OPINIÃO NOVOS DESAFIOS DA MORATÓRIA DA SOJA E A QUESTÃO DO DESMATAMENTO LEGAL
Desde 2006, os produtores rurais brasileiros convivem com a moratória da soja, que se trata de acordo de iniciativa dos principais produtores de óleo vegetal, protagonizada pela Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), por meio do monitoramento contínuo das áreas dos produtores rurais, para que, inicialmente, os compradores vinculados a essas associações não adquirissem produto plantado em áreas de cultivo irregular, especialmente no bioma amazônico.
A iniciativa conta com a chancela de diversas entidades governamentais, bem como de organizações não governamentais destinadas à proteção do meio ambiente.
A moratória da soja foi capaz de trazer consideráveis resultados em termos de proteção ambiental, possuindo um importante papel na preservação do meio-ambiente desde sua criação. Todavia, o panorama alterou-se significativamente neste ano de 2023. Em maio, o Conselho da União Europeia adotou o novo Regulamento Europeu de combate ao desmatamento e ao desflorestamento nas cadeias produtivas de alguns insumos como madeira, cacau, café, óleo de palma, soja, carne, entre outros [1].
O grande diferencial da disposição europeia trata-se da vedação à importação e comercialização por parte de empresas europeias de insumos provenientes de desmatamento legal. Ou seja, mesmo que o desmatamento seja devidamente autorizado pela autoridade ambiental, atualmente é considerada como ilegal a produção agrícola.
A partir do ano de 2023, a moratória da soja, incorporando o critério europeu, começou a impedir que produtores rurais que promoveram o desmatamento legal, a partir de 2008, pudessem vender sua produção agrícola aos aderentes do referido pacto.
A moratória da soja, assim, possui direta relação não apenas às questões de proteção concorrencial, mas também de soberania nacional, ao dialogar com as legislações europeias, e, especialmente, com os princípios constitucionais atinentes à função social da propriedade rural, à proteção do meio ambiente e ao papel central que possui o agronegócio conforme traçado pela Constituição.
A partir disso, por exemplo, no estado do Mato Grosso, produtores rurais têm enfrentado dificuldades na comercialização de sua produção por conta do inegável conflito entre a possibilidade de desmatamento legal, prevista no Código Florestal, e as restrições que têm sido impostas pela nova disposição europeia.
As dificuldades de comercialização da produção agrícola advêm, justamente, do cruzamento de dados entre os produtores que pediram autorização administrativa de desmate legal da sua área junto à respectiva Secretaria Estadual do Meio-Ambiental e as empresas vinculadas à Abiove e à Anec. Assim, não há a aquisição da safra desses produtores rurais.
De outro lado, a legislação ambiental brasileira possui critérios distintos quanto à legalidade de tal produção. O Código Florestal brasileiro permite o desmatamento legal, especialmente da região amazônica.
Mesmo que as restrições da moratória da soja sejam impostas pelo próprio mercado – funcionando como um verdadeiro mecanismo de autorregulação – há que se ponderar a respeito dos limites colocados pelos próprios agentes econômicos privados. Isso porque não parece razoável que os produtores rurais possam promover a abertura legal de novas áreas em suas terras, nos termos impostos pela legislação brasileira, e, posteriormente, sejam impedidos de colocar no mercado a sua produção por conta das exigências previstas na legislação europeia e em um acordo eminentemente privado, do qual não foram aderentes ou não participaram.
A análise do problema perpassa, primeiramente, pela questão da propriedade privada. Apesar se seu caráter central, a propriedade privada, conforme prevista no direito brasileiro, não é absoluta, estando limitada, dentre outros pontos e no próprio texto constitucional, pelo cumprimento de sua função social que, para as propriedades rurais (artigo 186, CF), deve observância aos critérios e graus exigidos em lei ao (1) aproveitamento racional e adequado; (2) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (3) observância das disposições que regulam as relações de trabalho e; (4) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.
Quanto a estas limitações, o constituinte optou por dotar o legislador com o dever de impor limitações à propriedade rural, exigindo-se, para tanto, que tais “restrições legais sejam adequadas, necessárias e proporcionais” [2]. Assim é que a autonomia do legislador para atuar como mediador das questões ambientais, fixando os critérios concretos de sopesamento entre o dever de preservação do meio ambiente e os demais princípios constitucionais, foi reforçada pelo STF quando do julgamento da ADC 42 (Código Florestal), que pende de decisão em embargos de declaração.
Especialmente quando se está a tratar da devida utilização de recursos naturais e preservação do meio ambiente, a propriedade privada deve ser lida, sistematicamente, a partir da ordem econômica constitucional e “em face do direito ambiental constitucional, associado necessariamente à relação jurídica de uso dos bens ambientais definida no art. 225 da Carta Magna” [3].
A constante necessidade de se ponderar a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico impõe à legislação que defina critérios aptos a definir em o que consiste, no Brasil, o desenvolvimento sustentável.
Não é por outro motivo que o Código Florestal (Lei 12.651/2012) pontua ter por escopo o desenvolvimento sustentável (parágrafo primeiro, artigo 1-A), pretendendo formar um conjunto de normas que, adequadamente, deem cumprimento ao dever constitucional de preservação do meio ambiente sem olvidar do objetivo constitucional de permitir o desenvolvimento econômico. Especialmente, é princípio do Código Florestal a “reafirmação da importância da função estratégica da atividade agropecuária e do papel das florestas e demais formas de vegetação nativa na sustentabilidade, no crescimento econômico, na melhoria da qualidade de vida da população brasileira e na presença do País nos mercados nacional e internacional de alimentos e bioenergia” (artigo 1-A, parágrafo primeiro, inciso II).
Em cumprimento a este escopo é que o Código Florestal, em seu artigo 12, inciso I, define valores mínimos de Reserva Legal para os imóveis localizados na Amazônia Legal, prevendo, inclusive, possibilidades de redução de tais valores em seus parágrafos 4º a 8º, declarados constitucionais pelo STF.
Prevendo um valor mínimo de reserva legal, o Código Florestal e as demais leis ambientais preveem a possibilidade de abertura de novas áreas de exploração agropecuária em conformidade ao princípio da preservação ambiental. Para tanto, há de se observar, sempre, a adequada autorização dos órgãos ambientais competentes.
Havendo um procedimento adequado, dependente de prévia autorização para a abertura de novas áreas de plantio, observados os percentuais mínimos de reserva legal e demais vedações à supressão vegetal, é certo que a atividade agropecuária realizada em áreas cuja vegetação tenha sido suprimida de forma legal atende ao princípio do desenvolvimento sustentável, cujo sopesamento fora realizado pelo legislador. Conforme definiu o STF, “[a] preservação dos recursos naturais para as gerações futuras não pode significar a ausência completa de impacto do homem na natureza, consideradas as carências materiais da geração atual e também a necessidade de gerar desenvolvimento econômico suficiente para assegurar uma travessia confortável para os nossos descendentes” (ADC 42).
Não há, especialmente no Brasil, a possibilidade de se implementar uma política que vede qualquer atuação humana na natureza, sob pena de se impor a determinadas regiões ainda pouco exploradas uma sentença de subdesenvolvimento econômico.
Ao se impor a vedação à comercialização de oleaginosas plantadas em áreas desmatadas legalmente após 2008, a moratória da soja – seguindo critérios impostos unicamente pela União Europeia – equipara o desmatamento legal, precedido da adequada análise pelos órgãos ambientais competentes, mediante licenciamento e/ou autorização e em conformidade ao princípio do desenvolvimento sustentável, ao desmatamento ilegal, despreocupado com qualquer consequência futura e, este sim, objeto da repulsa jurídica e social.
Mesmo que se pretenda equiparar a legislação ambiental brasileira à europeia, é preciso considerar as profundas diferenças históricas e geográficas entre um país de proporções continentais com início tardio da exploração econômica capitalista e um continente cujas reservas naturais já se encontram, em sua grande maioria, exploradas e minguadas.
Ademais, a moratória da soja é uma iniciativa eminentemente privada que está submetida, também, aos critérios de proteção da ordem econômica e, consequentemente, da concorrência. Pelo simples fato de a iniciativa congregar os principais comercializadores de soja do país, o acordo deve ser analisado sob a perspectiva de uma possível infração à ordem econômica, uma vez que os agentes privados não podem simplesmente limitar a concorrência ou limitar a aquisição de insumos agrícolas sob balizas de um limitador que não é previsto pela legislação brasileira (consoante a previsão do artigo 36, § 3º, I, “c”, da Lei nº 12.529/2011).
Na exata medida em que os maiores compradores de soja do país utilizam-se de um acordo privado para impor critérios não previstos na legislação brasileira, é de se questionar a eventual ocorrência de infração à ordem econômica.
Outro relevante aspecto que merece consideração ao se tratar da moratória da soja, e de projetos parecidos que venham a ser implementados, é a vedação à aplicação destes critérios privados como elementos aptos a descredenciar ou desqualificar produtores rurais como aptos a obterem financiamentos para as safras, especialmente financiamentos decorrentes de políticas públicas de fomento ao agronegócio. Afinal, conforme já apontado, o legislador já realizou o sopesamento entre os critérios de desenvolvimento econômico e preservação ambiental ao definir em lei as hipóteses possíveis de abertura de novas áreas de exploração agrícola.
O fomento agrícola, mediante a disponibilização de verbas públicas para a concessão de crédito com taxas competitivas a produtores rurais, constitui verdadeiro instrumento de política pública, voltado ao desenvolvimento econômico, à segurança alimentar e ao bem-estar do povo. Mais especificamente, havendo expressa previsão constitucional (artigo 187, inc. I), pode-se pontuar o crédito rural como instrumento de política agrícola, cuja importância não foi esquecida pelo constituinte.
Ao institucionalizar o crédito rural, a Lei 4.829/1965 já previa, dentre os objetivos específicos, o incentivo a métodos racionais de produção e adequada defesa do solo (artigo 3º, inc. IV).
Não se pode, portanto, pretender impor critérios alheios à legislação para o fim de dificultar o acesso ao crédito rural. Não é outro o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, ao sumular o entendimento de que “O alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas, direito do devedor nos termos da lei” (Súmula 298/STJ).
Portanto, os agentes econômicos integrantes do sistema nacional de crédito rural, especialmente o Banco do Brasil (artigo 7º da Lei 4.829/1965), não podem simplesmente aderir a um pacto privado que limita a exploração de terras brasileiras para além do que dispõe a legislação e a Constituição, impondo ao produtor rural mecanismos que lhe onerem indevidamente e até mesmo impossibilitem a exploração econômica de seu imóvel rural.
O crédito rural, como política agrícola prevista na Constituição e de competência comum de todos os entes federados, não pode se submeter a critérios além daqueles compatíveis com o desenvolvimento rural sustentável, sendo este critério definido pelo legislador, na qualidade de representante do povo.
Não se pode olvidar que, apesar de possuir características essencialmente mercadológicas, a ordem econômica brasileira deve obedecer também à função social da propriedade e à soberania nacional (artigo 170, CF), o que não pode ser atingido sem se possibilitar o devido fomento rural, mecanismo indispensável à produtividade competitiva e sustentável da propriedade rural (função social) e à segurança alimentar e territorial (soberania nacional).
Portanto, compreende-se que qualquer limitação ao crédito rural decorrente da moratória da soja, especialmente diante da assinatura do pacto pelo Banco do Brasil S.A., é indevida, cumprindo ao produtor rural prejudicado a possibilidade de pretender em juízo seu direito ao crédito rural nos termos da política agrícola.
Em conclusão, a moratória da soja, que desempenhou um papel significativo na proteção ambiental desde sua implementação, enfrenta agora novos desafios com a adoção do Regulamento Europeu em 2023. A vedação à importação de produtos provenientes de desmatamento legal, imposta pela União Europeia, colide com a legislação brasileira e gera impactos consideráveis.
Este embate destaca não apenas questões ambientais e concorrenciais, mas também levanta preocupações sobre soberania nacional e a função social da propriedade rural, conforme delineado pela Constituição. O conflito entre a possibilidade de desmatamento legal, conforme o Código Florestal brasileiro, e as restrições europeias evidencia a complexidade dessa problemática.
Portanto, diante desses desafios, é crucial buscar um equilíbrio entre as preocupações ambientais, as demandas econômicas e os princípios constitucionais, visando garantir um desenvolvimento sustentável que respeite a diversidade e as particularidades do cenário brasileiro. A reflexão sobre a adequação e a proporcionalidade das medidas adotadas, bem como a busca por soluções que conciliem os interesses envolvidos, emerge como um imperativo para enfrentar os desafios presentes e futuros relacionados à moratória da soja.
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[1] Anexo I, da Resolução 82/2022, do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a disponibilização no mercado da União e a exportação da União de determinadas mercadorias e produtos associados ao desmatamento e à degradação florestal, revogando o Regulamento (UE) n.º 995/2010. Disponível em: <https://bit.ly/3REGYiL >. Acesso em 05 de dez. de 2023.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, Versão em e-book, cap. 4.III.4.
[3] FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 224.