PRECISAMOS FALAR SOBRE O GARANTISMO À LA CARTE
No último dia 1º de setembro, viralizou uma publicação do ministro da Justiça, Flávio Dino, no Instagram: "Fui juiz federal por 12 anos. E sempre dizia aos acusados: o interrogatório é um momento precioso para a autodefesa. Poucos abriam mão desse direito. E quando o faziam, era em razão da avaliação deles de que falar era pior do que calar". A postagem faz alusão ao exercício constitucional de não produzir prova contra si pela ex-primeira dama Michelle Bolsonaro.
Na crítica tecida pelo ex-governador, ex-senador e ex-magistrado se extrai o pouco (ou nenhum) respeito ao secular direito de não produzir prova contra si, nemo tenetur se detegere. O direito ao silêncio, basilar consagrado no artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal, bem como, artigos 186 e 189 do Código de Processo Penal, é das garantias fundamentais mais importante para qualquer sistema jurídico minimamente civilizado.
Nesse sentido, Zaffaroni, ao tratar do autoritatismo cool dispõe que baseado em convicções supérfluas cria-se a ilusão de que se obterá mais segurança urbana com a legitimação a violência judiciária e desrspeito à garantias fundamentais de pessoas investigadas ou acusadas criminalmente. Complementa que procura-se um inimigo que não se define exatamente quem seria.
O autoritarismo cool tem o que Zaffaroni chama de opacidade de perversão; uma perversão sem brilho, sem convicção, um discurso meramente publicitário, sem qualquer inspiração acadêmica, nem a mais superficial, repleto de irracionalidade. Confome discorre o ex ministro argentino. "É uma guerra sem inimigo definido; o único inimigo que invariavelmente reconhece é o mesmo de todo autoritarismo: quem confronta seu discurso" [1].
Ainda, sem evadir Kant e os imperativos categóricos, na ética deontológica à qual "age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente, como fim e nunca como meio" [2]. Conclui-se, pois, que ao institucionalizar essa sistêmica violência a garantias fundamentais (e sobretudo direitos humanos), equivale a jogar no lixo o mínimo civilizatório conquistado a duras penas pela humanidade ao longo dos séculos.
No mesmo sentido, a Constituição de 5 de outubro de 1988, vigente até os dias atuais, inaugurou uma nova estrutura jurídico-institucional no país, ampliando as liberdades civis e os direitos e garantias individuais. O garantismo penal, de Luigi Ferrajoli [3], se traduz na necessidade de compreender a Lei com uma interpretação que garanta a efetividade de direitos individuais e coletivos dentro de um Estado Democrático de Direito. Sobretudo, indistintamente. Portanto, sem observar a quem porventura se utilize da garantia judicial alí gozada, no prisma dos Direitos Humanos, há que se falar no critério da universalidade
O garantismo penal pode ser entendido sob três perspectivas distintas, entretanto, complementares. A primeira delas diz respeito a um modelo normativo de direito, o modelo de estrita legalidade, que se caracteriza como um sistema de poder mínimo no plano político como uma técnica de tutela capaz de diminuir a violência e maximizar a liberdade e, no plano jurídico, um sistema de vínculos impostos ao poder punitivo do Estado como forma de garantir os direitos dos cidadãos. Em uma segunda perspectiva, o garantismo significa uma teoria jurídica de validez e de efetividade como categorias distintas não apenas entre elas, mas também a respeito da sua existência ou vigência.
Nesse sentido, a palavra garantismo expressa a aproximação teórica que mantém separadas as palavras "ser" e o "dever ser". E por último, em um terceiro sentido, garantismo designa uma filosofia política que impõe ao direito e ao Estado uma justificativa ético-política de suas decisões. Nesse último sentido, o garantismo pressupõe a doutrina laica de separação entre direito e moral, validade e justiça e ponto de vista interno e externo na valoração do ordenamento [4].
Noutra ponta, evadindo a sagrada cláusula do silêncio, há que se falar sobre outra garantia fundamental: a presunção de inocência trazendo breve histórico sobre a noção de inimigo no cerne processual penal. Discorre Maucício Zanoide de Moraes que o pensamento político criminal acerca da presunção de inocência advém, pelo menos ao aplicável em nossa cultura jurídica, que não há nenhum indicativo que existisse presunção de inocência na Roma antiga, havendo exatamente o contrário, uma "presunção de culpa" [5].
Conseguinte, importante mencionar a Inquisição e sua relação ao basilar da presunção de inocência. Sistema claramente relacionado à supramencionada "presunção de culpa" ao passo que toda a sistemática correlacionava-se em punir "hegeres". Zanoide ainda afirma que "talvez seja a Inquisição" o mais perfeito antípoda do que se deva entender por um sistema fundado na presunção de inocência [6].
Após, há que se falar de forma relevante no Iluminismo, revolução que proporciona a inserção legal da presunção de inocência. Importante mencionar a corrente filosófica que proporciona tal mudança jurídica. Os ideais iluministas não desconsideraram como o poder punitivo inquisitório usou de si para finalidades políticas contra seus inimigos, os "hereges". Ainda, o ponto central acerca da matriz ideológica iluminista sobrevale-se que o poder não era mais dimensionado contra o cidadão. Mas, do cidadão enquanto ponto de partida e destinatário deste poder. De tal forma, qualquer agir estatal que não se destinasse a proteção do indivíduo se deslegitimaria em sua origem [7].
Partindo do referido que em 1789 inclui-se a presunção de inocência na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, posteriormente promulgada em 1793, em seu artigo nono: "Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei" [8]. Fica esclarecido que o sentimento social buscava estabelecer um eixo processual penal uma abolição da presunção de culpa dos eventualmente acusados de praticar conduta definida como crime [9].
Particular ao período mencionado, Cesare Beccaria, em "Dos delitos e das penas", surgiu a primeira reação consistente contra o sistema inquisitório. A obra foi marco para a ciência criminal, quando estabeleceu os postulados daquilo que hoje se chama direito penal moderno, em que se busca limitar e condicionar o poder de punir do Estado, protegendo o indivíduo contra o arbítrio da atuação estatal. Quanto à presunção de inocência, erigida em direito cívico do cidadão, assinalava Beccaria que "um homem não pode ser chamado réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada" [10].
Ainda em relação ao curto e parco escrito pelo ministro, além de ofender o direito de não produzir prova contra si, há que se falar sobre a dimensão probatória da presunção de inocência. Ademais, não só como regra de tratamento interna e externa ao feito, a presunção de inocência se vale no processo penal. Há também a necessidade de considerar tal basilar como norma de juízo e norma probatória [11].
A norma de juízo concerne ao dever imposto ao magistrado de fundamentar o decisum tão somente em provas lícitas judicialmente produzidas sob o manto do contraditório e ampla defesa para converter o status quo de inocência do acusado. Assim, pode-se dizer que observando essas regras há o cumprimento da presunção de inocência como norma probatória.
A teoria garantista também se liga filosoficamente ao principio constitucional da presunção de inocência no sentido de que, se a hipótese acusatória não puder ser comprovada por meio da verdade processual, deverá prevalecer a presunção de falsidade dessa hipótese, reafirmando, assim, a importância de um dos postulados que um sistema penal deve satisfazer a fim de que este sistema não se transforme num campo aberto ao arbítrio das intervenções punitivas infundadas, qual seja, o da nulla accusatio sine probatione [12].
Concernente ao orgão acusador, o Ministério Público, tem-se que o princípio da presunção de inocência é no sentido de que ele tem o ônus probatório na formação de culpa do acusado, ou seja, ele tem o dever de provar, enquanto à defesa se basta do plantar de dúvida razoável quanto materialidade do delito em tela bem como a autoria do acusado.
O conteúdo endoprocessual da presunção de inocência enquanto regra probatória aduz à incumbência da acusação o ônus probatório da culpabilidade do agente, na letra de Giacomolli "de afastar o estado de inocência em todas as dimensões processuais, autoria, existência de delito, suficiência de provas a dar suporte a um juízo condenatório, bem como as exigências de determinadas espécies de pena e sua dimensão, e não à defesa. Isso de fato, não retira a possibilidade de a defesa provar no processo" [13]. Conquanto à lógica extraprocessual aduz acerca da norma de tratamento externa ao feito conforme supra referido.
A verdade processual como aquela que afasta a dúvida (sempre lastreada nos demais princípios norteadores do processo penal como contraditório, ampla defesa e demais.) afeita para ensejar um veredito condenatório é lógica reitora do processo criminal se baseando na premissa de desinteresse social para encontrar um culpado, mas sim o culpado.
Outro ponto em que a epistemologia garantista entra em choque com a epistemologia autoritária está fundado no tipo de "verdade jurídica" que se almeja determinar. A autoritária pretende alcançar, em matéria penal, a verdade absoluta, utilizando-se de qualquer meio apto a produzi-la, quase sempre ultrapassando os limites das regras procedimentais, numa verdadeira ode à máxima na qual "os fins justificam os meios". Por seu turno, a epistemologia garantista somente admite uma condenação ou intervenção na esfera de liberdade do indivíduo a partir da observância de regras que tenham por base a verdade processual, construída a partir de regras determinadas e referentes aos fatos que tenham relevância penal, sendo esta uma premissa teórica para formulação de um sistema punitivo democrático na sua pretensão de tutelar ao máximo a liberdade dos indivíduos [14].
Aqui precisa-se trazer à baila o Direito Penal do Inimigo. Nesse pensamento "um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios de pessoa" [15]. Logo, evidencia-se que se criam duas categorias de pessoas: humanos e não-humanos, sendo, portanto, o ser algo descartável, essas categorias de diferenciação já se apresentaram em outros momentos da história como nazismo e a escravidão.
André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli sustentam que o denominado "Direito penal do Inimigo" abriga dois fenômenos criminais: o simbolismo do Direito penal e o punitivismo expansionista, capaz de agregar, num mesmo ninho, o conservadorismo e o liberalismo penal. Os paradigmas preconizados pelo Direito penal do inimigo mostram aos seus inimigos, toda a incompetência Estatal, ao reagir com irracionalidade, ao diferenciar o cidadão normal do outro. A excepcionalidade há de ser negada com o Direito penal e processo penal constitucionalmente previstos, na medida em que a "reação extraordinária fomenta a irracionalidade" [16].
No mesmo sentido, como observa o Desembargador e Professor Geraldo Prado, essa atuação mais engajada do judiciário traz consigo riscos e temores de que argumentos morais prevaleçam sobre o direito, resultando numa profusão incontrolável de interpretações subjetivas, incidindo negativamente sobre a segurança jurídica [17].
A problemática expõe-se ao cálculo utilitário que enseja a possibilidade de instrumentalização das pessoas "para fins alheios". Perceba-se que, ao se admitir tal regra, não precisa mais se limitar a terroristas e criminosos, mas pode se estender a terceiros (os filhos e entes queridos desses criminosos ou terroristas). Afinal, tudo está submetido a um simples cálculo de custo — benefício e não erigido sobre uma base principiológica consistente.
Derradeiramente, mesmo após anos de autoritarismos em descontrole no antigo desgoverno, o que se colhe é que esse mesmo autoritarismo não tem lado político pela fala de Flávio Dino. Deriva tão somente de um malgrado inquisitório que é manifestamente incompatível com as previsões constitucionais garantistas desde 1988. Logo, é fundamental a compreensão que o garantismo não olha a quem, apenas é garantido enquanto norma fundamental irrevogável. Precisamos levar os direitos a sério.
[1] ZAFFARONI, Eugénio Raúl. O inimigo no direito penal. Pensamento criminológico, 14. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
[2] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 69.
[3] Compreensão geral do livro FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 2. ed. Madrid: Ed. Trotta, 1997.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 2. ed. Madrid: Ed. Trotta, 1997. p 851-853
[5] MORAES, Maurício Zanoide de, in Presunção de inocência no Processo Penal Brasileiro, ed. Lumen Juris, 2010, p 47
[6] MORAES, Maurício Zanoide de, in Presunção de inocência no Processo Penal Brasileiro, ed. Lumen Juris, 2010, p 69
[7] MORAES, Maurício Zanoide de, in Presunção de inocência no Processo Penal Brasileiro, ed. Lumen Juris, 2010, p 70
[8] FRANÇA. DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO DE 1789. Disponível em https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2018/10/1789.pdf consultado em 03/04/2023
[9] MORAES, Maurício Zanoide de, in Presunção de inocência no Processo Penal Brasileiro, ed. Lumen Juris, 2010, p 77
[10] BECCARIA, Cesare Bonesana, Marchesi de. Dos Delitos e das penas. Tradução de Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 69
[11] LOPES JUNIOR, Aury; BADARÓ, Gustavo. Presunção de inocência: do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Parecer. 2016. p. 08;
[12] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[13] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014, p. 95.
[14] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[15] JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 2ª. ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 36
[16] JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 2ª. ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 51
[17] PRADO, Geraldo. Ponderação de normas em matéria penal. . Rio de Janeiro.: Ed. Lúmen Iuris, 2007, p.149.