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PODER INTERPRETATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS SOBRE NORMAS REGULATÓRIAS

A Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) publicou recentemente, em seu Portal de Legislação, uma versão comentada da Resolução nº 755/2022, que estabelece o Regulamento de Tarifação do Serviço Telefônico Fixo Comutado Destinado ao Uso do Público em Geral — STFC. Trata-se da primeira vez que a agência produziu comentários a uma de suas normas regulamentares. O documento traz uma introdução geral, explicando os propósitos regulatórios gerais da alteração da norma, seguida do texto da resolução propriamente dita com comentários específicos a diversos dispositivos.

Em grande parte dos casos, os comentários se destinam ou a explicar como a norma comentada interage com outras normas da agência, ou a indicar quais são os órgãos competentes para aplicar as regras previstas ou ainda a fornecer outras informações objetivas sobre o quadro regulatório mais amplo do setor.

No entanto, há também comentários que buscam elucidar quais eram os objetivos da agência com o texto aprovado, a exemplo do comentário ao artigo 11, IV do Regulamento, o qual indica que o uso dos termos "acessos móveis de interesse coletivo" e "serviços fixos e móveis de interesse coletivo" para a definição de quais chamadas estão compreendidas na modalidade Local (STFC-Local) buscou deixar a norma "mais abrangente, convergente e perene".

Segundo a própria Anatel, seu objetivo é tornar "a regulamentação mais transparente e acessível a toda a sociedade". A iniciativa, no entanto, coloca interessante questão jurídica a respeito do poder interpretativo da agência sobre as normas regulatórias que ela mesma produz. Cabe indagar, a esse respeito, quais efeitos os comentários produzidos pela Anatel podem gerar.

Tais comentários não se configuram em novos atos normativos, formalmente não possuem natureza jurídica equivalente à norma regulamentar sobre a qual versam. No entanto, por terem sido elaborados pela própria Anatel e tecerem elucidações de modo direto aos dispositivos normativos, tais comentários podem eventualmente preencher lacunas normativas ou elucidar ambiguidades do texto legal, influenciando a forma como a norma regulamentar é aplicada. Resta saber, deste modo, quão vinculantes são as interpretações oferecidas pela agência e se elas devem desfrutar, nesta condição, de deferência de outros órgãos e poderes.

Embora a temática não seja muito discutida no Brasil, nos Estados Unidos há ampla construção doutrinária e jurisprudencial que pode contribuir para a definição do poder interpretativo das agências reguladoras brasileiras sobre normas regulatórias. Nos Estados Unidos, desde 1945 a Suprema Corte discute o nível de deferência que deve ser conferido às interpretações que as agências fazem das normas que elas mesmas editam.

Por várias décadas, e com muito pouca resistência até recentemente, a Suprema Corte defendeu ampla deferência às interpretações oferecidas pelas agências ao seu próprio estoque regulatório. Esse entendimento ficou conhecido, a partir de 1997, como deferência Auer, em razão do julgamento do caso Auer v. Robbins, no qual a Suprema Corte proferiu decisão paradigmática sobre o tema.

Em breves linhas, Auer consiste no entendimento da Suprema Corte segundo o qual deve-se garantir deferência às interpretações das agências, desde que estas sejam coerentes com o texto das normas por elas editadas e consistentes com seus posicionamentos prévios. Assim como na doutrina Chevron, que garante deferência às interpretações das agências de normas legais, a deferência Auer estabelece, como regra geral, que interpretações das agências sobre suas próprias normas regulatórias devem ser respeitadas.

Sobre a questão, a Suprema Corte dos Estados Unidos se pronunciou dizendo que a deferência às interpretações das agências de normas regulatórias que admitem múltiplas interpretações deve ser ainda mais forte do que a deferência às interpretações de normas legislativas. Ou seja, a regra de deferência da doutrina Auer seria ainda mais robusta do que a regra de deferência da popular doutrina Chevron.

As interpretações das agências passíveis de deferência podem ser publicizadas de diversas formas, sendo que no caso Auer v. Robbins a Suprema Corte americana foi inclusive deferente à interpretação de agência reguladora esposada em um amicus curiae. Nessa decisão, a Suprema Corte reconheceu caráter vinculante (autoritativo) às múltiplas formas por meio das quais agências manifestam interpretações de suas normas.

A doutrina Auer não constitui, no entanto, passe livre para abusos interpretativos das agências: a própria Suprema Corte americana pronunciou-se contrariamente à deferência de interpretações das agências que limitem ou restrinjam o escopo de normas regulatórias de conteúdo flagrantemente vago.

A interpretação da agência, para fazer jus à deferência, deve se referir a texto ambíguo, ou seja, que admite mais de uma interpretação razoável possível. Texto normativo ambíguo diferencia-se de texto normativo vago, o qual normalmente não oferece parâmetros suficientemente densos para orientar ações regulatórias. Decisões recentes da Suprema Corte dos Estados Unidos reiteram que a ambiguidade é um pressuposto da deferência das interpretações das agências.

Ambiguidade/indeterminação não se equiparariam, portanto, à vagueza de textos normativos, cujas interpretações não fariam jus à deferência.

A Suprema Corte dos Estados Unidos também não reconheceu deferência a interpretações das agências que constituem meras racionalizações post hoc para defender atos já consumados. Esse posicionamento alinha-se com o argumento de longa data da Suprema Corte de garantir deferência apenas a interpretações das agências que sejam consistentes ao longo do tempo.

Voltando para o caso brasileiro, é esperado que interpretações da Anatel consubstanciadas em comentários diretos aos dispositivos normativos da sua resolução gerem a expectativa legítima para os administrados de que o texto ao qual se referem será aplicado em consonância com os esclarecimentos prestados. Com efeito, a aplicação da norma regulamentar pela Anatel de modo divergente aos comentários elaborados pela própria agência poderia caracterizar uma violação de expectativas legítimas dos administrados, ferindo o princípio da confiança legítima.

Sendo assim, mesmo sem possuir natureza normativa, os comentários elaborados pela Anatel podem gerar efeitos jurídicos — certamente gerarão efeitos para a Administração, e possivelmente também gerarão efeitos indiretos para os administrados. Em certa medida, isso já ocorre com materiais de apoio que são regularmente produzidos por órgãos reguladores, tais como manuais e informativos que se destinam a auxiliar os administrados no cumprimento de normas regulamentares.

No entanto, no caso da iniciativa da Anatel, por se tratar de comentários individualizados aos dispositivos, há maior probabilidade de que haja uma associação direta com o texto da norma propriamente dita.

Um olhar detido para o modo de construção da doutrina Auer nos fornece terreno fértil para analisarmos tanto o caráter vinculante das interpretações realizadas pelas agências reguladoras como a deferência judicial a essas interpretações, ainda que seu conteúdo permaneça em debate nos Estados Unidos. Caso iniciativas como a da Anatel se tornem mais comuns no Brasil, caberá a nós, atuantes em comunidades regulatórias, construirmos os parâmetros de coerência, consistência e razoabilidade dessas interpretações.