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STF DECIDE QUE OFENSA INDIVIDUAL HOMOFÓBICA CONSTITUI CRIME DE INJÚRIA RACIAL

No dia 21 de fevereiro de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento de duas ações constitucionais que discutiam se havia omissão do Congresso em não editar lei que criminalizasse atos de homofobia e a transfobia, temas em discussão na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, de relatoria do então ministro Celso de Mello, e no Mandado de Injunção nº 4733, relatado pelo ministro Edson Fachin.

O ministro Celso de Mello já havia concluído, no dia anterior, no sentido de reconhecer omissão legislativa e de dar interpretação conforme a Constituição para enquadrar atos de homofobia e a transfobia nos tipos penais previstos na legislação que define os crimes de racismo, até que o Congresso aprovasse lei específica sobre a matéria. Na sua avaliação, era inquestionável a inércia do Legislativo em editar lei penal que tornasse crime a violência contra gays, lésbicas, travestis e demais integrantes da comunidade LGBT.

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão foi apresentada pelo Partido Popular Socialista, em face do Congresso, "para o fim de obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima".

O autor alegava "que existe ordem constitucional de legislar criminalmente que obriga o legislador a criminalizar a homofobia e a transfobia", afirmando, entre outros argumentos, "que o Congresso Nacional pura e simplesmente se recusa até mesmo a votar o projeto de lei que visa efetivar tal criminalização".

Já o mandado de injunção foi ajuizado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros, também em face do Congresso Nacional, com pedido de medida cautelar, com o objetivo de "obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima".

A entidade autora sustentava que a Constituição permitia a impetração de mandado de injunção visando a criminalização específica de condutas "quando esta situação se configurasse necessária para o exercício das prerrogativas inerentes à cidadania das vítimas em questão", alegando "que existiria ordem constitucional de legislar criminalmente, que obriga o legislador a criminalizar a homofobia e a transfobia, tendo em vista que a homofobia e a transfobia constituem espécies do gênero racismo e que, por isso, impunha-se a elaboração de legislação criminal que puna tais ofensa".

Inicialmente, o relator não conheceu da ação por entender manifesta a inviabilidade da via injuncional no caso, citando jurisprudência da Corte com relação à necessidade de se detectar, para o cabimento do mandado de injunção, a existência inequívoca de um direito subjetivo, concreta e especificamente consagrado na Constituição federal, "que não esteja sendo usufruído por seus destinatários pela ausência de norma regulamentadora exigida por essa mesma Carta".

No entanto, posteriormente, tal decisão foi reconsiderada pelo relator, permitindo o cabimento do mandado de injunção, com alegado fundamento no artigo 5º, LXXI, da Constituição, "para o efeito de examinar a denegação ou a concessão do provimento requerido caso demonstrada a possibilidade de suprimento judicial da lacuna apontada".

No dia 23 de maio de 2019, o Plenário deu continuidade ao julgamento de ambas as ações. Naquela oportunidade, a ministra Rosa Weber e o ministro Luiz Fux se pronunciaram no sentido de reconhecer a omissão legislativa e de dar interpretação conforme a Constituição para enquadrar atos de homofobia e de transfobia nos tipos penais previstos na legislação que define os crimes de racismo, até que o Congresso aprovasse lei específica sobre a matéria. Até aquele momento, havia sido proferidos seis votos, e todos os ministros que votaram entenderam haver omissão legislativa ao não proteger penalmente o grupo LGBT.

Em seu voto, a ministra Rosa Weber considerou que o conceito jurídico-constitucional de racismo abarcava a discriminação de gênero e de orientação sexual e observou que o direito à própria individualidade e às identidades sexual e de gênero constituíam direitos fundamentais dos seres humanos. Segundo ela, "o direito à autodeterminação sexual decorre diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana", salientando "que, ao não editar lei visando ao cumprimento da determinação constitucional expressa de punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais de grupos ou indivíduos (artigo 5º, inciso XLI, da Constituição Federal), neste caso em relação à comunidade LGBT, o Legislativo incorreu em omissão inconstitucional".

Para o ministro Luiz Fux, a inércia legislativa era inequívoca, pois, apesar de haver diversos projetos no Congresso propondo a tipificação da homofobia como crime, a tramitação não tem continuidade, demora que exigia o pronunciamento do Judiciário até que o Legislativo cumprisse a determinação constitucional de defesa das minorias contra as violências da maioria, ressaltando "que o Judiciário não estaria criando uma norma penal, mas apenas interpretando a legislação infraconstitucional para tratar a homofobia de forma similar ao racismo", destacando, outrossim, "que racismo é crime contra seres humanos, qualquer que seja a sua fé ou orientação sexual e, portanto, é imprescritível", sendo um "um delito cometido contra um ser de carne e osso, seja ele integrante da comunidade LGBT, judeu ou afrodescendente. Tudo isso é racismo".

No início daquela sessão, o Plenário analisou comunicado do Senado de que a Comissão de Constituição e Justiça havia aprovado, no dia anterior, em caráter terminativo, projeto de lei que inclui os crimes de discriminação ou preconceito de orientação sexual ou identidade de gênero na Lei nº 7716/1989, que tipifica os crimes de racismo. Nada obstante, os ministros entenderam que este fato não interrompia a chamada mora legislativa e, por maioria, decidiram continuar o julgamento das ações, ficando vencido o então ministro Marco Aurélio e o ministro Dias Toffoli.

Segundo o ministro Celso de Mello, "a mera aprovação do projeto em comissão do Senado, ainda que em caráter terminativo, não assegurava sua aprovação naquela casa legislativa, pois é possível que se apresente recurso para sua apreciação em plenário", lembrando "que, para que a proposta se torne lei e interrompa a mora legislativa, é necessária a análise e a aprovação do Projeto de Lei pela Câmara do Deputados e a posterior sanção pela Presidência da República". Segundo ele, "a questão era razoabilidade: de um lado, tinha-se um prazo de 30 anos, se contarmos da vigência da Constituição, ou mais de 18 anos, a contar da proposta legislativa apresentada pela deputada federal Iara Bernardi para criminalizar essas condutas".

O ministro Marco Aurélio, primeiro a divergir, afirmou que o julgamento deveria ser suspenso para aguardar o pronunciamento final do Legislativo. Segundo ele, o voto do ministro Celso de Mello fez com que o Congresso se mobilizasse. O ministro Dias Toffoli também se pronunciou pelo adiamento, por entender que o Congresso Nacional estava se movimentando e deliberando sobre a matéria, afirmando "que os votos proferidos nas quatro sessões que o Supremo Tribunal Federal dedicou à análise dos processos neste primeiro semestre já conduziram a sociedade a uma reflexão".

Assim, o julgamento foi retomado na sessão do dia 13 de junho de 2019, quando o Plenário, finalmente, entendeu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalizasse atos de homofobia e de transfobia. Por maioria, a Corte reconheceu a mora do Congresso Nacional para incriminar atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBT. Os ministros Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria, ficando vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, por entenderem que a conduta só poderia ser punida mediante lei aprovada pelo Legislativo. Já o então ministro Marco Aurélio não reconheceu a mora.

Primeira a votar naquela sessão, a ministra Cármen Lúcia acompanhou os relatores pela procedência dos pedidos, avaliando "que, após tantas mortes, ódio e incitação contra homossexuais, não havia como desconhecer a inércia do legislador brasileiro e afirmou que tal omissão é inconstitucional". Para ela, "a reiteração de atentados decorrentes da homotransfobia revelava situação de verdadeira barbárie. Quer-se eliminar o que se parece diferente física, psíquica e sexualmente". Para a ministra, "a singularidade de cada ser humano não é pretexto para a desigualdade de dignidades e direitos, e a discriminação contra uma pessoa atinge igualmente toda a sociedade. A tutela dos direitos fundamentais há de ser plena, para que a Constituição não se torne mera folha de papel".

O ministro Ricardo Lewandowski reconheceu a mora legislativa e a necessidade de dar ciência dela ao Congresso, a fim de que seja produzida lei sobre o tema. No entanto, não enquadrou a homofobia e a transfobia na Lei do Racismo. Para ele, seria indispensável a existência de lei para que seja viável a punição penal de determinada conduta. "A extensão do tipo penal para abarcar situações não especificamente tipificadas pela norma incriminadora parece-me atentar contra o princípio da reserva legal, que constitui uma garantia fundamental dos cidadãos que promove a segurança jurídica de todos", afirmou o ministro, citando jurisprudência da Corte nesse sentido. Segundo ele, a Constituição Federal somente admite a lei como fonte formal e direta de regras de direito penal.

O ministro Gilmar Mendes acompanhou a maioria dos votos pela procedência das ações. Além de identificar a inércia do Congresso Nacional, ele entendeu que a interpretação apresentada pelos relatores de que a Lei do Racismo também pode alcançar os integrantes da comunidade LGBT é compatível com a Constituição Federal. Em seu voto, ele lembrou "que a criminalização da homofobia é necessária em razão dos diversos atos discriminatórios — homicídios, agressões, ameaças — praticados contra homossexuais e que a matéria envolve a proteção constitucional dos direitos fundamentais, das minorias e de liberdades".

Ao votar, o ministro Marco Aurélio não admitiu o mandado de injunção, por considerar inadequada o uso deste instrumento processual na hipótese. Por outro lado, admitiu em parte a ação direta, mas não reconheceu a omissão legislativa quanto à criminalização específica da homofobia e da transfobia. Para o ministro, "a Lei do Racismo não pode ser ampliada em razão da taxatividade dos delitos expressamente nela previstos", considerando "que a sinalização do Supremo Tribunal Federal para a necessária proteção das minorias e dos grupos socialmente vulneráveis, por si só, contribui para uma cultura livre de todo e qualquer preconceito e discriminação, preservados os limites da separação dos Poderes e da reserva legal em termos penais".

Último a votar, o ministro Dias Toffoli acompanhou o ministro Ricardo Lewandowski pela procedência parcial dos pedidos, ressaltando "que, apesar da divergência na conclusão, todos os votos proferidos repudiaram a discriminação, o ódio, o preconceito e a violência por razões de orientação sexual e identidade de gênero". De acordo com o ministro, "com o julgamento, a Corte dava efetividade ao artigo 3º, IV, da Constituição Federal, segundo o qual é objetivo da República promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Assim, por maioria, o Plenário aprovou a tese proposta pelo relator da ação direta, ministro Celso de Mello, formulada em três pontos: a) até que o Congresso Nacional edite lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, enquadram-se nos crimes previstos na Lei nº. 7.716/89 e, no caso de homicídio doloso, constitui circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe; b) a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe o exercício da liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio; c) o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis.

Agora, no último dia 22 de agosto, o Plenário reconheceu que atos ofensivos praticados contra pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ podem ser enquadrados como injúria racial. A decisão foi tomada na sessão virtual concluída em 21 de agosto, no julgamento de embargos de declaração apresentados pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) contra acórdão no Mandado de Injunção nº 4.733.

Neste recurso, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos alegou que as decisões da Suprema Corte têm sido interpretadas de forma equivocada, no sentido de que a ofensa contra grupos LGBTQIAPN+ configura racismo, mas a ofensa à honra de pessoas pertencentes a esses grupos vulneráveis não configura o crime de injúria racial. Segundo a Associação, isso retira, em grande parte, a aplicabilidade prática da decisão do Plenário, e, por isso, pediu que se defina que o entendimento também se aplica ao crime de injúria racial.

Em seu voto pelo acolhimento do recurso, o relator, ministro Edson Fachin, explicou que, no julgamento do Habeas Corpus nº 154248, também de sua relatoria, a Corte já havia reconhecido que o crime de injúria racial é espécie do gênero racismo e, portanto, é imprescritível. Essa posição também foi inserida na legislação pelo Congresso por meio da Lei nº 14.532/2023.

Assim, para o relator, uma vez que a Corte, no julgamento do Mandado de Injunção, reconheceu que a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual configura racismo, a prática da homotransfobia pode configurar crime de injúria racial. Para ele, "a interpretação que restringe sua aplicação aos casos de racismo e mantém desamparadas de proteção as ofensas racistas perpetradas contra indivíduos da comunidade LGBTQIAPN+ contraria não apenas o acórdão embargado, mas toda a sistemática constitucional".

Ficou vencido o ministro Cristiano Zanin, para quem a análise da matéria não é possível no âmbito de embargos de declaração, pois seria um novo julgamento do MI com ampliação do mérito.

Esta última decisão do STF, proferida em sede de embargos de declaração, mostra-se coerente com as decisões anteriores, pois se a homofobia e a transfobia constituem crimes de racismo (devem assim ser considerados), obviamente que a prática de uma ofensa individual (da mesma natureza) deve configurar o crime de injúria racial, previsto no artigo 2º.-A, da Lei nº 7716/89, com pena de dois a cinco anos, aumentada da metade se o crime for cometido mediante concurso de duas ou mais pessoas, crime inafiançável e imprescritível, nos termos da Constituição.