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EMENDA DE REDAÇÃO E BICAMERALISMO SOB O ESCRUTÍNIO DO SUPREMO NA ADI 7.442

A teoria dos atos interna corporis, de longa marcha, consiste em vedar o controle jurisdicional do sentido e alcance das normas regimentais de Casas Legislativas salvo quando presente violação do processo legislativo constitucional.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de ser defeso, por autocontenção, à jurisdição constitucional a interpretação dos regimentos internos dos corpos legislativos em contraste com situações fáticas quaisquer, por se tratar de matéria interna corporis. Todavia, não escapa à Suprema Corte, antes pelo contrário, o contraste entre as normas regimentais e a Carta da República, vez que admitir tal limitação significaria negar vigência à própria Constituição em favor de norma de estatura inferior.

A teoria da matéria interna corporis foi consagrada recentemente pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.297.884, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.120), nos seguintes termos:

"O Tribunal, por maioria, acolheu os embargos de declaração a fim de, suprindo a omissão apontada, retificar a tese fixada no presente tema de repercussão geral, nos seguintes termos: 'Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis, nos termos do voto do ministro Gilmar Mendes, redator para o acórdão, vencidos os ministros Dias Toffoli (relator), Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes. Plenário, Sessão Virtual de 23.6.2023 a 30.6.2023."

Recentemente, o procurador-geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade do artigo 6º, § 13, da Lei 11.101, de 9.2.2005, incluído pela Lei 14.112, de 24.12.2020, que regula a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. O texto impugnado é especificamente este: "consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica") da Lei 11.101/2005, incluído pela Lei 14.112/2020.

A expressão inquinada de inconstitucionalidade é originária da Emenda 62 do Senado ao PL 4.558, de 2020, assim posta:

"Dê-se ao § 13 do art. 6º da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, na forma do art. 1º do Projeto de Lei nº 4.458, de 2020, a seguinte redação:
- 1º. ...........................................................................................
Art. 6º......................................................................................... ...........................................................................................
§ 13. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica." (NR)

O inciso II, do artigo 2º, da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, excepciona do regime jurídico da recuperação judicial "instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores".

A Emenda 62 do Senado foi considerada emenda de redação e com esta natureza foi incorporada pelo relator ao texto que viera da Câmara dos Deputados (Parecer de Plenário 165/2020, relator do PL 4.458/2020, senador Rodrigo Pacheco). Assim, o projeto aprovado com a referida inclusão do texto da emenda foi enviado diretamente à sanção.

Na justificativa, o proponente, senador Eduardo Gomes (MDB-TO), conferiu expresso caráter interpretativo e aclarativo ao texto da emenda:

 "A mens legis desta alteração reside da constatação fática de que o legislador, ao especificar uma única entidade cooperativa a ser excluída de aplicação da Lei 11.101/2005, no caso, a “cooperativa de crédito”, análoga às instituições financeiras, liberou, a contrario sensu, o acesso a todas as demais cooperativas, inclusive às cooperativas médicas, que não se caracterizam sociedades operadoras de planos de assistência à saúde."

Seria, portanto, na intenção do senador autor, uma emenda de redação, já que não modificaria, antes clarificaria, o texto do projeto de lei. Mas, ainda que meramente redacional, a emenda teria, segundo o seu proponente, grande alcance social, uma vez que firmaria a interpretação adequada a:

" (...) possibilitar que os planos de assistência à saúde operados por cooperativas ou federações médicas possam vir a ter acesso principalmente à recuperação judicial, tendo em vista que a situação de dificuldade financeira já verificadas há algum tempo são objeto de novos desafios econômico-financeiros, com a multiplicação dos casos de internamento e procedimentos para tratamento das enfermidades diretamente causadas pelo Covid-19 no decorrer do presente ano de 2020."

O presidente da República, todavia, não entendeu assim. A Mensagem 752, encaminhada ao presidente do Senado, informa que o item foi vetado por contrariedade ao interesse público, porque:

"(...) a previsão de recuperação judicial somente para cooperavas (sic) médicas, além de ferir o princípio da isonomia em relação às demais modalidades societárias, afasta os instrumentos regulatórios que oportunizam às operadoras no âmbito administrativo a recuperação de suas anormalidades econômico-financeiras e as liquidações extrajudiciais.
Ademais, tem-se, ainda, que a criação dessa excepcionalidade impacta nas concessões de portabilidades especiais de carências a beneficiários de operadoras a serem compulsoriamente retiradas do mercado regulado, em prejuízo ao acompanhamento econômico-financeiro das operadoras pela Agência Nacional de Saúde Suplementar — ANS, e submete milhões de brasileiros a riscos de desassistência."

As razões do veto dirigiram-se exclusivamente, à parte final do dispositivo, aquele que criou exceção à regra prevista no artigo 2º, II, da Lei 11.101/2005, de que a sociedade operadora de plano de assistência à saúde e as entidades a ela legalmente equiparadas estão excluídas do regime da recuperação de empresas.

Em sessão do dia 17/3/2021, o Congresso rejeitou o veto aposto ao dispositivo incorporado pela Emenda 62, que foi promulgado em 26.3.2021 e, no mesmo dia, publicado no Diário Oficial da União.

Tomando-se apenas as razões do veto, que se fundou no interesse público, o referido dispositivo não poderia ser objeto de arguição de inconstitucionalidade. Todavia, o procurador-geral da República encontrou um fundamento de inconstitucionalidade formal para a propositura de uma ADI (7.442).

O fundamento da ação direta de inconstitucionalidade é o de que a emenda 62 do Senado foi indevidamente incorporada ao texto do projeto de lei como emenda de redação, quando, na verdade, deveria tê-lo sido como emenda aditiva e, nessa condição, teria implicado no retorno do projeto à apreciação da Casa iniciadora, a Câmara dos Deputados, sob pena de violação do bicameralismo consagrado no artigo 65, parágrafo único, da Carta da República:

Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar.
Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.

Os conceitos de emenda aditiva e de redação estão dispostos no artigo 118 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados:

Art. 118. Emenda é a proposição apresentada como acessória de outra, sendo a principal qualquer uma dentre as referidas nas alíneas a a e do inciso I do art. 138.
(...)
§ 6º Emenda aditiva é a que se acrescenta a outra proposição.
(...)
§ 8º Denomina-se emenda de redação a modificativa que visa a sanar vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto.

Temos aqui, a princípio, um caso de perfeita aplicação da teoria dos atos interna corporis. Não tivera a discussão a respeito da natureza da Emenda 62 — se de redação ou aditiva — qualquer efeito no processo legislativo constitucional, não haveria lugar para que o Supremo Tribunal Federal exercesse controle de constitucionalidade da lei impugnada.

Na petição inicial da ADI 7.442, o procurador-geral da República serve-se de parte do voto do ministro Nelson Jobim, relator da ADC 3, DJ de 9.5.2003, para indicar o vício de inconstitucionalidade formal da lei aprovada:

O retorno do projeto emendado à Casa iniciadora não decorre do fato de ter sido simplesmente emendado.
Só retornará se, e somente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na proposição jurídica.
Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada.
Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações em qualquer um dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial.
Não basta a simples modificação do enunciado pela qual se expressa a proposição jurídica.
O comando jurídico — a proposição — tem que ter sofrido alteração.

Embora o senador proponente haja dado à emenda feição de norma redacional fixadora de balizas interpretativas para o texto legal (referindo-se expressamente na justificativa à mens legis do projeto), o procurador-geral da República imputou-lhe natureza aditiva que acresceu um comando diverso da proposição emendada. A rigor, instaura uma antimomia. Ao ver do PGR, o § 13, artigo 6º, ao referir-se a atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, está tratando das cooperativas como credoras, ao passo que a expressão introduzida pela emenda trata a cooperativa como devedora. Para tanto, o PGR recorreu à lição de Fábio Ulhoa Coelho a respeito da matéria, para afirmar que:

"(…) Não é possível, sob o ponto de vista lógico, extrair qualquer conclusão de algo que não está sedimentado na premissa.
Quer dizer, não é possível extrair-se de norma sobre cooperativas credoras nenhuma consequência acerca de cooperativas devedoras."

Em texto a respeito da tramitação de PECs, mas que, mutatis mutandis, aplica-se ao tema deste artigo, André Ramos Tavares e Bruno Dantas escreveram:

"Primeiro, é preciso esclarecer se a aprovação de emendas estritamente de redação por uma casa imporia a devolução da proposta à outra. Ora, qualquer mudança, ainda que meramente de redação, significa alterar o texto original e, por isso, em princípio, sua ocorrência deveria resultar no retorno da proposta à casa de origem. Ocorre que, por antiga interpretação da mesa do Senado e da Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Câmara, apenas as "emendas de mérito" reabrem o processo legislativo. A validade dessa modelagem foi chancelada pelo Supremo Tribunal Federal em inúmeros precedentes."

Os autores observam que quando uma Casa define como redacional uma emenda, cabe soberanamente à outra Casa aceitar ou não a definição:

"Denota-se que, se uma casa aprova emenda designando-a como redacional, a outra tem o poder de examinar essa qualificação. Negar-se esse poder na fase final (pré-promulgação) poderá significar a violação do modelo bicameral do Poder Legislativo."

No caso em exame, quando deputados e senadores derrubaram o veto presidencial, a Casa iniciadora, Câmara dos Deputados, implicitamente alinhou-se com o Senado na consideração de que a Emenda 62 era meramente redacional.

A novidade trazida pela ADI 7.442, portanto, está em que a impugnação da decisão de uma das Casas a respeito da natureza redacional de uma emenda não estará sendo exercida pela outra Casa (iniciadora), mas pelo STF por provocação do Ministério Público. Ao ajuizar a ação, o MP exerce a missão que lhe cometeu o Constituinte de 1988 de defender a ordem jurídica e o regime democrático (artigo 127, CF).

A ADI 7.442 dá os seus primeiros passos. Ajuizada em 29 de agosto de 2023 e distribuída à relatoria do ministro Alexandre de Moraes, ainda não falaram nos autos o presidente da República, a Câmara dos Deputados, o Senado e o advogado-Geral da União. Os interessados no controle jurisdicional do processo legislativo terão na tramitação da ação relevante objeto de estudo. Será interessante observar como o Supremo  decidirá a natureza da emenda 62 ao PL 4.558, de 2020, do Senado : se de redação — e o encaminhamento do projeto à sanção terá sido correto — ou aditiva — caso em que o disposto no § 13, artigo 6º, da Lei 11.101/2005, haveria de ter sido submetido à apreciação da Casa iniciadora, a Câmara dos Deputados, em homenagem à regra constitucional do bicameralismo (parágrafo único do artigo 65, CF).

 Alea jacta est.