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NOVA INCIDÊNCIA DE IPI DE IMPORTADO NA REVENDA E A COISA JULGADA (PARTE 1)

A partir de junho 2014, com o julgamento do Recurso Especial nº 1.411.749, o STJ (Superior Tribunal de Justça) passou a entender ser ilegal a segunda incidência do IPI sobre produtos importados, vindo a reafirmar seu posicionamento em junho de 2015, com o julgamento do Recurso Especial nº 1.427.246.

Contudo, em outubro de 2015, a 1ª Seção do STJ, no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.403.532/SC, firmou a Tese nº 912 ("Os produtos importados estão sujeitos a uma nova incidência do IPI quando de sua saída do estabelecimento importador na operação de revenda, mesmo que não tenham sofrido industrialização no Brasil").

Ocorre que, entre 2014 e 2015, alguns contribuintes, inclusive por meio de ações coletivas, obtiveram provimento em recursos que debatiam a legalidade da cobrança. Tais decisões, transitadas em julgado, passaram a ser alvo de ações rescisórias propostas pela Procuradoria da Fazenda Nacional, mas foram preservadas com base na Súmula nº 343 do STF ("Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais").

Em 24/8/2020, foi firmada a Tese nº 906 de repercussão geral, tendo o STF (Supremo Tribunal Federal) negado provimento aos recursos extraordinários nº 979.626 e nº 946.648 no sentido de que "é constitucional a incidência do IPI no desembaraço aduaneiro de bem industrializado e na saída do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno".

Em 08/02/2023, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 949.297, foi firmada a seguinte tese nos Temas STF nº 881 e nº 885: "as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações". Assim, respeitadas a irretroatividade e anterioridade, a partir da publicação da ata do julgamento pelo STF em sentido diverso daquele firmado pela coisa julgada, passaria a ter efeitos a decisão nova, independentemente de ação rescisória.

A capacidade criativa das decisões, bem como o adensamento jurídico dos precedentes passam a ser fonte jurídica da adaptação das decisões subjetivas irrecorríveis aos precedentes gerais, de caráter transubjetivo, o que extrai seu fundamento de validade da isonomia.[1]

Um caso em especial, julgado poucas semanas antes da formação do entendimento do STF, chama a atenção: na Ação Rescisória nº 6.015, o STJ suspendeu as execuções amparadas na decisão transitada em julgado no Recurso Especial nº 1.427.246, que afastou a incidência do IPI na saída de bens de origem estrangeira do estabelecimento do importador.

Segundo o relator, o ministro Gurgel de Faria, em julgamento iniciado em 27/10/2021, o distinguishing foi necessário porque se tratava de coisa julgada que beneficiaria toda uma categoria (um mandado de segurança coletivo impetrado pelo Sindicato das Empresas de Comércio Exterior de Santa Catarina) sob pena de ofender isonomia e livre concorrência: "(...) a possibilidade da continuidade de seu cumprimento pode trazer graves impactos aos cofres públicos, ante a dificuldade prática e operacional de reverter as decisões judiciais ou administrativas pautadas no alegado título rescindendo, o qual, em razão de seu caráter normativo, pode ensejar um número indeterminado de beneficiados".

De fato, tratou-se de acórdão rescindendo estribado em posição reputada como correta por um curto espaço de tempo pela maioria dos membros da 1ª Seção do STJ, mas objeto daquilo que o ministro Gurgel de Faria chamou, corretamente de “(...) uma alteração radical dessa jurisprudência por um precedente obrigatório deste mesmo Tribunal”, bem como por uma decisão vinculante do STF.

Haveria, neste caso, espaço para se relativizar a aplicação da Súmula nº 343 do STF, sobretudo diante do posicionamento reiterado do STJ a respeito de sua aplicação? O fato de a ação ser coletiva, proposta pelo Sindicato das Empresas de Comércio Exterior do Estado de Santa Catarina na condição não de representante dos sindicalizados, mas de vero substituto processual, em debate a respeito de direitos individuais homogêneos de seus substituídos, seria fundamento válido de refutação suficiente para se justificar a desconsideração do óbice sumular?

O inciso XXXVI e o caput do artigo 5º da Constituição de 1988, o § 3º do artigo 6º do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), e o artigo 502 do Código de Processo Civil (CPC) prestigiam a coisa julgada, chamando o relator a atenção para o fato de que o artigo 506 do diploma processual limita seus efeitos às partes que participaram do processo, abrangência mais restrita do que aquela desinente das ações coletivas.

O ministro adicionou a seu cabedal argumentativo que, no caso de substituição processual, os efeitos da coisa julgada irão ainda além, de modo a não estarem adstritos aos filiados ao sindicato à época do oferecimento da demanda, não havendo, tampouco, a limitação territorial da jurisdição do órgão prolator, salvo no caso de expressa menção dispositiva, conforme posicionamento da própria corte (EREsp nº 1.770.377/RS, relator Ministro Herman Benjamin, 1ª Seção, julgado em 27/11/2019), o que teria por implicação direta a ofensa à livre-concorrência preceituada pelo inciso IV do artigo 170 da Constituição brasileira e, por decorrência, à isonomia. Neste sentido, para o relator, “(...) há 6 (seis) anos que os importadores de Santa Catarina estão usufruindo de tal benefício, e os do restante da Federação não”.

O relator, após votar pelo conhecimento, votou pela rescisão do julgado e aplicou a jurisprudência formada em sede de repetitivo pelo STJ no EResp nº 1.403.532/SC, de 14/10/2015, de modo a determinar a incidência do IPI no desembaraço aduaneiro e na saída da mercadoria importada do estabelecimento importador, mas a partir da data do julgamento da ação rescisória, tendo sido acompanhado pelo ministro revisor Francisco Falcão, o que suscitou pedido de vista por parte do ministro Mauro Campbell Marques.

Em seu voto-vista, o ministro considerou que o conhecimento não poderia ter outro destino senão a aplicação das teses já consolidadas nos repetitivos, restando a discussão a respeito da modulação de efeitos sobre a coisa julgada do acórdão rescindido. Identificou, ainda, que, quanto ao conhecimento, a inovação trazida pelo relator reside no grau de coletividade oponível à segurança jurídica em virtude da isonomia e da livre concorrência, o que deslocaria a questão para a análise de um embate entre princípios constitucionais a ser mediado pela proporcionalidade.

Segundo o ministro Mauro Campbell, as formulações têm relevância constitucional, mas a isonomia, para o relator, é aquela entre as empresas do país (isonomia concorrencial), ou seja, entre aquela categoria substituída e as demais empresas sem amparo judicial. Contudo, a questão ganha em complexidade, uma vez que "(...) a solução uniforme também haveria que se dar em relação àqueles contribuintes que, assim como a parte ré, obtiveram sentenças e  acórdãos transitados em julgado em seu favor no período anterior ao julgamento do repetitivo que  firmou a jurisprudência favorável ao Fisco e, considerando o período de oscilação jurisprudencial, não são poucos".

A isonomia estaria restabelecida entre o saindicato e as empresas que não ingressaram com ações, mas permaneceria violada nos casos em que há coisa julgada favorável e não há prazo para a propositura de ação rescisória, e que não seriam alcançados pelo julgamento em apreço. Em outras palavras, tal caminho argumentativo teria por implicação outra modalidade discriminatória e, portanto, não-isonômica: entre contribuintes que tiveram contra si proposta ação rescisória ou não e entre contribuintes que obtiveram em seu favor coisa julgada originária de demanda coletiva ou individual.

Em seu voto-vista, o ministro tomou por inaceitável a solução proposta pelo relator, uma vez que tal premissa teria por efeito liquidar a Súmula nº 343 do STF, em desprestígio ao inciso V do artigo 927 do CPC, que obriga os órgãos fracionários a se curvarem ao entendimento do plenário ou do órgão especial, e ao artigo 926 "(...) que exige a integridade (redução de excepcionalidades) e coerência (encaixe lógico) de nossa jurisprudência". Logo, uma vez alterada a jurisprudência por julgamento de caráter transubjetivo, restaria afastado o verbete sumular em todos os casos em que a substituição processual fosse realizada por meio de sindicato.

A coisa julgada, na acepção do voto-vista, trata-se de desigualdade tolerada pelo ordenamento em benefício da segurança jurídica, da mesma forma que ocorre diante do direito adquirido e do ato jurídico perfeito previstos pelo inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição de 1988.

A decisão avaliou, ainda, os efeitos da proposta realizada pelo relator: o estímulo de ações individuais, uma vez que se extirpa a confiança na estabilidade da coisa julgada formada em ações coletivas, em desalinho com a busca da redução da sobrecarga de processos judiciais e à razoável duração do processo.

Importante a menção feita pelo ministro, em seu voto-vista, ao REsp nº 1.118.893/MG (1ª Seção, relator ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado em 23/3/2011), em que se estabeleceu que o fato de o STF se manifestar de maneira superveniente em sentido oposto a decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, não cabendo à Administração o direito de retomar automaticamente a cobrança do tributo.

O precedente citado pelo voto, como reconheceu o próprio ministro, é justamente aquele que viria a ser discutido pelo STF no Recurso Extraordinário nº 949.297/CE (Tema nº 881 de repercussão geral). A definição do tema em apreço no sentido da cessação automática dos efeitos da decisão transitada em julgado diante de pronunciamento definitivo em ação direta ou em sede de repercussão geral, independentemente de originárias de ações individuais ou coletivas, conduziu ao aditamento do voto do ministro Mauro Campbell, unicamente para reforçar a negativa de conhecimento, uma vez que “(...) o pronunciamento do STF deriva do fato de que há ali a clara percepção que o caminho da ação rescisória não é o melhor para atingir o objetivo de isonomia”, tendo sido acompanhado unicamente pelas ministras Assussete Magalhães e Regina Helena Costa.

O ministro Herman Benjamin realizou pedido de vista e apresentou voto-vista de sua lavra no sentido da mitigação da Súmula nº 343, uma vez que o posicionamento sumular deve ser afastado "(...) nas hipóteses em que, após o julgamento, a jurisprudência, ainda que vacilante, tiver evoluído para sua pacificação", casos em que "(...) a rescisória pode ser ajuizada". Assim, deve-se buscar o posicionamento a respeito da controvérsia na interpretação da lei à época em que prolatado o acórdão rescindendo: caso ainda persista, descabe o conhecimento; caso superada, é admissível a rescisória.

No caso do IPI-Revenda, segundo o voto-vista do ministro Herman Benjamin, a pacificação ocorreu, uma vez que consolidado o Tema nº 912 no STJ, e manter a decisão rescindenda implicaria desafiar precedente qualificado em repercussão geral corporificado na Tese nº 906 no STF. Ponderou, ainda, conhecer o fato de que a relativização da Súmula nº 343 apenas ocorrerá quando a matéria (de índole constitucional) divergir de orientação firmada pelo Supremo em controle concentrado de constitucionalidade, o que não se observaria neste caso, uma vez que a decisão rescindenda é contrária às teses posteriormente firmadas nas duas Cortes.

Para o ministro, as decisões de caráter vinculante teriam o atributo de alterar a situação jurídica das "relações tributárias de trato sucessivo", sendo a própria fixação do Tema nº 912 já suficiente para interromper a eficácia da decisão definitiva. Defendeu, assim, a evolução do entendimento do STJ para que a existência de coisa julgada firmada em ação coletiva configure nova hipótese de mitigação da Súmula nº 343, motivo pelo qual acompanhou os votos dos ministros relator e revisor.

Trata-se, como se percebe, de se indagar a respeito da cessação da eficácia temporal da coisa julgada sem que se cogite qualquer vício da decisão rescindenda, ou sequer de relativizá-la, uma vez que, materialmente, a decisão persistirá. Se a expressão "trato sucessivo" parece melhor se identificar com tributos como o IPTU, o ITR, ou o IPVA, e menos com tributos incidentes sobre manifestações econômicas tais como o lucro, a renda, o faturamento, a saída de produtos industrializados ou a operação de circulação de mercadorias, está-se diante de uma relação duradoura, que se repete ou pode se repetir ao longo do tempo sob idênticos critérios de controle jurídico (sob idêntico regime).

Há, sob esta perspectiva, a necessidade de se reconhecer que a alteração dos fatos ou dos ajustes normativos que regiam uma determinada situação perturbarão diretamente os efeitos do quanto anteriormente decidido, opondo limites, portanto, no campo da eficácia. Neste sentido, conveniente se convidar à discussão o inciso I do artigo 505 do CPC para se afirmar que a alteração do posicionamento jurisprudencial a respeito de determinada matéria não constitui uma modificação no estado de fato e de direito que autorize o revolvimento das questões já decididas em uma determinada lide.

Sob esta perspectiva, a coisa julgada, ao pertencer ao plano normativo, apenas deverá ter alterados seus efeitos quando houver uma declaração judicial específica, não se tratando de um desdobramento lógico da decisão de mérito, sob pena de quaisquer alterações supervenientes legitimarem às partes relativizá-la fora do cerco judicial com supedâneo em disposições invisíveis. Explica-se: todas as decisões tributárias proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral portarão consigo a autorização implícita para se desafiar a coisa julgada.

Um lançamento tributário com fundamento em alteração de posicionamento do STF terá seus limites discutidos no âmbito do contencioso administrativo, passando-se ao largo do juiz natural, e os efeitos da coisa julgada serão avaliados segundo a ordem normativa do controle de legalidade, e não de constitucionalidade, por decorrência da separação dos Poderes, e sob os critérios da Administração, cujo fundamento será não uma disposição normativa específica como esperado, mas um silêncio prenhe de eloquência, racionalidade pouco ou nada compatível com o Direito ou com a segurança por ele reclamada.

 

[1] A afirmação deve ser temperada com os substanciosos argumentos levantados por Diego Diniz Ribeiro e Rodrigo Massud, no artigo “Igualdade para quem? Os temas 881 e 885 do STF -  a coisa julgada em matéria tributária busca proteger o contribuinte contra abusos arrecadatórios do Estado”, publicado no Jota em 09/05/2022 (link), e por Diego Diniz Ribeiro, no artigo “Coisa julgada e rescisão com base em precedentes”, publicado na Revista Eletrônica Conjur em 18/09/2022 (link).