OPINIÃO A PALAVRA FINAL DO STF SOBRE O ICMS NAS TRANSFERÊNCIA DE MERCADORIAS
Por Luiz Roberto Peroba e João Rafael Gândara
Está pautada para a sessão virtual que começa nesta sexta-feira (20/10) o julgamento dos segundos embargos de declaração na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49. O Plenário do Supremo Tribunal Federal volta a se debruçar sobre esse tema que talvez seja o mais batido e debatido da história do ICMS: a não incidência do imposto sobre as simples movimentações de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa. Tudo leva a crer que deve ser a palavra final do STF sobre o assunto.
A questão principal, como se sabe, já se encontra pacificada há décadas: o ICMS não deve incidir sobre a simples movimentação física de bens, ante a falta de caráter mercantil e a inexistência de alteração de titularidade da mercadoria nessa situação.
As primeiras decisões do STF sobre o tema datam da década de 1970 (vale lembrar que o ICM foi inserido no sistema tributário em 1965). O tema já foi consolidado no Enunciado da Súmula STJ nº 166, de 1996, no REsp Repetitivo nº 1.125.133 (Tema 259 do STJ), de 2019, no ARE 1.255.885 (Tema nº 1.099 da Repercussão Geral do STF), de 2020, e até mesmo na própria eficácia imediata e erga omnes do julgamento de mérito da ADC 49, a partir de 2021.
Mas, no complexo universo tributário brasileiro, existem muito mais coisas entre o céu e a terra do que possa imaginar nossa vã jurisprudência.
O ponto específico que motiva os embargos de declaração opostos pelo amicus curiae, o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindocom), é o seguinte: uma alegada obscuridade com relação ao tratamento tributário aplicável àqueles contribuintes que não recolheram o ICMS antes de 2024, confiando na jurisprudência sedimentada, mas que não estão discutindo essa questão em qualquer processo administrativo ou judicial.
É que, no último julgamento da ADC 49, o STF modulou os efeitos da declaração da inconstitucionalidade do artigo 12, inciso I, da Lei Complementar n° 87/1996 (LC 87/96), que prevê como fato gerador do ICMS a saída de mercadorias destinada a outro estabelecimento de uma mesma empresa. Na prática, o STF reconheceu a invalidade da norma com efeitos prospectivos a partir de 2024, mas ressalvou da modulação processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito em 19/4/2021.
Como a decisão não foi absolutamente expressa com relação à situação daqueles contribuintes que não recolheram o ICMS, mas não estão debatendo essa questão em processos administrativos e judiciais, começaram a surgir algumas decisões judiciais fazendo uma interpretação, na nossa visão, absolutamente incompatível com tudo que foi deliberado na ADC 49. Alguns têm entendido que seria legítima a cobrança do imposto nessas hipóteses. Daí os embargos de declaração terem sido opostos solicitando esclarecimentos do STF nesse sentido.
Antes de julgar o mérito do recurso, caberá ao Supremo examinar preliminarmente a própria legitimidade do amicus curiae para oposição de embargos de declaração em sede de ação direta de inconstitucionalidade. A posição do STF até o momento tem seguido a jurisprudência histórica da Corte que não admite o manejo desse recurso por parte de amicus curiae em ação direta.
Grosso modo, a Corte entende que o artigo 138 do CPC de 2015, que prevê essa legitimidade recursal do amicus curiae, só seria aplicável aos processos ordinários (por exemplo: recursos extraordinários com repercussão geral), não às ações diretas.
Na nossa visão, essa posição não se mostra mais adequada à lei, à jurisprudência e aos próprios contornos atuais do sistema de controle de constitucionalidade existentes no Brasil.
Primeiro, porque o CPC de 2015 veio a prestigiar o papel do amicus curiae, prevendo sua competência recursal para fins de oposição de embargos sem qualquer restrição ao procedimento em que ele é apresentado. A legitimidade recursal do amicus curiae já é delimitada pelo próprio Código Fux: amicus curiae só pode opor embargos de declaração, e não qualquer outro recurso. Não faz sentido, portanto, criar restrições não previstas pelo legislador.
Segundo, essa restrição processual torna-se ainda mais inadequada quando se verifica a relevância que adquiriu a atuação do amicus curiae no panorama atual do do STF. Houve um crescimento exponencial no número de participações, nos últimos anos, havendo casos capazes de atrair dezenas de pedidos de amicus curiae.
Um tribunal da magnitude do STF precisa reforçar a legitimidade social e técnica de suas convicções. Mais do que nunca a Corte precisa de "amigos". Por isso, nada melhor do que os legitimar para que o tribunal cumpra adequadamente suas funções decisórias. Nesse contexto, parece inadequado limitar a atuação recursal, ainda mais em um recurso tão necessário à própria compreensão e ao cumprimento das decisões, como é o caso dos embargos de declaração. Isso soa como aquela vetusta e ultrapassada jurisprudência do STF, altamente restritiva com relação aos legitimados ativos para ajuizamento de ações do controle concentrado: uma forma nada democrática e plural de se manter a sociedade civil fora do controle de constitucionalidade — algo que ficou no século passado sem deixar saudades.
Terceiro, há uma inegável aproximação do sistema de controle de constitucionalidade difuso e concentrado, notadamente nos casos julgados em ADI e em RE com repercussão geral. O próprio STF tem contribuído para aproximar esses dois sistemas. Inibir a oposição de EDs por amicus curiae nessas ações, em que os legitimados ativos são ainda mais restritos, pode acabar embaraçando justamente o cumprimento e a eficácia erga omnes da decisão.
No caso concreto da ADC 49, a situação seria ainda mais grave. Isso porque o amicus curiae é até mesmo um legitimado ativo para deflagrar o controle concentrado, com legitimidade inequívoca para tratar do tema em função da necessidade de deslocamento nacional de mercadorias para distribuição de combustíveis. E, mais do que isso, nos EDs, está se trazendo à Corte a prova viva de problemas práticos que estão surgindo no cumprimento, por outros tribunais, do que foi decidido pelo STF na própria ADC 49. Matéria que, a rigor, poderia ser trazida por qualquer um que tivesse seu direito violado no caso concreto por meio de reclamação constitucional.
Por tudo isso é que faz sentido ao STF dar sua palavra — oxalá — final no mérito sobre o tema objeto desses segundos EDs opostos na ADC 49.
Até porque, no mérito, não se deveria fazer nada diferente do que o STF já vem fazendo na cuidadosa apreciação da ADC 49. O Tribunal deve apenas deixar mais claro o que já sinalizou em várias passagens do julgamento anterior, como já demonstramos aqui: afirmar categoricamente que a modulação se fez para preservar o status quo existente até então, evitando-se oportunismos: repetições de indébito por parte de quem pagou o ICMS e não havia contestado até então ou mesmo impedindo a glosa de créditos do ICMS por parte de quem destacou o ICMS com base na legislação em vigor.
De forma alguma se pode interpretar a decisão do STF como uma autorização para cobranças retroativas, inclusive com multa e juros, de quem simplesmente deixou de destacar o imposto amparado pela jurisprudência absolutamente consolidada, repita-se, com base em ao menos três precedentes vinculantes: Súmula 166 do STF, Tema 259 do STJ e Tema 1.099 do próprio STF.
Não há quaisquer apostas aqui. O cenário jurisprudencial é, sempre foi e sempre continuará sendo estável com relação à questão de mérito: o ICMS nunca pôde ser cobrado, não pode ser cobrado, nem poderá ser cobrado sobre movimentações físicas de mercadorias. A modulação, insista-se, não teve por motivação qualquer virada jurisprudencial, mas apenas impedir que situações consolidadas (por exemplo: pagamentos de ICMS efetuados nessas transferências e créditos apropriados com base no ICMS destacados) sejam revistas, evitando-se o que o próprio Supremo denominou de "indesejável cenário de macrolitigância fiscal".
Ora, entender a modulação da ADC 49 como uma autorização do STF para legitimar cobranças retroativas de ICMS em simples deslocamentos de mercadorias, em que nem o STF, nem o STJ, nem mesmo qualquer outro Tribunal do País jamais reputou válida a cobrança do imposto é simplesmente entregar o troféu ao perdedor. Ao vencedor, nem as batatas.
Diante da jurisprudência absolutamente pacífica a respeito do tema, na prática, milhares de contribuintes sequer destacavam o ICMS nessas situações corriqueiras do mundo empresarial, tendo por base as opiniões de seus assessores legais corretamente apoiadas nas decisões judiciais em vigor de que eram baixas ou muito reduzidas as chances de o Fisco se sagrar vencedor em uma autuação fiscal nesse sentido.
A única e mais disruptiva novidade que poderia existir nesse tema seria o STF reafirmar esse entendimento de que o ICMS não incide sobre as transferências, mas validar e até mesmo estimular o Fisco a efetuar autuações oportunistas e retroativas com base nessa interpretação enviesada da ADC 49. É uma situação ainda mais inadmissível do que a chamada "inconstitucionalidade útil", que acaba por beneficiar o Fisco nas modulações de efeitos em matéria tributária, negando-se a repetição de indébito.
O que ocorreria seria uma verdadeira "constitucionalidade inútil": a ADC é julgada improcedente, repisa-se a jurisprudência da Corte, mas o Fisco — que até então estava omisso e não tinha instaurado qualquer processo administrativo ou judicial — ganha um "bilhete premiado" ou talvez algo mais próximo de uma "licença para matar": poderá cobrar agora, por obra do acaso, com multa e juros, sem qualquer possibilidade de contestação, um imposto que sempre soube que não podia exigir e que o Poder Judiciário jamais admitiu que deveria ser pago.
O funcionamento do nosso sistema de precedentes será colocado à prova no julgamento desses embargos de declaração. A história da ADC 49 não pode terminar assim: "há 50 anos o Fisco sabe que não pode cobrar o ICMS, mas em 2023 ganhou o direito de cobrá-lo retroativamente, com multa e juros". Com a palavra, o STF.