DIREITO DO AGRONEGÓCIO CONTRATOS DE COMPRA E VENDA FUTURA DE SAFRA: CLÁUSULA WASHOUT E INCIDÊNCIA DE PIS/COFINS
Na coluna desta semana faremos algumas ponderações a respeito da cláusula washout prevista com regularidade e de grande importância nos contratos de compra e venda futura de safra.
Na cadeia do agronegócio, ao se disciplinar a relação jurídica ligada aos contratos de compra e venda futura, existe um grande desafio, que se refere aos riscos decorrentes da volatilidade dos preços das commodities, fruto de inúmeros fatores ligados ao ciclo biológico, clima, geopolítica, variação cambial, entre outros.
Esta incerteza nas relações contratuais exige a estruturação de negócios jurídicos que atenuem tais riscos, especialmente, a fim de que não se tenha o descumprimento destes no futuro, quando da entrega da safra, na medida em que a segurança jurídica da cadeia toda — desde a produção até exportação — depende do respeito ao que foi firmado.
Entre os instrumentos contratuais que visam oferecer segurança jurídica ou a redução do risco de descumprimento, podemos citar a cláusula washout, uma vez que esta tem por finalidade resguardar a entrega dos produtos agrícolas negociados, impedindo ou, ao menos, dificultando o descumprimento do contrato, por desvio da oferta, por exemplo, em razão de, em determinado momento, ter outra oportunidade de venda com melhores condições de preço em comparação ao contrato já firmado.
Daí porque, surge a cláusula impondo ao vendedor, na hipótese de não cumprir com a entrega dos produtos agrícolas, como avençado em contrato, com o pagamento de um valor indenizatório, dado o ilícito no descumprimento contratual, em geral, correspondente à diferença do preço estipulado no contrato e o preço de mercado.
Logo, possível notar que referida cláusula, sob o ponto de vista do daquele que irá receber tal indenização, não se refere ao ingresso de uma receita operacional como se fosse a venda pela empresa adquirente do produto agrícola e que, dentro da cadeia, possui outro negócio jurídico firmado de exportação, que há de ser cumprido, sob pena de penalidades contratuais, prejuízos e rompimento da cadeia envolvendo o setor, onde a exportação é uma das finalidades principais.
Este valor indenizatório, fruto do rompimento contratual, que é um ilícito, tem por função primordial permitir que adquirente, em especial, tenha condições, a partir deste montante recebido, de adquirir no mercado o produto a fim de cumprir seus compromissos contratuais voltados ao exterior, impedindo que o descumprimento de um elo se torne a quebra de toda a cadeia produtiva.
Diante deste contexto jurídico e fático, tais ingressos, em nossa visão, não me parecem permitir a incidência das contribuições para o PIS e Cofins sobre a receita bruta, nos termos do artigo 195, I, da Constituição, bem como Leis n. 10.637/2002 e 10.833/2003.
Como é de conhecimento, receita é mais que faturamento, não se confundindo com aquela, o que ficou totalmente comprovado a partir da Emenda Constitucional nº 20/98, alterando o artigo 195, da Constituição para incluir faturamento e/ou receita, demonstrando que são realidades distintas. [1]
Daí porque, delimitar o conceito de faturamento não é suficiente para se avaliar a tributação de PIS/Cofins sobretudo no regime não-cumulativo, uma vez que este está vinculado à noção de receita, a qual é mais ampla segundo disposto no artigo 1º, das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003, o PIS e a Cofins incidem sobre o “total das receitas auferidas no mês pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil.”
É preciso, assim, identificar a noção de receita à luz do texto constitucional e legislação infraconstitucional a fim de delimitar a amplitude de incidência tributária de tais contribuições.
Um primeiro pressuposto para a caracterização da receita é a necessidade de uma entrada ou ingresso de recursos financeiros com repercussão patrimonial.
Receita, portanto, é ingresso ou entrada, mas, com certas qualidades.
Dentro deste aspecto, pode-se afirmar que nem todo ingresso ou entrada financeira será obrigatoriamente uma receita.
Há necessidade que esta entrada tenha a característica de permanência ou definitividade, na medida em que deve pertencer à entidade, não se subordinando a uma condição ou cuja passagem é transitória pelo patrimônio do contribuinte [2]. Sob pena de se tributar receita de outro titular ou mesmo “fictícia”.
Assim, somente será receita aquele ingresso de natureza financeira [3] que se incorpore definitivamente ao patrimônio do contribuinte [4].
Mais do que se incorporar ao patrimônio do contribuinte, é necessário apreciar, ainda, a causa desta entrada para configurar como receita.
É preciso identificar relação de causalidade entre a origem da entrada e seu reflexo patrimonial.
Somente pode ser considerada receita o ingresso que corresponda a uma causa inicial ou primária, isto é, receita nova.
Neste sentido, não pode ser considerado como receita o mero ressarcimento ou reembolso de despesas, uma vez que nesta hipótese não se agrega algo novo ao patrimônio, representando uma recuperação ou recomposição de valores, que já lhe pertenciam anteriormente de forma definitiva.
Ora, o artigo 195, inciso I, alínea “b”, da Constituição outorga à União competência tributária para instituir tributo tendo como núcleo estrutural a noção de receita e não de despesa. Receita é uma “não-despesa”, o oposto.
Afirma Marco Aurélio Greco que: “ao atribuir competência para alcançar as receitas, a CF-88, automaticamente, excluiu do campo da tributação as ‘despesas’ (= feição negativa) (em sentido lato, abrangendo custos, dívidas, etc) realizadas pela pessoa jurídica. Assim, o universo das receitas se opõe ao universo das despesas e este último não foi qualificado pela norma constitucional.” [5] .
Dado relevante ainda à caracterização da receita, diz respeito ao fato de que esta riqueza nova há de ser decorrente do exercício da atividade empresarial, que se realiza a partir da celebração de negócios jurídicos como a venda de mercadorias, prestação de serviços, bem como cessão onerosa e temporária e direito de remuneração de investimentos. [6]
Identifica-se, assim, a causa e seu nexo, ou seja, uma entrada financeira nova e definitiva que decorre do exercício da atividade empresarial em geral, com relação ao seu objeto social.
Este ingresso deve trazer como consequência um reflexo patrimonial positivo originado da participação da própria fonte produtora. [7]
A receita há de ser, portanto, um “plus jurídico”, por agregar um “elemento positivo ao patrimônio”.[8]
Bem por isso, não se pode considerar receita a transferência patrimonial, pois não é resultando da atividade empresarial do contribuinte.
Neste sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
“O conceito de receita, acolhido pelo art. 195, I, “b”, da Constituição Federal, não se confunde com o conceito contábil. Entendimento, aliás, expresso nas Leis 10.637/02 (art. 1º) e Lei 10.833/03 (art. 1º), que determinam a incidência da contribuição ao PIS/PASEP e da COFINS não cumulativas sobre o total das receitas, “independentemente de sua denominação ou classificação contábil”. Ainda que a contabilidade elaborada para fins de informação ao mercado, gestão e planejamento das empresas possa ser tomada pela lei como ponto de partida para a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo algum subordina a tributação. A contabilidade constitui ferramenta utilizada também para fins tributários, mas moldada nesta seara pelos princípios e regras próprios do Direito Tributário. Sob o específico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”. [9]
Possível reconhecer, assim, que receita será aquele ingresso ou entrada financeira primária e definitiva, decorrente da atividade empresarial do contribuinte, que leve ao incremento patrimonial positivo, ou melhor dizendo, “agrega um elemento positivo ao patrimônio”. [10] – [11]
Deste modo, partindo de uma noção jurídica de receita bruta, para fins de incidência do PIS/Cofins no regime não cumulativo, embora seja um ingresso financeiro definitivo no patrimônio da empresa, em verdade, sua causa se dá por um ilícito previsto em contrato, o que gera uma indenização.
A indenização, por essência, não é renda, como também não pode ser vista como receita, na medida em que não traz tecnicamente um ingresso novo (causa inicial ou primária). Revela uma previsão de ressarcimento do custo adicional (que não deveria ter) na aquisição produtos agrícolas para comercialização (em especial, exportação), mas, que, por descumprimento de seu fornecedor, está indevidamente sofrendo.
Daí o ressarcimento ou indenização de custo adicional na aquisição, o qual tem natureza de recomposição patrimonial, não pode ser confundido com ingresso novo, tendo causa o exercício da atividade empresarial.
Bem por isso, referida cláusula contratual, não se resume a dizer que se possui natureza indenizatória, mas, sobretudo, demonstrar que se busca neutralizar o custo de aquisição, para que, ao menos na teoria, o impacto negativo da não entrega e o custo em adquirir no mercado fosse neutralizado. Como se nada houvesse ocorrido, como se tivéssemos, custo, receita e ganho normal, levando em consideração o cumprimento pelo produtor na entrega do produto.
No fundo, nos parece, nem mesmo se confundir com indenização por lucros cessantes. A indenização é do custo de aquisição adicional, e não do lucro da operação [12]. Portanto, uma “não receita”.
Assim, com a inserção desta cláusula, caso algum vendedor não entregue o produto e a adquirente tenha que ir ao mercado para adquirir tais produtos para cumprimento de suas obrigações — sujeita à cotação do momento, que pode ser prejudicial — a vendedora deve reparar este custo adicional na aquisição do produto (custo de aquisição), além de eventuais das indenizações cumulativas previstas em contrato.
Importante também acrescentar ao entendimento de que não caberia a tributação, o fato de que grande parte dos casos envolvem exportação, e, como é de conhecimento, a receita decorrente desta operação destinada ao exterior é protegida pela imunidade constitucional do artigo 149, § 2º, I, de maneira que torna ainda mais sem lógica a tributação da indenização pela clausula washout. Isto porque, direta ou indiretamente, estar-se-ia o Fisco tributando a operação.
Apesar deste posicionamento, embora seja precedente isolado, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) reconheceu, equivocadamente, a necessidade de tributação:
CLÁUSULA DE “WASH OUT”. INDENIZAÇÃO POR LUCROS CESSANTES. BASE DE CÁLCULO DA COFINS NÃO CUMULATIVA. A natureza jurídica da cláusula de “wash out” é de indenização por lucros cessantes, representando ingresso de receita nova. Nos termos da legislação de regência, a Cofins incide sobre o total das receitas auferidas no mês pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil, compreendendo a receita bruta de que trata o art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598/77 e todas as demais receitas auferidas pela pessoa jurídica. O Superior Tribunal de Justiça definiu, tanto em relação aos juros de mora pagos em decorrência de sentenças judiciais, quanto aos juros contratuais, que, muito embora se tratem de verbas indenizatórias, possuem a natureza jurídica de lucros cessantes, consubstanciando-se em evidente acréscimo patrimonial, tributável pela Cofins não-cumulativa. [13]
Pelas razões já expostas, discordamos deste posicionamento, na medida em que não nos parece lucro cessante, o que impede configurar receita bruta capaz de ocasionar a incidência de PIS/Cofins no regime não cumulativo [14].
[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Cofins – a Le n. 9.718/98 e a Emenda Constitucional n. 20/98. Revista de Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Malheiros, v. 75. p. 182.; CARRAZZA, Roque Antonio; BOTTALLO, Eduardo Domingos. Contribuições para a Cofins, a Lei n. 9.718/98 e a EC n. 20/98. Revista de Direito Tributário Brasileiro. São Paulo: Malheiros, v. 75. p. 228.
[2] BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 15. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 126.; ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Cleber. PIS – Exclusão do ICM de sua base de cálculo. Revista de Direito Tributário. São Paulo, RT, jan./Marc., v. 35, 1986. p. 160.; ATALIBA, Geraldo. ISS – Base imponível. Estudos e Pareceres de Direito Tributário. São Paulo: RT, 1978. p. 85. v. 1.; BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na lei. São Paulo: Dialética, 2003. p. 328-332.
[3] STF, RE 586482, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, j. 23/11/2011, DJ 18/06/2012.
[4] – “RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. EXCLUSÃO DO ICMS NA BASE DE CÁLCULO DO PIS E COFINS. DEFINIÇÃO DE FATURAMENTO. APURAÇÃO ESCRITURAL DO ICMS E REGIME DE NÃO CUMULATIVIDADE. RECURSO PROVIDO. (STF, RE 574706, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJ 02-10-2017).
[5] GRECO, Marco Aurélio. Cofins na Lei n. 9.718/98 – Variações cambiais e regime da alíquota acrescida. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, v. 50. p. 130.
[6] MINATEL, José Antonio. Conteúdo do conceito de receita e o regime jurídico para sua tributação. São Paulo: MP, 2005. p. 124.
[7] OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 145 e 150.
[8] OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 104.
[9] – STF, RE 606107, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-231 DIVULG 22-11-2013 PUBLIC 25-11-2013).
[10] OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 104.
[11] MINATEL, José Antonio. Conteúdo do conceito de receita e o regime jurídico para sua tributação. São Paulo: MP, 2005. p. 125.
[12] Por analogia, na linha de recente decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre os acordos comerciais: REsp n. 1.836.082/SE, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 11/4/2023, DJe de 12/5/2023.
[13] – CARF, Ac. 3401-008.993, 3ª Seção de Julgamento / 4ª Câmara / 1ª Turma Ordinária, j. 28 de abril de 2021.
[14] Este entendimento a respeito da não tributação encontra também fundamento em abalizada doutrina: FALEK, Thales. CUNHA, Gabriel Hercos. A análise tributária da cláusula de washout pelo CARF. JOTA. 26/10/2021.; SOUZA, Pedro Guilherme Gonçalves de. A Cláusula de Wash-out no Comércio de Grãos e a não Incidência do PIS e da Cofins – Uma Análise Jurisprudencial. Revista Direito Tributário Atual nº 52. ano 40. p. 283-302. São Paulo: IBDT, 3º quadrimestre 2022, p. 283-302.; CISOTTO, Liliane Bertelli Imura. VIERA, Renato Teixeira Mendes. Considerações acerca do PIS e da COFINS sobre indenização do descumprimento contratual. CARF e o Agronegócio. HERCOS, Gabriel. HALAH, Lucas Issa. CAVALCANTI, Muller. FALEK, Thales. DUTRA, Viviane Faulhaber (Coord.). Belo Horizonte: D´Plácido, 2022. p. 371-389.