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AUDIÊNCIAS E CONSULTAS: VINCULAÇÃO COGNITIVA E EXPERIMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA

Instrumentos de diálogo e monitoramento, como a audiência pública e a consulta pública, promovem espaços de interação e participação que aproximam indivíduos, empresas e a administração pública. Previstos em caráter geral na Lei nº 9.784/1999, porém percebidos como simples faculdades da administração pública, aceitos como veículos participativos compatíveis com a discricionariedade administrativa procedimental, esses instrumentos podem ir além do caráter democratizante e servir como verdadeiras ferramentas de experimentação administrativa.

Experimentar, por natureza, exige o enfrentamento do desconhecido. Na etapa preparatória, comum a qualquer exploração, a obtenção do máximo de informações é essencial para aumentar as chances de sucesso e impedir atuações futuras inconformes e surpresas ao se tatear no escuro. A experimentação depende e é motivada por informações. Como sustentado em coluna anterior, a "experimentação opera em pequena escala e visa a favorecer o aprendizado fatual e incremental, a descoberta das variáveis relevantes e a coleta de informações antes da decisão regulatória geral ou da generalização de práticas bem-sucedidas" [1]. Em síntese, na fase de planejamento da experimentação administrativa deve-se extrair o máximo da informação disponível, avaliar as práticas usuais, ponderar custos e benefícios, considerar o contexto local e a opinião dos usuários para avançar na experimentação. A administração pública é mais do que executar a lei de ofício — exige ouvir, observar, monitorar e planejar mudanças gerais, administrativas ou legislativas, e alterações experimentais ou incrementais, exigentes do aprendizado com os erros e acertos do experimento.

Os instrumentos de diálogo representam exatamente os mecanismos que permitem a administração pública divulgar, captar e processar informações em procedimento dinâmico de troca com privados, sejam eles administrados em geral ou entidades diretamente interessadas no processo. Tanto a consulta pública quanto a audiência pública são previstos na Lei de Processo Administrativo (LPA) — Lei nº 9.784/1999 — como instrumentos de instrução para "manifestação de terceiros" (artigo 31) e para "debates sobre a matéria do processo" (artigo 32), respectivamente. Assim, ambos são espaços de diálogo promovidos por autoridade administrativa para obter informações de pessoas e entidades externas — a consulta pública através de contribuições escritas e a audiência pública por meio de contribuições orais.

Além destas previsões expressas a respeito da audiência pública e da consulta pública, a LPA também permitiu em seu artigo 33 o estabelecimento de "outros meios de participação de administrados, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas". A abertura estabelecida em lei para instrumentos inominados diversos da audiência e da consulta pública, possibilita que a administração pública inove e experimente formas que possam contribuir para seus objetivos [2].

Essa discricionariedade conferida à Administração proporciona múltiplos usos dos instrumentos de diálogo público-privado para trocas de informações, adaptáveis aos objetivos de cada caso. Irene Nohara e Thiago Marrara citam como exemplo de outros meios de participação a realização de "conferências, encontros, enquetes pela Internet, consultas eletrônicas" [3], mas pode-se apontar também a sondagem de mercado e o roadshow.

Portanto, a LPA ao disciplinar o processo administrativo federal de forma geral e aberta, deixa espaço não só para a escolha do instrumento utilizado, como também para a instituição de prazos, procedimentos e coordenação da sua realização [4]. A maleabilidade do procedimento destes instrumentos e a discricionariedade conferida à administração pública, possibilitam o uso estratégico e intencional dos instrumentos a fim de alcançar objetivos específicos.

Observa-se que cada um dos instrumentos de diálogo pode ser promovido em diferentes espécies, dependendo da sua finalidade e público-alvo. Pode-se identificar consultas públicas ou audiências públicas: (1) técnicas, voltadas para especialistas em determinados assuntos [5]; (2) com a população impactada, visando colher a opinião dos diretamente afetados [6]; (3) com possíveis interessados, buscando escutar players com interesse direto na questão; e (4) livres, abertas a todos.

As informações captadas pelos instrumentos de diálogo citados e sua utilidade prática para administração pública dependerão de escolhas conscientes e intencionais, bem como do procedimento adotado. É preciso saber qual a finalidade visada para identificar a melhor forma de alcançá-la — o que inclui a escolha da espécie de instrumento de diálogo, do momento para sua realização, e do público-alvo. Assim, antes de promover um espaço de diálogo, o gestor público deve se perguntar (1) o que quer descobrir, (2) quem será capaz de proporcionar tal descoberta, (3) qual instrumento possibilitará captura de informações com maior qualidade, e (4) qual o melhor momento para conseguir as informações desejadas.

A resposta de cada uma dessas perguntas impacta o resultado da outra, sendo a identificação da finalidade determinante para as escolhas procedimentais. Assim, sabendo o que se quer descobrir e quem pode fornecer a informação desejada, é possível identificar o melhor instrumento de captura de informações.

Assim como a finalidade, o público-alvo e a espécie de instrumento de diálogo utilizado, o tempo é um fator crucial para a efetividade do processo de captação de informações. Como apontado em artigo anterior, a "coordenação de interesses, informações, recursos e competências no âmbito da Administração Pública pressupõe a programação do tempo de tomada das decisões" [7]. Assim, se o espaço de diálogo ocorrer cedo demais, pode ocorrer ausência de parâmetros seguros e informações confiáveis suficientes para que os participantes tenham noção do proposto e possam contribuir de forma relevante. Já se ocorrer tarde demais, com tudo praticamente encaminhado, pode não haver muito espaço para contribuições e mudanças de rumo. Estabelecer quando é cedo ou tarde demais também dependerá do objetivo e da função da audiência ou da consulta.

Vale destacar que a utilização de instrumentos de diálogo não precisa se limitar a um único momento em uma oportunidade de experimentação — pode ocorrer em diversos momentos do processo [8], inclusive com a mistura de diferentes instrumentos desde que faça sentido no caso específico e colabore para uma finalidade determinada e condizente com as escolhas.

Coletadas as informações que auxiliarão na tomada de decisões durante a experimentação administrativa através de instrumentos de diálogo público-privado, outro ponto importante é o estabelecimento do nível de vinculação da administração pública ao utilizar estes instrumentos.

Pode-se falar em vinculação para a realização em si da audiência pública ou da consulta pública (artigo 10, VI da Lei 11.079/2004), bem como de vinculação para apresentação de resposta fundamentada (artigo 31, §2º e artigo 34 da Lei 9.784/1999), mas a Administração não está vinculada a acatar as contribuições. Assim, o dever de publicidade vai além de meramente informar sobre o objeto do procedimento de diálogo e de divulgar as contribuições e o que ocorreu, sendo necessário prestar respostas e explicar o encaminhamento. O que não significa que a administração pública deva acatar as contribuições recebidas.

Em verdade, os instrumentos de diálogo participativo, como a audiência pública e a consulta pública, não podem ser apenas encenações teatrais administrativas. Criam vinculação cognitiva, pois obrigam o gestor a avaliar e a responder às manifestações apresentadas, ao menos de forma agrupada. Essa é uma decorrência lógica da autovinculação administrativa e deriva do ato de convocação do instrumento de diálogo e monitoramento. Os instrumentos referidos não criam vinculação decisória, mas a ausência de resposta e consideração das manifestações apresentadas pode ensejar a nulidade desses eventos administrativos, o que em alguns casos pode paralisar procedimentos e iniciativas governamentais, quando estes instrumentos participativos sejam de realização obrigatória (vg, artigo 2º, XIII, e artigo 40, § 4º, I, da Lei Federal 10.257/2001).

A avaliação sobre a repercussão das contribuições no plano decisório cabe ao gestor, que pode optar por um rumo a seguir mesmo que ocorra maioria de contribuições em sentido oposto. Nesse caso, há ônus maior para explicação da decisão contrária. Por óbvio, no caso de a decisão ser alinhada com as contribuições recebidas, essas, naturalmente, acabam reforçando e servindo de justificativa parcial para a decisão, diminuindo o ônus argumentativo e explicativo da Administração.

No documento "Avaliação da participação na elaboração de políticas públicas" da OCDE, colhe-se:

"El propósito más frecuente es el de respetar la información, la consulta y la implicación de los ciudadanos? La respuesta es no. Es tan relevante evaluar el proceso de control y monitorización como el de aprendizaje y el de obtención de apoyo para las decisiones" [9].

A apresentação das respostas da administração pública deve ser cuidadosa com o conteúdo da justificação, bem como adotar formas acessíveis. A comunicação é um aspecto extremamente relevante dos mecanismos de diálogo público-privado tanto em momento prévio de apresentação de informações pela administração para os participantes, quanto em momento final com o retorno e encaminhamento dos resultados. As respostas podem ser politicamente sensíveis, de forma que uma boa comunicação, com respostas completas e bem fundamentadas, bem como a escolha de momento oportuno para a divulgação dos resultados, pode fazer toda a diferença na sua consequência para o projeto. Portanto, deve-se contar com estratégia de comunicação — o que implica também saber com quem se está dialogando, que informações se quer passar, e qual o objetivo visado.

Dadas as considerações apresentadas, entende-se que a utilização de instrumentos de diálogo em processos administrativos consiste em processo de troca de informações e aprendizado mútuo, porém possui repercussões administrativas relevantes. Aqueles que participam aprendem sobre o projeto, a política pública envolvida e as intenções da administração pública, enquanto esta aprende sobre a recepção do que apresentou, a opinião dos participantes, a existência de interesses envolvidos, tendo a oportunidade e a obrigação de considerar as manifestações recebidas.

Audiências e consultas públicas municiam processos de experimentação administrativa e podem servir de base para instrumentos diversos com propósitos semelhantes, mais ajustados ao contexto, que igualmente obrigam a administração a lhes conferir consistência e resposta. Eles auxiliam a administração pública a compreender os interesses em jogo, os interessados e contrainteressados, elementos essenciais para que se possa testar práticas experimentais, inovadoras e em regime de monitoramento. Sabe-se que a lei não pode conter toda a ação administrativa e entender a administração pública como agente capaz de inovar impõe à função administrativa a necessidade de experimentar como atividade diária comum e não só como resposta à momentos de crise [10]. Experimentar não é lançar precedentes, protocolos e práticas estabelecidas pela janela. Experimentação e inovação podem partir de chão sólido e estável e nem sempre há necessidade de reinventar a roda.

Os instrumentos de diálogo previstos na LPA são exemplos de processos administrativos que podem ser utilizados como ferramentas experimentais na gestão pública. A identificação do potencial uso desses mecanismos obriga também a reconhecer um grau mínimo de vinculação cognitiva que deles deriva. Resta à administração pública assumir que no seu interior cabem inovações criativas na teoria e na prática da gestão [11], porém também a responsabilidade de preservar a integridade e a relevância social dessas iniciativas, respondendo ao cidadão que aceita ao seu convite para opinar e avaliar políticas e iniciativas públicas em processos administrativos participativos.

 

[1] MODESTO, Paulo. Direito administrativo da experimentação: uma introdução. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-14/interesse-publico-direito-administrativo-experimentacao-introducao

[2] Destaco mais uma vez a importância da autonomia legislativa dos entes da federação no processo administrativo. Como destaquei em artigo anterior: "Preservada a autonomia legislativa poderão as unidades subnacionais inovar na matéria administrativa, sem amarras centralistas, exercitando o papel também de "laboratórios de experimentação" em matéria processual administrativa, respeitados os princípios constitucionais obrigatórios". MODESTO, Paulo. Federalismo administrativo, processo e experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/interesse-publico-federalismo-administrativo-processo-experimentacao.

[3] NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. Processo administrativo: Lei nº 9.784/99 comentada. São Paulo: Atlas, 2009. p. 244.

[4] Como apresentado em artigo anterior: "Por óbvio, preservada a autonomia administrativa da própria União, cabe a ela disciplinar o processo administrativo federal, mas não legislar sobre prazos, procedimentos, coordenação orgânica, recursos administrativos ou legitimados para o processo administrativo com eficácia nacional abrangente, de modo a alcançar as demais unidades da Federação". MODESTO, Paulo. Federalismo administrativo, processo e experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/interesse-publico-federalismo-administrativo-processo-experimentacao.

[5] A título de exemplo, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo realizou audiência pública especializada voltada para a comunidade cientifica durante o processo de licitação do projeto de concessão do Zoológico de São Paulo e do Jardim Botânico (https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/2020/04/sima-convoca-comunidade-cientifica-para-audiencia-sobre-concessao-do-zoo-e-botanico/).

[6] A título de exemplo, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo realizou audiência pública com objetivo de "apresentar o projeto de concessão e receber contribuições das comunidades locais" durante o processo de licitação do projeto de concessão do Parque Estadual Turístico Alto Ribeira – PETAR.

[7] MODESTO, Paulo. O silêncio administrativo como técnica de experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, jan. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-27/interesse-publico-silencio-administrativo-tecnica-experimentacao.

[8] O Relatório de Pesquisa "Potencial de Efetividade das Audiências Públicas do Governo Federal" produzido pelo Ipea cita dentre as soluções de aperfeiçoamento a realização de audiências em mais de um momento: "A partir da análise das dimensões expostas, é possível elaborar algumas sugestões para o aperfeiçoamento das APs como espaços participativos de interação entre Estado e sociedade. Em primeiro lugar, a ocorrência de audiências em apenas um momento do processo decisório de Belo Monte prejudicou a efetiva participação no caso aqui estudado. Como mencionado, as audiências ocorridas seguiram a legislação, que prevê audiências no âmbito do processo de licenciamento ambiental no momento anterior à emissão da LP com o objetivo de discutir o EIA-Rima. Entretanto, a limitação da ocorrência de audiências em um momento específico para discutir projetos tão polêmicos e complexos, como é o caso de Belo Monte, gera dois problemas: de um lado, a sociedade reivindica uma participação ao longo de todo o processo decisório; e, de outro, técnicos do Ibama afirmam que muitas informações importantes são definidas em período posterior à aprovação da LP". IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Potencial de Efetividade das Audiências Públicas do Governo Federal. Relatório de Pesquisa. Brasília, 2013. p. 120.

[9] Evaluación de la participación pública en la elaboración de políticas públicas [Texto impreso] I traducción de María José Burgos. _l.a ed.- Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública: Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE), 2008 -142 p.; 24 Cffi- (Estudios y Documentos).

[10] UNGER, Roberto Mangabeira. A constituição do experimentalismo democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 257, p. 57-72, 2011. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/8584

[11] "La gestión pública debe reconocerse como el principal ámbito de innovaciones creativas en la teoría y la práctica de la Gestión". González, José Juan Sánchez. Gestión Pública y Governance. Instituto de Administración Pública del Estado de México. Ioluca, México, 2002. Mariana Mazucatto em seu texto "O Estado empreendedor", por igual, demonstrou o papel central do Estado para diversos desenvolvimentos tecnológicos, de inovação e pesquisa. Cf. MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor. São Paulo: Portfolio Penguin, 2014.