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OPINIÃO A REFORMA TRABALHISTA DO STF

Nos últimos meses, a imprensa (tanto a geral quanto a especializada em assuntos jurídicos) vem noticiando um estranhamento entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e uma parte da magistratura do trabalho, incluindo a mais alta corte trabalhista, acusada publicamente de se negar a aplicar decisões daquele Tribunal em controle concentrado de constitucionalidade.

Foram várias as manifestações em tal sentido, podendo ser ilustradas no voto do ministro Gilmar Mendes na Reclamação 63.414/MG, que julgou procedente a ação a fim de “cassar o acórdão que reconheceu o vínculo empregatício entre as partes e as demais decisões que se seguiram…”, determinando ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 3ª Região proceder um novo julgamento, devendo, para tanto, considerar o conteúdo decisório da ADPF 324 pelo STF, isto é, como se tratava de uma ação trabalhista de declaração de vínculo empregatício, para a turma do TRT cumprir a decisão do ministro terá, necessariamente, de julgar improcedentes os pedidos.

Outros ministros do STF também tiveram oportunidade de decidir em sentido similar. Não foi ao acaso que até o momento mais de duas mil e quinhentas reclamações constitucionais foram ajuizadas, em sua grande maioria, para atacar decisões contra as quais ainda caberia recurso na Justiça do Trabalho, transformando o STF de um tribunal constitucional, quando se trata de matéria trabalhista, em instância revisora, usurpando a competência em sede de recursos que seria dos Tribunais Regionais ou do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Desperta curiosidade o fato de grande parte destas reclamações atacar decisões trabalhistas em ações cuja controvérsia instaurada é a existência ou não de relação de emprego. Não deixa de ser inusitada a construção argumentativa adotada por alguns ministros do STF para sustentar afronta à decisão na ADPF 324 que trata exclusivamente da licitude da contratação de mão de obra terceirizada.

Uma ação trabalhista onde há debate acerca da existência de vínculo de emprego de um médico com um hospital, de um motorista com uma plataforma ou de um advogado com um escritório de advocacia, por exemplo, não versa a respeito de terceirização (quando se teria uma empresa tomadora de serviços que contrata outra pessoa jurídica, que fornecerá quem prestará tais serviços, enfim, o tal trabalhador terceirizado).

Nesses casos, a controvérsia se resume à validade da forma jurídica adotada na contratação, ou melhor, se a relação de trabalho ocorreu, de fato, entre duas pessoas jurídicas ou se o contrato era um ardil, uma fraude. Em suma, trata-se de julgar a licitude ou não da chamada “pejotização”, que representa nada mais do que a transformação jurídico-formal da pessoa que vende a sua força de trabalho em uma pessoa jurídica.

Classificar esse formato de contratação de prestação de serviços como terceirização de mão de obra significaria acreditar na terceirização de si próprio, como se houvesse um transtorno dissociativo de personalidade em que o trabalhador, ao mesmo tempo, é o prestador de serviços e a empresa terceirizada.

Essas situações fáticas não se amoldam, portanto, àquelas pertinentes à relação jurídica envolvendo terceirização, cuja licitude teria sido refutada pela magistratura do trabalho, mas tão somente à investigação da validade do contrato de prestação de serviços assumido pelas partes, se verdadeiramente uma relação contratual sob formato diverso do contrato de emprego ou uma fraude.

Transparece a competência material da Justiça do Trabalho para apreciar e julgar ações envolvendo essa matéria, sem sofrer interferência do Supremo Tribunal Federal, já que ao exercer a jurisdição, seja lá qual venha a ser o conteúdo de sua decisão, ela não contrariará a Corte Constitucional em qualquer julgamento de controle concentrado (ou mesmo difuso) de constitucionalidade.

Com a reiteração de decisões do STF para cassar julgamentos de tribunais trabalhistas, alguns juristas tentaram explicar o fato como uma campanha daquele Tribunal contra a Justiça do Trabalho, com o objetivo de retirar-lhe relevância jurídica, política, econômica e social até o ponto de a tornar desnecessária. Outros parecem acreditar que a justificativa repousaria na ausência de afinidade teórica dos atuais ministros com as matérias trabalhistas. Sob essa ótica, haveria inaptidão jurídica.

Tais tentativas de explicação do imbróglio mostram-se insuficientes e/ou incorretas. Não há sentido pensar-se em uma disputa institucional do STF contra a magistratura do trabalho para fazer valer suas decisões em controle de constitucionalidade. Significaria simplificar em demasia um tema que aparenta possuir maior complexidade. Tampouco se pode atribuir as decisões à falta de conhecimento de Direito do Trabalho por parte da Corte Constitucional. O problema não é técnico-jurídico. É ideológico.

Habituado aos critérios quantitativos da meritocracia individualista implantados nas últimas duas décadas pelo Conselho Nacional de Justiça, um segmento relevante da magistratura trabalhista não apresentou resistência a aplicar as modificações legislativas trazidas pela Lei 13.467/2017. Muito ao contrário. Pode-se dizer, de certa maneira, que esta parcela ansiava por essa guinada ideológica na legislação.

Nesse aspecto, um dos principais pilares da reforma, a restrição de acesso à justiça com a mitigação da assistência judiciária gratuita, em regra, vinha sendo adotado pela magistratura trabalhista, sem maior reflexão ou resistência, apesar da inconstitucionalidade flagrante, em parte declarada pelo STF.

Enfim, não parece razoável acusar a Justiça do Trabalho de se recusar a aplicar a nova legislação trabalhista. Muito menos, mostra-se correto afirmar que em matéria de terceirização de mão de obra, ela venha afrontando a decisão do STF na ADPF 324.

Apreende-se do conjunto de decisões do STF nas reclamações constitucionais envolvendo matéria trabalhista uma clara pretensão de aprofundar a modificação paradigmática ocorrida no Direito do Trabalho brasileiro.

A Lei 13.467, de 2017, apresentou mais de duzentas alterações no texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Dentre elas não está a impossibilidade de a Justiça do Trabalho declarar fraude à lei quando comprovada a presença dos elementos fático-jurídicos da relação de emprego em detrimento do formato jurídico estabelecido em uma relação contratual diversa. Deve-se recordar que a regra do artigo 9º, que preceitua a nulidade de todos os atos praticados com vistas a fraudar ou desvirtuar a aplicação de alguma de suas disposições, permanece vigente e inalterada.

Em igual sentido, a Reforma Trabalhista não tornou lícita toda e qualquer modalidade de terceirização da contratação de mão de obra. Quem o fez foi o STF no julgamento da ADPF 324, em agosto de 2018.

Os legisladores reformadores procuraram, nos dizeres da época, modernizar a CLT, o que na concepção deles representava impor a flexibilização negativa de direitos, a prevalência da autonomia privada individual, o enfraquecimento dos sindicatos e a redução do número de ações trabalhistas. Com evidência, pretendeu-se reduzir direitos sociais, buscando conciliar a legislação trabalhista com as políticas neoliberais impregnadas na maior parte dos países ocidentais, com o intuito de mitigar o custo da mão de obra e potencializar ganhos ao capital.

No entanto, as alterações promovidas pelo Congresso, em 2017, parecem ser compreendidas pelo ministros da Alta Corte como insuficientes a contemplar o novo Direito do Trabalho, já que eles estão a aprofundar a mudança paradigmática exigida pelos ideólogos do mercado.

Em nome da segurança jurídica institucionaliza-se a fraude, com as cassações de decisões judiciais trabalhistas em ações em que foi reconhecida uma relação empregatícia onde existia outra forma jurídica de contratação. Trata-se da utilização de medida judicial — não para corrigir a violação, por um tribunal inferior, de uma decisão do STF em controle concentrado (ou mesmo difuso) de constitucionalidade —, mas, para impor uma determinada forma de decidir os conflitos, melhor conformada a visão de mundo dos ministros daquela Corte.

Da leitura dos votos ou das manifestações do ministro Gilmar Mendes, nessa matéria, o mais eloquente e explícito dentre os ministros, vislumbra-se sua inclinação à reconfiguração institucional das relações de trabalho, importando retirar proteção social a quem vive da venda da sua força de trabalho. Trata-se do “retorno a origem privatista” do Direito do Trabalho, como referido pelo ministro, o que quer significar predomínio da autonomia individual da vontade sobre o interesse estatal de proteção social ao hipossuficiente.

Nessa perspectiva contratualista, mostra-se irrelevante a essência da relação jurídica, passando a importar somente a roupagem jurídica lhe conferida e, assim sendo, não caberia ao Poder Judiciário Trabalhista descaracterizar o contrato fraudulento, sob pena de produzir insegurança jurídica.

Não parece ser outra a ilação a partir da leitura de trecho de decisão do ministro em outra reclamação constitucional (Rcl 53688 AgR/RJ), onde afirmou que uma vez existindo “acordo entre as partes acerca do modo de contratação….”, à luz dos precedentes do STF, mostrava-se inviável e incoerente impor um “determinado modelo de contratação, sobretudo quando o desfecho do processo judicial implica reverter o formato de prestação de serviços livremente escolhido pelas partes”. Para ele, decisão em sentido contrário da Justiça do Trabalho representava uma tentativa de impor a modalidade empregatícia de contratação, opondo-se à “realidade do mercado de trabalho e do arcabouço regulatório”.

Resulta claro que a Reforma Trabalhista introduziu modificações neoliberais à legislação trabalhista brasileira, aplicando-se políticas de austeridade com a flexibilização negativa de direitos.

Antes existia um Direito do Trabalho composto por uma legislação estatal inderrogável e indisponível ao indivíduo, que poderia ser derrogada somente pela via da negociação coletiva, com a participação dos sindicatos, em situações pontuais. Neste modelo, o trabalhador vendia sua força de trabalho e submetia-se a subordinação jurídica em contrapartida de direitos com expressão econômica que, em pequena parte, mitigavam a mais-valia e contribuíam para diminuir — mesmo que superficialmente — o brutal desnível social e econômico, entre quem detém os meios de produção e quem não os detém.

Resulta correto afirmar que a reforma trabalhista se mostrou suficientemente intensa e eficiente para apresentar um novo paradigma ao Direito do Trabalho, o neoliberal. Desse modo, foram criadas formas de contratação precária, além de ampliar as antes existentes. Privilegiou-se a autonomia individual em detrimento do agir coletivo. Tratou-se de flexibilizar regras em matérias caras ao contrato de trabalho, como salário e jornada, mas, com a relação de emprego no horizonte.

A Justiça do Trabalho, em seu aspecto institucional, não se apresentou, nem se apresenta, como ameaça ao projeto neoliberal e às modificações trazidas através dele. Portanto, a magistratura trabalhista não se coloca no cenário político como adversária do STF ou dos setores ligados ao grande capital.

A cassação de decisões da Justiça do Trabalho por ministros do STF, quando a matéria atacada é o reconhecimento de relação de emprego, parece representar a tentativa daquele tribunal de aprofundar o paradigma neoliberal, a fim tornar o mercado de trabalho cada vez mais desregulado, rompendo-se com o contrato de emprego como a forma convencional de contratação.

A seguir-se nesse caminho, haverá um novo Direito do Trabalho. Um ramo do direito que não se ocupará mais de regular a compra e venda da força de trabalho, mas, se dedicará a desregulá-la.