CONSELHO FEDERATIVO NA REFORMA TRIBUTÁRIA
A reforma tributária está no seu ápice. Em 2019, quando tive oportunidade de falar para a Rádio Justiça sobre o assunto, mencionei que só haveria reforma com "muita união" dos agentes interessados e depois da "cedência" de muitos atores envolvidos no processo de construção.
Não seria tarefa fácil — como não está sendo —unir interesses da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios divididos entre grandes e pequenos, setores produtivos e econômicos, além de uma grande reivindicação do setor de serviços, que tende a sofrer maiores impactos com a proposta colocada na mesa de negociação.
Parece que o "milagre" da reforma tributária aguardada durante décadas — e intensificada desde 2019 — chegou, e ao que tudo indica a "desunião" ganhou espaço para união e esforços de negociação para atingir o resultado tão esperado, e dessa vez pelas mãos, e com um grande protagonismo, do Congresso.
A liderança de alguns parlamentares, além do presidente da Câmara dos Deputados — e aqui cito o próprio deputado Hauly que passou anos apresentando textos e debatendo o tema — parece estar sendo fundamental para a votação e aprovação.
E o governo juntou-se a essa prioridade e uniu grandes esforços. Feito que outrora ocorreu de forma mais tímida, inclusive com iniciativas daqueles que cumpriam papel importante no processo, apresentando propostas paralelas e alegando que "iremos apresentar a nossa proposta, estados e municípios e demais interessados que negociem com o Congresso".
Nesse ponto, o atual governo merece reconhecimento de congratulações: não inventou a roda e aceitou dividir o protagonismo, preferindo lapidar a pedra que estava posta no Congresso. Era o que faltava para a reforma tributária ganhar peso e novos ares importantes dentro do complexo sistema tributário brasileiro, julgado por organismos internacionais como um dos piores do mundo, e pelos brasileiros com a plena convicção que se não for o pior, concorreria com folgas para ser o malfazejo no desenvolvimento do país: sufoca a indústria brasileira, não incentiva o comércio e varejo, não colabora com o desenvolvimento da iniciativa privada, é agressivo na exigência sobre o consumo e privilegia poucos dentro do sistema, ao mesmo tempo, afoga os que ganham menos e produzem muito.
Além disso, o atual sistema causa muitas dúvidas em investidores e investimentos, no que diz respeito à segurança jurídica, afinal o planejamento tributário ainda é visto com sérias desconfianças de que se pagar menos tributo é sinal de sonegação ou de que se pretende burlar o fisco (pronto, mais um processo administrativo e judicial está formado para ser decido pelas cortes brasileiras).
A zona de conflito só aumenta. São recordes, ano após ano, referente ao acréscimo de litígios judiciais e administrativos. No Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro de 2022, foram levantados diversos dados e informações sobre a tramitação de processos em matéria tributária, e constatou-se um considerável aumento no estoque de execuções fiscais por ente federado[1].
A reforma tributária tem o desafio de trazer uma diminuição nos litígios (dúvida ainda muito grande sobre esse aspecto). Um dos pontos mais sensíveis dela se chama Conselho Federativo, onde de fato as decisões poderão aumentar ou diminuir litígios, que é vista com sérias ressalvas e desconfianças. Afinal essa proposta vai afetar o pacto federativo reforçado pela Constituição de 1988?
Façamos uma reflexão. Iniciamos pelos estados e o Confaz, ambiente de deliberação federativa, que está mais para "espaço de conflitos federativos" do que para resoluções. São diversas demandas dos estados no STF (Supremo Tribunal Federal). Chegou-se ao ponto de em 2012 (mais de dez anos atrás), o ministro Gilmar Mendes lançar o projeto de "Conciliação de conflitos federativos", envolvendo procuradores dos estados e a Advocacia-Geral da União (AGU).
Deve-se pacificar, como ainda é o desafio. Ainda, o Conselho é objeto de diversas contestações pelos municípios, já que esses não estão na sua estrutura, mesmo eles tendo a participação de 25% na cota-parte do ICMS.
Somado a isso, o próprio Supremo tem decisões que prestigiam os Municípios, a exemplo do RE 70.3352/AL e o RE 572.762-9, onde apontavam que o programa de postergação do recolhimento do ICMS seria indevido no que diz respeito ao repasse da participação aos municípios, devendo os estados compensá-los quando dessa operação.
Contudo, de forma contrária, recentemente, em janeiro de 2023, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 128.863-4, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.172), a Corte Suprema entendeu que não há inconstitucionalidade na postergação do repasse da quota do tributo decorrente de programas de benefício fiscal, já que nesse caso o imposto ainda não havia sido recolhido, diferente do diferimento tratado no Tema 42 (2008), onde ICMS já havia sido efetivamente arrecadado, e que os entes federados disputam mais uma vez a parcela constitucional que lhes cabia.
Nota-se que, pelo lado dos municípios a situação não está melhor. Apesar do ISS crescer em razão do aumento no número da prestação de serviços, desde a Lei Complementar 116/2003, mais de 500% em relação à arrecadação do IPTU, e também desbancar em crescimento o próprio ICMS durante longos anos, os municípios tiveram uma "derrota" histórica no STF, por meio das ADIs 5.835 e 5.862, e ADPF 499, que pode-lhes custar muito mais do que se imagina para o desenvolvimento local e nacional.
Liderados pela CNM (Confederação Nacional de Municípios), em busca de redistribuição do ISS das atividades das administradoras de cartão de crédito e débito, leasing e planos de saúde, os municípios tinham conquistado grande feito com aprovação da Lei Complementar 157/2016, e viram seu trabalho, de mais de cinco anos em negociações no Congresso e governo federal, atendendo regras internacionais de tributação da origem para o destino, se esfacelar, sendo declarada inconstitucional pelo STF.
Agora, os municípios podem reviver a oportunidade de 1988 e ter outra chance de ganhar mais autonomia financeira, já que que os pequenos e médios municípios não possuem espaço econômico local para buscar maiores arrecadação. A realidade não é só dura, mas existem cidades que não conseguem ter nenhuma estrutura ou pauta econômica para se desenvolver, e sobrevivem somente de repasses do FPM[2]. E extinguir esses entes federados, como foi ventilado em 2020, poderia custar muito mais caro ao Brasil no médio e longo prazo.
A autonomia federativa atual pode ser comparada a uma pessoa que tem 35 anos de vida (idade da CF), mas não tem muito dinheiro para se sustentar e passa o tempo todo pedindo recursos financeiros aos seus pais (União). É basicamente essa situação que os municípios se encontram, pois não possuem condições plenas de se desenvolver e conquistar espaços de investimentos e produtividade , e deve-se pensar na Federação como um todo e não somente nos grandes polos.
Autonomia financeira certamente proporciona muito mais liberdade e independência do que a pura e simples autonomia federativa, que com certeza deve ser respeitada. Sobre esse ponto de vista, importante as palavras do professor Paulo Caliendo em artigo muito bem fundamentado e publicado recentemente nesta ConJur, no qual alega que a alteração de matérias fiscais por Lei Complementar não afetaria o pacto federativo.
Suas palavras são no mínimo convincentes, para não dizer realista, já que a União modifica diversos mecanismos por meio de Lei Complementar e impõe aos demais entes federados regras gerais em matéria tributária, a serem obedecidas por todos eles[3], e sabe-se que a União ainda centraliza muitos os recursos financeiros, detendo praticamente 60% do bolo da arrecadação nacional.
O fato é que o atual modelo do sistema tributário deve ser revisto. Podemos projetar que essa é uma das reformas mais desafiadoras do Brasil. E precisamos, no atual cenário, emprestar um pouco de "boa-fé" e dar crédito as ideias que surgiram ou estão surgindo, mas ao mesmo tempo provar a reflexão ao bom debate para encontrar meios de superar as dificuldades enfrentadas.
Por fim, o que se espera do Conselho Federativo é que esse não seja um palco para grandes guerras federativas entre estados e municípios, mas de verdadeiras resoluções federativas, e que por certo e óbvio terá disputas políticas normais em qualquer federação. Porém, a disputa política não deve jamais afetar o objetivo final: desenvolver a nação brasileira.
[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, de 2022. Brasília: CNJ, 2022, p. 112. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-contencioso-tributario-final-v10-2.pdf.
[2] Para mais da metade dos Municípios (2.698 cidades), 90% ou mais da receita corrente de 2020 advém de repasses da União, de Estados ou de outras instituições públicas. Já para outras 1.642 cidades têm de 80% a 90% da receita oriunda de transferências de outros entes da federação, conforme estudos publicados pela Tesouro Nacional: https://siconfi.tesouro.gov.br/siconfi/index.jsf
[3] Caliendo, Paulo, In: da necessidade de uma reforma tributária constitucional. Publicado no https://www.conjur.com.br/2023-jul-05/paulo-caliendo-reforma-tributaria-constitucional.