OPINIÃO UM REPROCHE À SÚMULA 664 DO STJ: A CONSUNÇÃO FORA DE EIXO
A 3ª Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça), especializada em direito penal, publicou recentemente a Súmula 664 nos seguintes termos: “É inaplicável a consunção entre o delito de embriaguez ao volante e o de condução de veículo automotor sem habilitação”.
Em miúda explicação da celeuma, havia (e há) a discussão sobre se o agente embriagado e sem carteira de habilitação, mediante uma mesma ação, poderia responder pelo delito do artigo 306 (embriaguez ao volante) e o do artigo 309 (dirigir veículo sem permissão ou habilitação), ambos do Código de Trânsito Brasileiro, ou se este último estaria absorvido (consumido) pelo primeiro, por tutelar igual bem jurídico e ser menos grave.
O clássico conceito do critério interpretativo da consunção é de que o crime tido por necessário ou normal para a etapa de preparação ou de execução de outro crime é por este consumido, restando somente o delito “consumidor” a ser apurado e punido. A esse respeito, explica Dotti que “os bens jurídicos, pelas normas penais, verificam-se, às vezes, relações de mais e de menos: uns contêm-se já nos outros de tal maneira que uma norma consome já a proteção que a outra visa” [1].
Levando em conta estes conceitos, o STJ entendeu que o delito de embriaguez ao volante é autônomo em relação ao de condução de veículo automotor sem habilitação, pois, além de tutelar bem jurídico diverso, este não serve de etapa normal ou necessária para a configuração daquele.
Discorda-se, no entanto, pois não é tão simples quanto parece.
Ao observar a jurisprudência que se construiu em sentido diverso ao da súmula, vê-se que o argumento utilizado é de que “ambos os delitos visam proteger o mesmo bem jurídico, qual seja, a incolumidade pública” e se “praticados nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, devida a absorção do crime do artigo 309, do CTB, pelo crime mais grave, de embriaguez ao volante, pois a falta de habilitação passa a incidir como circunstância agravante, diante da previsão do artigo 298, inciso III, do CTB.” [2]
Se se pretende objurgar os fundamentos acima, necessário que sejam atacados e vencidos, não apenas negados.
Ao se consultar os julgados que deram origem à súmula, lê-se o fundamento de que “os crimes previstos nos artigos 306 e 309 do CTB são autônomos, com objetividades jurídicas distintas, motivo pelo qual não incide o postulado da consunção”, o que conduziria ao arremate de que “o delito de condução de veículo automotor sem habilitação não se afigura como meio necessário nem como fase de preparação ou de execução do crime de embriaguez ao volante” [3].
Verifica-se que não houve o devido enfrentamento das razões divergentes do preceito sumular.
Portanto e para tanto, o passo inicial é aferir se os delitos mencionados têm a mesma objetividade jurídica, ou seja, se visam a proteger o mesmo bem jurídico. O segundo passo é saber se a resposta a este questionamento irá influenciar na aplicação da consunção.
A doutrina, em clara divergência da súmula, ensina que ambos os delitos citados protegem o mesmo bem jurídico. Nesse sentido, De Lima, sobre o objeto de tutela pelo artigo 306, diz que é a “segurança viária” [4]; pelo artigo 309 a “segurança viária” [5] e a “incolumidade pública” [6], este último de forma secundária. Na prática, estes últimos se confundem, pois a finalidade de se preservar a segurança viária é proteger a incolumidade pública. Um é consequência do outro.
Andreucci também afirma que tanto o artigo 306 [7], quanto no artigo 309 [8], tutelam o bem jurídico da “incolumidade pública”.
De tal modo, ao menos na doutrina citada, converge-se na conclusão de que ambos os crimes tutelam o mesmo bem jurídico e, se assim o é, afasta-se o requisito jurisprudencial de não se aplicar a consunção por terem os tipos distintas objetividades jurídicas.
Por conseguinte, um dos requisitos da consunção está preenchido (proteção de bem jurídicos idênticos), restando verificar a existência do segundo, qual seja, de que um dos crimes sirva de preparação ou meio necessário à execução de outro. [9]
Nesse ponto, importante novamente a lição de Dotti, que aconselha o afastamento das fórmulas genéricas na discussão sobre a consunção, pois o intérprete deve se fiar ao caso concreto: “ao contrário do que ocorre com a relação de especialidade, o reconhecimento da consunção depende de uma verificação em cada caso concreto, através da comparação qualitativa dos bens jurídicos violados”. Noutros falares, não apenas o traço ideativo, mas sobretudo a ponderação de cada situação específica é que definirá a necessidade da utilização do critério da consunção.
A conjectura sob análise, repita-se, é a de uma pessoa que, sem habilitação para dirigir, embriaga-se e em seguida conduz veículo automotor, o que estaria a lesar a “incolumidade pública” ou “segurança viária”.
Ora, a pergunta que ressai é: não sendo habilitado, é necessário que eu cometa o crime do artigo 309 para que venha a cometer o previsto no artigo 306? Em outro raciocínio: ao conduzir um veículo, estando embriagado e sem habilitação, posso eu praticar o delito de embriaguez ao volante sem que, ao mesmo tempo, cometa o delito de direção sem habilitação? A resposta é bastante óbvia, a nosso ver, considerando o que já se expôs e o que adiante se mostrará.
Para qualquer crime cuja prática seja necessária à execução de outro é imprescindível um elemento comum que os una. O exemplo da lesão corporal e homicídio é explicativo, já que em ambos a agressão à integridade física é o componente que os integra. Quanto ao artigo 306 e artigo 309 do CTB, o elemento que os atrela é a conduta de dirigir, contida em ambos os tipos penais. A diferença reside na condição do agente, que pode estar somente sem habilitação, somente embriagado, mas com habilitação, ou ao mesmo tempo sem habilitação e embriagado, situação na qual deve incidir a consunção.
Em percuciente esclarecimento, De Bem e Martinelli aduzem que o princípio da consunção é aplicado em situação de crimes complexos (e.g., roubo, que é um furto somado à ameaça ou lesão corporal), crimes não propriamente complexos (e.g., constrangimento ilegal no estupro) e atos típicos acompanhantes (e.g., violação de domicílio no furto com destruição de obstáculo à subtração da coisa). Esta última classificação é a que abrange a relação entre o artigo 306 e 309, pois os fatos típicos acompanhantes “realizam-se paralelamente ao tipo de delito prevalente, pela mesma conduta qualificada segundo a norma consuntiva ou, ainda, por conduta diversa daquela, porém a ela normalmente vinculada”[10].
Se o agente não possui habilitação e dirige, que é ato típico previsto no artigo 309, ao fazê-lo também sob a influência de álcool, pratica, em tese, por acompanhamento, o delito do artigo 306. E nesse conflito aparente, a solução é optar pelo delito mais grave, pois consome o delito mais débil e protege o mesmo bem jurídico.
Alguém poderia contrapor que a condição de dirigir sem habilitação e embriagado não estaria consoante ao tratamento proporcional exigido pelo direito, pois se o agente estiver somente embriagado, mas com habilitação, também responderia apenas pelo crime do artigo 306.
Entretanto, a condição de dirigir sem habilitação, nos casos em que concomitante à embriaguez ao volante, mesmo reconhecida a consunção, resulta ainda na aplicação da agravante prevista no inciso III, artigo 298 do CTB [11], que é o elemento fático da ausência de habilitação, a fim de refletir a reprovabilidade adequada por equilibrar a resposta penal em casos aparentemente semelhantes.
Também se poderia objetar que os julgados fundantes da súmula (a despeito do que diz a doutrina) afirmam que a objetividade jurídica dos delitos é distinta e que por isso a consunção seria impossível.
Este argumento igualmente não prospera, uma vez que “a diversidade de bens jurídicos tutelados não é obstáculo para a configuração da consunção”. E como exemplo, cita-se o entendimento do TRF 4, no sentido de que o artigo 22 da Lei nº 7.492/86 absorve o artigo 6º da mesma lei [12], embora com bens jurídicos distintos [13]. Ademais, como já alertado, “essa diversidade de objetividades jurídicas apenas é aferível no caso concreto” e, analisando-o, não se constata.
Expostos tais razões, indefectível o reproche ao preceito sumular nº 664 do STJ, que não guarda simetria com os pressupostos dogmáticos e doutrinários da consunção.
[1] Dotti, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 413.
[2] Trecho do recente voto do desembargador relator Marcelo Gordo Bilac, do TJ-SP, nos autos da apelação criminal n. 00007608520188260076; data de Julgamento: 07/07/2023, 13ª Câmara de Direito Criminal; data de Publicação: 07/07/2023.
[3]STJ – AgRg no REsp: 1898458 PR 2020/0255351-8, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 09/12/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/12/2020.
[4] De Lima, Renato Brasileiro. Legislação criminal especial comentada – volume único. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1.223.
[5] De Lima, 2020, p. 1.240.
[6] De Lima, 2020, p. 1.241.
[7] Andreucci, Ricardo Antonio. Legislação Penal Especial. 12 Ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 98, livro digital.
[8] Andreucci, 2017, p. 102.
[9] Cezar Roberto Bitencourt adverte, porém, que dada a excepcionalidade que possa surgir nos casos em concreto, a diversidade de bens jurídicos não é obstáculo para a configuração da consunção. E mais à frente o tema será aprofundado. (Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – parte geral. 17 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 250.
[10] De Bem, Leonardo Schmitt. Martinelli, João Paulo. Direito Penal – lições fundamentais/parte geral. 6 ed. São Paulo: D’plácido, 2021, p. 499.
[11] “Art. 298. São circunstâncias que sempre agravam as penalidades dos crimes de trânsito ter o condutor do veículo cometido a infração: (…) III – sem possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação; (…)”
[12] “(…) Ocorre a consunção quando a sonegação de informação do artigo 6º da Lei nº 7.492/86 é meio para o fim de praticar a evasão de divisas.” (TRF-4 – ACR: 80429 PR 2001.04.01.080429-1, Relator: Maria de Fátima Freitas Labarrère, data de julgamento: 26/10/2004, Sétima Turma, Data de Publicação: DJ 17/11/2004 p. 838.)
[13] No art. 6º tutela-se a “veracidade e completude das informações a serem prestadas com o escopo de evitar a indução ou manutenção em erro de sócio, investidor ou repartição pública competente”. Já no art. 22 protegem-se as “reservas cambiais, de modo a garantir o equilíbrio econômico do país”. Prado, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8 ed. São Paulo: Forense, 2019, p. 154 e 206.