anterior em janeiro de 2014 para o fim de interrupção da prescrição (artigo 117, I, CP), a extinção da punibilidade ocorreria em janeiro de 2022, quando completaram oito anos após referido marco, calculados com base na pena máxima aplicável, de quatro anos (artigo 109, IV, CP).
Já na interpretação do juiz, a prescrição do delito imputado, ocorrido em janeiro de 2012, somente se efetivaria caso o novo recebimento da denúncia ocorresse após janeiro de 2028, considerando a inexistência de marcos interruptivos e o necessário cálculo com base na pena máxima cominada legalmente, diante da vedação do cálculo "pela pena aplicada" adotando termo inicial anterior à denúncia (artigo 110, §1º, CP, com a redação dada pela Lei 12.234/2010).
Nas circunstâncias expostas, a interpretação adotada pelo magistrado nos parece inadmissível, por chancelar um paradoxo jurídico contrário ao acusado, em que a perda de efeitos do recebimento da denúncia pelo juízo incompetente deixa de ser favorável, na medida em que impossibilita a consumação da prescrição.
Desnecessário discutir a possibilidade ou não de convalidação do recebimento da denúncia pelo novo juízo, prevalecendo na jurisprudência a sua possibilidade [4]. Importa para o presente ensaio que, mesmo se admitindo a ratificação dos atos inválidos pelo novo juízo, considera-se que não há interrupção do prazo prescricional no momento do ato invalidado e sim no da sua ratificação: "o ato de recebimento da denúncia praticado pelo juízo absolutamente incompetente, ainda que venha a ser posteriormente ratificado, não interrompe o curso do prazo prescricional (artigo 117, inciso I, do CP)" [5].
Essa interpretação pode ser legítima na maioria dos casos, em que será sistematicamente coerente e favorável aos acusados, mas pode gerar distorções e paradoxos, como no caso em questão. Para evitar esses efeitos nocivos, duas propostas podem racionalizar a incidência das regras de prescrição nos casos em que atos processuais são anulados e nova sentença não pode agravar a situação do acusado devido à vedação ao reformatio in pejus.
A primeira proposta consiste em considerar que a limitação da prescrição da pretensão punitiva retroativa da Lei 12.234/2010 não se aplica a esses casos específicos. Isso significa que a prescrição seria calculada com base na pena imposta na sentença anulada, levando em conta a impossibilidade de uma condenação mais grave na nova sentença, e contando a partir da consumação do crime (artigo 111, I, CP).
A segunda proposta consiste em considerar, nestas hipóteses excepcionais, válidos os efeitos do recebimento da denúncia anterior no que diz respeito à interrupção da prescrição.
A primeira proposta é a mais favorável ao acusado, embora a segunda pareça, além de tecnicamente correta, ter maior potencial de reconhecimento judicial, pois não demanda o afastamento de norma vigente — ainda que a primeira só o exija em casos pontuais, com argumentação plausível.
Ambas as propostas tentam conferir coerência ao regime jurídico da prescrição penal, de modo que não sejam extraídos efeitos aberrantes de enunciados criados para ampliar direitos de acusados. Por exemplo, o trecho de julgado do STJ citado, segundo o qual o recebimento da denúncia por juízo absolutamente incompetente não interrompe o prazo prescricional.
Segundo Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar (2011, p. 152), a "completude lógica" é pressuposto de sistemas de dogmática jurídica, exigindo o afastamento de contradições internas. O enunciado acima não é em si contraditório com as demais normas que compõem o ordenamento jurídico. Ao revés, é logicamente consistente e visa impedir a eternização da possibilidade de habilitação do poder de punir estatal diante de determinado fato, barrando a multiplicação de marcos interruptivos da contagem prescricional.
Precisamente por isso, não pode tal enunciado, em casos semelhantes ao exposto no tópico anterior, cumprir a função oposta, obstando a consumação da prescrição, hipótese em que deverá ser reconhecida a excepcional eficácia interruptiva do recebimento da denúncia pelo juízo incompetente ou, ainda, a inaplicabilidade no caso concreto da vedação da prescrição da pretensão punitiva retroativa prevista pela Lei 12.234/2010, por dever de coerência e considerando a teleologia do enunciado.
Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 168) relacionam o dever de racionalização do sistema com a interpretação a partir do in dubio pro reo, entendendo que este princípio deve necessariamente nortear a tarefa de delimitação do alcance de expressões legais que possuem "sentido duplo ou múltiplo, mas pode ser descartado ante a 'contradição da lei assim entendida com o resto do sistema'".
Assim, as propostas apresentadas se mostram necessárias não só por serem decorrentes de interpretação pro reo, mas também por solverem contradições sistêmicas internas em casos específicos.
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Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
CHRISTIE, Nils. Limites à dor. Belo Horizonte: D'Plácido, 2016.
DOTTI, Rene Ariel. A inconstitucionalidade da lei 12.234/10 – II. Migalhas. 2010. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/110584/a-inconstitucionalidade-da-lei-12-234-10---ii>. Acesso em: 19 de jun. de 2023.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. v. I. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
[1] Redação dada pela Lei 12.234/2010 ao artigo 110, §1º, CP: "A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa".
[2] Sobre o histórico da prescrição retroativa desde o Decreto 4.760/1923 cf. também o voto relator do ministro Dias Toffoli no HC 122.694, embora sua conclusão seja diversa. Neste julgamento pelo Tribunal Pleno do STF foi firmado o entendimento pela constitucionalidade da alteração da prescrição retroativa pela Lei 12.234/2010, ficando vencido apenas o ministro Marco Aurélio.
[3] STF, HC 122.694, Tribunal Pleno, relator ministro Dias Toffoli, DJe 19/02/2015.
[4] STJ, AgRg nos EDcl nos EDcl no RHC 120.590, Quinta Turma, relator ministro Felix Fischer, DJe 04/09/2020.
[5] Idem.