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ESPELHAMENTO DO WHATSAPP É MEIO LÍCITO DE OBTENÇÃO DE PROVA

Diante da notícia de uma possível violação ao ordenamento jurídico-penal, surge a investigação criminal como uma ciência cujo objetivo é a reconstrução do evento supostamente criminoso, viabilizando, assim, a comprovação ou não da infração penal noticiada (notitia criminis), bem como a sua respectiva autoria.

Justamente por isso, a investigação criminal precisa ser compreendida e analisada sob seu aspecto científico, demonstrando que a apuração de infrações penais não se desenvolve de forma aleatória e atécnica, exigindo, pelo contrário, conhecimentos específicos imprescindíveis ao "esclarecimento constitucional" do fato apurado, vale dizer, sua elucidação nos limites impostos pela Constituição da República e demais atos normativos [1]. Como bem apreendido por Santos:

"Constitui tarefa da investigação criminal manejar elementos observacionais da infração penal, ou seja, os vestígios, os indícios, os rastros, as evidências, então tornam-se relevantes os elementos espaciais, causais e modais que envolvem a comissão delitiva, para com isso desenvolver estratégias pragmáticas para a descoberta do ato criminoso e para a recolha e interpretação destes elementos materiais deixados pelo autor, ainda na fase evanescente da fenomenologia criminal, contudo, numa  acepção preventivista é possível interpretar os sinais deixados para possibilitar o desenvolvimento de procedimento investigatório que evite a consumação delitiva" [2].

Percebe-se, portanto, que a investigação criminal é uma ciência pautada pelo ordenamento jurídico, que estabelece o objeto de apuração (crime ou contravenção penal), a forma de apuração (exemplo: Termo Circunstanciado, Inquérito Policial, Procedimento de Apuração de Ato Infracional, Inquérito Policial Militar etc.) e os seus limites (ex: não se admite a obtenção de prova por meio de tortura).

Por isso é preciso superar a falsa dogmática dicotômica da verdade formal e verdade real no processo. Atualmente assume-se que "a verdade almejada pelo processo é uma 'verdade processual', ou seja, 'uma verdade judicial, obtida por um método processualmente legítimo' e que ‘nada mais é do que o estágio mais próximo possível da certeza'" [3].

Tendo em vista que se trata de uma atividade estatal que, não raro, limita direitos e garantias fundamentais, a investigação deve, necessariamente, desenvolver-se em conformidade com o Direito, pois todo elemento de prova identificado ilegalmente estará comprometido e poderá colocar em risco a própria consecução da justiça.

É mister consignar nesse ponto que a investigação criminal é limitada pelo ordenamento jurídico, mas os métodos utilizados ao longo da apuração, bem como a sequência das diligências a serem realizadas, não encontram completa regulamentação legal, cabendo à autoridade responsável determinar, discricionariamente, a forma como ela irá se desenvolver.

Isso significa que o procedimento investigatório não é uniforme e nem poderia ser diante das especificidades de cada notitia criminis. Cabe, reitera-se, ao titular da investigação a definição dos métodos adotados, das técnicas implementadas e, de um modo geral, selecionar os caminhos a serem trilhados visando o esclarecimento constitucional dos fatos. Aqui, uma vez mais, invocamos a doutrina de Pereira:

"Embora a lei não estabeleça o método de investigação necessário, deixando assim, em princípio, abertas todas as possibilidades que se possam extrair das ciências em geral, há certos âmbitos de atuação em que nenhum método pode adentrar, por exclusão legal absoluta, e outros para os quais há uma necessária forma legal sem a qual não se pode investigar. Em outro sentido, contudo, embora não exista um método legal de investigação, há um método legal de demonstração obrigatório, ao se exigir a prova do objeto, uma instrumentalização do conhecimento alcançado, que permita a verificação do que se afirma sobre o crime e sua autoria" [4].

Vale lembrar que a prova pode ser feita por todos os meios legais e morais, ainda que não legalmente previstos, conforme previsão encontrável no artigo 369, CPC, aplicável ao caso sob discussão por integração (inteligência do artigo 3º, CPP) e em conjunto com o artigo 155, Parágrafo Único, CPP que somente estabelece restrições à prova no Processo Penal no que tange ao "estado das pessoas", bem como o artigo 158, CPP que se refere ao limite probatório do corpo de delito e ainda o limite temporal para  leitura de documentos e apresentação de objetos não juntados no Plenário do Júri, nos termos do artigo 479, CPP.  No mais, lembrando o ensinamento de Larenz quanto a constituírem os Princípios a conformação de uma "consciência jurídica geral ou de ideias diretrizes", é preciso destacar que vige no processo o chamado "Princípio da Liberdade da Prova" [5].

Leciona Bonfim "que o rol de meios de prova admissíveis é aberto", podendo as partes "optar por meios de prova não especificados em lei". Disso também se conclui que inexiste "um rol de provas consideradas ilícitas a priori". A análise da licitude ou ilicitude se faz concretamente e casuisticamente, perscrutando se o meio de prova utilizado, ou que se pretenda usar, ofende ou não "o ordenamento jurídico ou a esfera do moralmente aceitável" [6].

Não sem razão classifica a doutrina os meios de prova em "Legais ou Nominados" (aqueles previstos expressamente na legislação processual) e "Inominados" (aqueles que, embora não previstos expressamente na legislação processual podem ser licita e moralmente utilizados pelos interessados) [7].

Nesse cenário, considerando que as ciências em geral podem colaborar com a investigação penal, pode-se afirmar que, ao menos em princípio, qualquer medida que viabilize a obtenção de elementos informativos é admitida, cabendo ao Poder Judiciário estabelecer os limites do Poder Investigativo estatal por meio da interpretação das normas legais e constitucionais.

De maneira ilustrativa, podemos citar alguns métodos de apuração de infrações penais que não encontram expressa previsão legal. A obtenção de dados telefônicos, por exemplo, não é regulamentada pelo nosso legislador, razão pela qual se discute se tais informações dependem ou não de prévia autorização judicial. A mesma discussão abrange a técnica da gravação ambiental ou telefônica (clandestina), que também não é perfeitamente regulamentada por lei. Ainda mais emblemático é o caso objeto principal deste estudo, envolvendo o chamado espelhamento do WhatsApp, analisado pelo Superior Tribunal de Justiça no Informativo nº 640.

Na hipótese em apreço, policiais civis envolvidos em uma investigação apreenderam o aparelho celular do suspeito por um curto período, ocasião em que realizaram o espelhamento do seu WhatsApp com o computador da delegacia de polícia e passaram a acompanhar, em tempo real, todas as suas comunicações. Mister salientar, ainda, que a adoção deste método de apuração foi precedida de autorização judicial.

Contudo, ao analisar o caso, o STJ se posicionou pela ilicitude do procedimento e, consequentemente, das provas obtidas. Em linhas gerais, afirmou-se que a técnica utilizada constituiria um meio hibrido de obtenção de provas, uma verdadeira mistura entre interceptação telemática e quebra de sigilo de dados telefônicos. Destarte, considerando que não existe previsão legal para o referido método, a prova obtida não poderia ser admitida:

Em termos técnico-jurídicos, o espelhamento seria melhor qualificado como um tipo híbrido de obtenção de prova consistente, a um só tempo, em interceptação telefônica (quanto às conversas ex nunc) e em quebra de sigilo de e-mail (quanto às conversas ex tunc). Não há, todavia, ao menos por agora, previsão legal de um tal meio de obtenção de prova híbrido. Por fim, ao contrário da interceptação telefônica, que é operacionalizada sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou domiciliar para apreensão de aparelho telefônico, o espelhamento via QR Code depende da abordagem do indivíduo ou do vasculhamento de sua residência, com apreensão de seu aparelho telefônico por breve período de tempo e posterior devolução desacompanhada de qualquer menção, por parte da autoridade policial, à realização da medida constritiva, ou mesmo, porventura acompanhada de afirmação falsa de que nada foi feito [8].

Particularmente, sempre nos posicionamos de forma contrária a este entendimento, sobretudo porque a ausência de previsão legal não pode inviabilizar a adoção de um meio eficaz de obtenção de prova. Se assim fosse, as provas obtidas por meio da quebra de dados telefônicos ou de localização e até a gravação clandestina jamais poderiam ser consideradas lícitas.

Mas no caso específico do espelhamento do WhatsApp, diferentemente do referido precedente do STJ, entendemos que a medida encontra, sim, previsão legal, tratando-se de uma técnica mista de investigação, que conjuga diversos meios de obtenção de prova, quais sejam: interceptação telefônica/telemática, quebra de dados telefônicos, ação controlada e infiltração virtual de agentes.

Nesse sentido, aliás, foi a decisão do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, divergindo do precedente da corte:

"Nesse ponto reside a permissão normativa para quebra de sigilo de dados informáticos, na hipótese, e, de forma subsequente, para permitir a interação, a interceptação e a infiltração do agente, inclusive pelo meio cibernético, consistente no espelhamento do Whatsapp Web. A lei de interceptação, em combinação com a Lei das Organizações Criminosas, na hipótese, outorga legitimidade (legalidade) e dita o rito (regra procedimental), a mencionado espelhamento, em interpretação progressiva, em conformidade com a realidade atual, para adequar a norma à evolução tecnológica. (...)

Pode, desta forma, o agente policial valer-se da utilização do espelhamento pela via do software Whatsapp Web, desde que respeitados os parâmetros de proporcionalidade, subsidiariedade, controle judicial e legalidade, calcado pelo competente mandado judicial, como ocorrido na hipótese presente. De fato, como já asseverado supra, a Lei nº 9.296/1996, que regulamenta as interceptações, conjugada com a Lei nº 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas), outorgam substrato de validade processual às ações infiltradas no plano cibernético, desde que observada a cláusula de reserva de jurisdição" [9].

De fato, a técnica do espelhamento do WhatsApp muitas vezes pode servir como o único meio de obtenção de prova cabível ao caso concreto, notadamente diante do recurso denominado "modo temporário", em que as mensagens enviadas e recebidas pelo usuário se apagam automaticamente dentro de 24 horas.

Em acréscimo, destacamos que em nosso sentir a medida também encontra respaldo no artigo 8º-A, da Lei 9.296/96, que nos apresenta o regime jurídico da Captação Ambiental. Isto, pois, o aplicativo WhatsApp permite a criação de um verdadeiro "ambiente virtual", materializado em grupos privados onde conteúdos criminosos de todos os tipos podem ser compartilhados pelos seus integrantes.

Por meio da técnica do espelhamento do aplicativo, a polícia forja as condições necessárias para acompanhar, passivamente, as comunicações de caráter criminoso desenvolvidas nesse ambiente virtual, conjugando, principalmente, a captação ambiental com a infiltração virtual.

Registre-se, ademais, que sob tais premissas as críticas expostas ao espelhamento do WhatsApp no Informativo 640, do STJ, no sentido de que a medida dependeria da abordagem policial, apreensão do aparelho celular e posterior devolução ao investigado, sendo tudo realizado sem qualquer menção à ação constritiva, perderiam seu sentido. Afinal, a diligência estaria amparada pelo §2º, do artigo 8º-A, da Lei 9.296/96, que prevê a possibilidade de a instalação do dispositivo de captação ambiental ser realizada por meio de "operação policial disfarçada". Como se pode perceber, toda a ação da polícia no caso em análise tinha por foco viabilizar, de forma disfarçada, o espelhamento do WhatsApp do investigado, viabilizando, destarte, a "captação ambiental virtual".

Sem embargo do exposto, o que nos parece mais relevante nessa discussão é o afastamento da ilicitude da prova com base no princípio da exceção da boa-fé. De acordo com a tese concebida pela Suprema Corte norte-americana, no caso United States v. Leon, de 1984, o princípio da vedação das provas ilícitas foi desenvolvido para evitar abusos por parte da polícia e não dos magistrados. Assim, se um juiz determinasse a realização de busca e apreensão sem que houvesse causa provável (fundada suspeita), não se poderia falar em ilicitude da prova, uma vez que a ação policial foi respaldada por mandado judicial e os policiais confiavam na legalidade da medida.

 A ideia é a de que, em havendo ordem judicial, a medida é implementada pela polícia de forma lícita, pautando-se na análise jurídica feita pelo juízo competente. O que a lei busca sancionar com a ilicitude da prova, são ações policiais abusivas e que se desenvolvem às margens do ordenamento jurídico.

Contudo, insistimos, se a medida investigativa adotada foi autorizada pelo juízo competente por meio de decisão fundamentada, não há que se falar na ilicitude daquela prova, especialmente quando se tratar de uma técnica não prevista expressamente em lei, o que pode suscitar divergência na jurisprudência, como estamos constatando no caso do espelhamento do WhatsApp.

Nesse cenário, defendemos a licitude das provas obtidas com respaldo em decisões judiciais devidamente fundamentadas, pois, do contrário, haveria uma enorme insegurança jurídica durante a investigação criminal, o que compromete a persecução penal como um todo, fazendo com que toda a máquina estatal seja movida e focada em determinadas provas que, ao final, poderão ser declaradas ilícitas.

Evidentemente, se a palavra final do Poder Judiciário, por meio do STF, for pela ilicitude da prova, então a partir desta decisão a técnica investigativa não mais poderia ser implementada, gerando efeito ex nunc, sem prejudicar as persecuções penais já deflagradas e que adotaram a medida controversa de boa fé.

 

[1] Para um estudo mais completo, sugerimos: SANNINI, Francisco. Delegado de Polícia e o Direito Criminal – Teoria Geral do Direito de Polícia Judiciária. Leme, SP. Mizuno:2021.

[2] SANTOS, Célio Jacinto dos. Investigação Criminal Especial. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2013. p. 85/86.

[3] NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Princípios do Processo e outros temas processuais. Volume I. Taubaté: Cabral, 2003, p. 109. O autor ainda traz à colação o escólio no mesmo diapasão de Ada Pellegrini Grinover.

[4] PEREIRA, Eliomar da Silva. op. cit., p. 26.

[5] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 3ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 599. Sobre o "Princípio da Liberdade da Prova", obedecido o critério da licitude: Cf. : MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 482.

[6] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 11ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 421. No mesmo sentido, quanto à relação não exaustiva das provas no CPP: MARCÃO, Renato, Op. Cit., p. 474. "In verbis": "As modalidades probatórias listadas no CPP não são exaustivas, mas apenas exemplificativas".

[7] REIS, Alexandre Cebrian Araújo, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Processual Penal. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 272.

[8] STJ, RHC 99.735/SC, relator ministro Laurita Vaz, DJe 12.12.2018.

[9] STJ, Agravo em REsp nº 2.257.960/MG, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca. j. 16.05.2023.