ARTIGO: 33 ANOS DO ECA - ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E OS DESAFIOS DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
Entre os anos de 1979 e 1989 a Organização das Nações Unidas (ONU) concebeu aquilo que seria o marco referencial ético para a transformação da percepção social dos direitos da criança e do adolescente: a doutrina da proteção integral.
A doutrina da proteção integral foi o fundamento teórico e político que encarnou o entendimento de que criança e adolescente são sujeitos de direitos, dotados de plena condição cidadã e como tais devem receber da família, da sociedade e do poder público, prioritariamente, cuidado, atenção e proteção para o seu pleno e peculiar processo de crescimento humano e social.
Esta orientação internacionalista soprou fortemente no Brasil através da Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), firmada pelo país e incorporada ao novo ordenamento jurídico em 1989.
Mas foi no processo de redemocratização do Estado brasileiro, instaurado em 1985 e institucionalizado com a nossa Carta Política constitucional de 1988 que estabeleceu este compromisso através do Artigo 227, quando apontou normativamente que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Na esteira de consolidação do marco jurídico dos direitos da criança e do adolescente, formando uma tríade, surge em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8069/90, que vai esmiuçar e detalhar as regras e caminhos para a efetivação deste novo valor social instaurado na democracia brasileira, os direitos humanos infantojuvenis.
E é esta norma que está completando 33 anos no dia 13 de julho de 2023!
Na toada desta análise temos então a Constituição Federal do Brasil de 1988, a Convenção dos Direitos da Criança de 1989 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, sendo a âncora normativa de sustentação da cidadania dos brasileiros e brasileiras menos de dezoito anos!
Isso nos permite afirmar no contexto da ciência política que o tempo dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes é o tempo da democracia brasileira.
Nas asas libertárias da década de noventa, sob a inspiração da denominada Era dos Direitos de Bobbio, no qual se pontuava a imperativa necessidade de efetivar e garantir direitos, nasceu, a partir do marco normativo dos Direitos das Crianças e Adolescentes, o denominado Princípio de Cooperação, delineado no Artigo 227 da Carta constitucional de 1988.
Ao mencionar que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente” os direitos humanos infantojuvenis temos não somente a ruptura do marco doutrinário da situação irregular que instituía o controle social e punitivo da pobreza através da judicialização da tutela contra os outrora chamados de “menores” pela lógica do labelling approach, mas a inserção legal de dois novos atores que assumem a obrigação de atuar pela proteção integral da criança e do adolescente.
Esta transformação dada pela passagem do marco da doutrina da Situação Irregular para a doutrina da Proteção Integral, acaba por promover uma democratização na espiral de proteção da criança e do adolescente, colocando para além do poder público e a família, a sociedade civil.
Parte da literatura especializada acredita que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8069/90, não desenvolveu com ênfase política, modelos e formas de participação da sociedade na atuação da proteção integral infantojuvenil, para além do princípio difuso de que devemos estar todos e todas atentos para proteção e cuidados cotidianos.
Como uma exceção à regra, testemunhamos ao longo dos 33 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente dois modelos experimentados de participação da sociedade na proteção da criança e do adolescente, sendo eles os Conselhos de Direitos (municipais, estaduais e nacional) e o Conselho Tutelar na cidade.
O Conselho de Direitos, modelo clássico da chamada democracia representativa, no qual a sociedade civil organizada através de entidades e movimentos sociais se faz presente para com o poder público formular e controlar as políticas públicas para crianças e adolescentes no país, encontra base legal nos artigos 86 e seguintes do ECA.
Numa síntese abreviada de análise de conjuntura destas três décadas, verificamos que o grau de participação da sociedade (geral) sucumbiu a um modelo esgarçado na ideia da representatividade institucional, deixando o cidadão para trás, distante da perspectiva inicial de interatividade e participação no espaço do Conselho de Direitos.
Com isso, evidenciou-se uma ideia de “ocupação popular” em detrimento da esperada “participação social”, rebaixando muitas vezes o Conselho a ser um espaço dos projetos institucionais em detrimento de um projeto político amplo organizado para o enfrentamento do desafio da proteção integral de crianças e adolescentes.
O Conselho de Direitos é imprescindível para sociedade e é imperativo refazer o caminho para buscar formas contínuas de integração da sociedade, dialogando diretamente com os cidadãos para além das representações institucionais que, possuem importância e significado, mas sozinhas não cristalizaram a democracia participativa da sociedade sonhada em 1990.
Nesta linha de análise encontramos o Conselho Tutelar, a quem podemos atribuir o maior desafio da democracia social da criança e do adolescente.
O Conselho Tutelar surge como a maior resposta da sociedade brasileira no processo de redemocratização do Estado brasileiro, na órbita dos Direitos das Crianças e Adolescentes.
Trata-se da desjudicialização, o afastamento primário do Poder Judiciário para dar lugar a um órgão público que investe de autoridade formal lideranças comunitárias da sociedade comprometidas com a proteção integral e efetiva da criança e do adolescente.
Assim se consolidou na Lei nº 8069/90, através do Art. 131: O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.
Não há dúvidas que o que se colocou há 33 anos como regra política foi um dos mais desafiadores projetos de participação social e popular numa agenda social.
Ocorre que, ao longo dos anos, verificamos uma contaminação desnaturalizadora deste processo político com várias formas de desmonte deste da participação da sociedade na escolha de seus representantes.
A principal delas é a falta de investimento nos processos de escolha para que ganhassem ampla integração da sociedade. É ínfima a participação dos eleitores no processo de escolha dos conselheiros tutelares.
O poder público, numa estratégia burocrática e tecnicamente meritocrática, fez do processo de escolha dos conselheiros tutelares um fardo legal sem dar o contorno de que se trata de um legado da democracia e que precisa ser cuidado como tal.
Soma-se a isso, a ingerência de vários modelos de abuso de poder no processo político de escolha dos conselheiros tutelares, visando aparelhar o espaço do conselho para fins estranhos à proteção integral de crianças e adolescentes.
Mais recentemente, temos identificado uma nova modalidade de abuso de poder, para além da clássica e conhecida eleitoral, o “abuso de poder religioso".
Trata-se de uma ingerência indevida com investimentos financeiros por parte de denominações religiosas com a perspectiva de eleger conselheiros tutelares para estender para o espaço do Conselho Tutelar suas agendas de valores, intervindo assim nas medidas de proteção na comunidade.
Este cenário, altamente temerário, coloca em risco o projeto político do conselho tutelar como uma expressão livre da comunidade e impõe uma intervenção imediata dos órgãos competentes, inclusive o Ministério Público, visando uma correção de rumos.
Em 9 de maio de 2019, ficou estabelecido através da Lei nº 13.824, que o processo de escolha dos conselheiros(as) tutelares no Brasil, seria nacional e unificado, com mandato de quatro anos para os escolhidos.
A recém aprovação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no dia 13 de junho deste ano para orientar o apoio dos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE) no processo de escolha dos conselheiros tutelares no Brasil, chega em boa hora e pode ser um ator importante para além do empréstimo de suas urnas, válidas, eficazes e imunes de fraude.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) deve pensar este processo para além do que estabeleceu na Resolução nº 231, em 28 de dezembro de 2022. Se não houver uma estratégia, menos normativa e mais política, convocando os movimentos sociais para que esta pauta vá além de suas fronteiras, visando uma ampla mobilização da sociedade, seguiremos na curva crescente do esvaziamento institucional do conselho tutelar, colocando em risco o mais importante projeto político da democracia brasileira para nossas crianças e adolescentes.
E quando o Estatuto da Criança e do Adolescente completa seus 33 anos em 2023, é tempo de renovação do compromisso da família, da sociedade civil e do poder público com a democracia, tão desafiada ultimamente, mas resistente aos arroubos autoritários.
*Artigo de Carlos Nicodemos, presidente da Comissão de Direito Internacional da OABRJ e membro das comissão de Direitos Humanos do CFOAB do Conselho Nacional de Direitos Humanos.