OPINIÃO PL 572/2022: RESPONSABILIZAÇÃO DE EMPRESAS POR VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS
O Projeto de Lei nº 572/2022, de autoria do deputado Helder Salomão (PT-ES) e outros, cria a “Lei Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas” e estabelece diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre o tema. De acordo com a justificação da proposta legislativa, ainda que possua legislação esparsa sobre proteção ambiental, direitos trabalhistas e proteção a direitos fundamentais, garantidos pela Constituição, existem significativas lacunas na regulação da atuação empresarial no território brasileiro e na reparação de vítimas por danos socioambientais.
Ressalta-se que, desde a década de 1970, a discussão da relação entre empresas e direitos humanos tornou-se cada vez mais relevante na agenda internacional, com a crescente conscientização social sobre o envolvimento de grandes agentes econômicos em violações de direitos humanos. Em 1973, a matéria foi abordada na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e no Conselho Econômico e Social da ONU, sendo criada a “Comissão da ONU sobre Empresas Transnacionais”. Posteriormente, em 1983, elaborou-se o projeto “Código de Conduta da ONU sobre TNCs [1]“, com o objetivo de consolidar diretrizes socioambientais para empresas, em nível internacional. Contudo, em razão de fortes resistências de governos do norte global, o código não fora concluído [2].
Após anos de discussões tensionadas com a comunidade empresarial, por meio do desenvolvimento do marco conceitual “Proteger, Respeitar e Remediar” por John Ruggie, foi elaborado um conjunto de princípios, propostos e aprovados pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 2011: os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos. São 31 disposições que orientam os Estados a se responsabilizarem pela proteção e promoção de direitos humanos, por meio de legislações e políticas de implementação efetivas, bem como empresas a respeitarem direitos humanos, evitarem impactos por meio de relações comerciais e se responsabilizarem pela reparação a vítimas por danos socioambientais causados por suas atividades.
Apesar do progresso com relação ao tema, observa-se, por parte dos setores empresariais, a contínua violação de direitos de trabalhadores e trabalhadoras, comunidades atingidas por danos socioambientais, povos indígenas, populações tradicionais e outros grupos vulnerabilizados detentores de direitos que interagem com atividades ou operações empresariais. A estrutura empresarial contemporânea – pautada na concentração de poder econômico a grandes setores empresariais e na promoção das chamadas cadeias de valor, responsáveis pela descentralização dos processos de produção – concorre para a flexibilização de normas protetivas e assistenciais e dificulta a responsabilização de grupos empresariais em casos de violações de direitos humanos [3].
Nesta dinâmica atual, discute-se o caso Pinheiro/Braskem, que se tornou conhecido após estudos realizados pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM) apontarem danos socioambientais decorrentes da extração mineral de sal-gema, pela empresa petroquímica Braskem. Em razão do rebaixamento da superfície do terreno de Maceió e do agravamento dos danos estruturais de imóveis nos bairros do Pinheiro, Mutange e Bebedouro, as autoridades realizaram a evacuação dos moradores, sendo firmado um acordo para apoio na desocupação das áreas de risco na Justiça Federal.
A responsabilização da empresa petroquímica pelos danos ambientais provocados e a reparação às vítimas ainda é um desafio, em que pese a existência de legislações sobre o tema. A despeito da adoção de medidas administrativas e judiciais cabíveis, o Estado não tem se mostrado suficientemente capaz de satisfazer as pretensões de reparação das vítimas por danos socioambientais, em razão da morosidade processual e a insuficiência de recursos financeiros necessários à reparação adequada.
Dessa forma, destacaremos abaixo as alternativas que estariam disponíveis a serem adotadas, nos casos de violações de direitos humanos e impactos socioambientais causados por atividades empresariais, caso o Projeto de Lei nº 572/2022 seja aprovado:
a) A responsabilização de empresas por violações diretas ou indiretas de direitos humanos:
Nota-se que a complexidade organizativa de grupos empresariais é capaz de gerar grande dificuldade de responsabilização, prevenção e reparação de violações de direitos humanos. Estão cada vez mais evidentes os obstáculos na identificação do vínculo entre a matriz, a filial e as diversas atividades da cadeia, favorecendo a exploração econômica e a flexibilização na aplicação de normas trabalhistas e ambientais [4].
Em vista disso, a proposta legislativa, em seu artigo 5º, prevê a responsabilização das empresas por violações de direitos humanos, causadas direta ou indiretamente por suas atividades. Dispõe, ainda, sobre a responsabilidade solidária entre grupos empresariais, bem como a sua extensão a toda cadeia de valor, impondo, também, a adoção de mecanismos de controle, prevenção e reparação capazes de identificar e prevenir violações de direitos humanos decorrentes de suas atividades.
A proposta prevê o conceito de due diligence, estabelecendo que as empresas são capazes de verificar o potencial lesivo de sua atividade e prevenir consequências graves [5]. Portanto, adequada a previsão normativa de que empresas e suas cadeias de produção busquem formas de responsabilização aplicáveis a todo o sistema, desde a matriz até as subsidiárias e fornecedores.
b) A reparação integral de vítimas em razão de violações de direitos humanos:
Um dos princípios que rege o Projeto de Lei 572/2022, de acordo com o artigo 3º, inciso IV, é o direito das pessoas e comunidades atingidas à reparação integral pelas violações de direitos humanos cometidas por empresas, em observância ao princípio da centralidade do sofrimento da vítima. Também prevê o direito a consulta prévia, livre, informada e de boa-fé às pessoas atingidas, garantindo o direito ao consentimento.
No caso de violações, os Estados e as empresas têm obrigações comuns de: atuar em orientação à reparação integral das violações; garantir pleno acesso a todos os documentos e informações que possam ser úteis para a defesa dos direitos das pessoas atingidas; garantir que o processo de reparação não gere novas violações para as pessoas atingidas; atuar em cooperação na promoção de atos de prevenção, compensação e reparação de danos causados aos atingidos e às atingidas (artigo 4º).
Por meio desta leitura, compreende-se que as empresas que atuam no território brasileiro também possuem obrigações, tanto de respeito e não violação aos direitos humanos, quanto de colaboração e cooperação para prevenção, compensação e reparação de danos socioambientais. Com a aprovação do projeto em destaque, será possível a adoção de medidas de responsabilização, garantindo a reparação integral, a defesa e a promoção de direitos humanos. Além disso, o projeto prevê a criação de um Fundo destinado ao custeio de necessidades básicas de pessoas, grupos e comunidades atingidas, até a consolidação do processo de reparação integral dos danos causados (artigo 13).
c) Adoção de medidas imediatas para cessar a atividade empresarial que apresenta riscos:
De acordo com o artigo 6º do projeto:
As empresas devem promover, respeitar e assegurar os direitos humanos no contexto de suas atividades, pautando sua atuação pelas seguintes diretrizes:
I – Evitar causar ou contribuir com violações aos direitos humanos através da prevenção de danos causados por meio de suas próprias atividades ou serviços prestados em suas relações comerciais, e enfrentar esses danos quando eles vierem a ocorrer, providenciando a cessação imediata da atividade violadora em andamento;
(…)
XIX- Na hipótese de identificação de violação em andamento na cadeia produtiva, cessar imediatamente a atividade ou agir para que a violação cesse imediatamente, por meio de sua influência na cadeia. (grifos nossos)
Com a aprovação da presente proposta, passa a haver a obrigatoriedade legal de cessar as atividades empresariais que violam direitos humanos, evitando que a empresa venha a explorar ainda mais tal atividade enquanto tramita o devido processo.
d) Participação de comunidades atingidas no processo de reparação:
Previsto no artigo 5º, inciso XVI, as empresas deverão criar mecanismos de viabilização material da participação comunitária, principalmente das lideranças, na tomada de decisões acerca dos processos de reparação e compensação de danos, estando incluído o transporte e a alimentação durante os eventos destinados à consulta popular. Além disso, deverão assegurar o acesso a assessorias técnicas independentes para as populações atingidas por desastre, por meio do custeio desta contratação, proporcionando todas as condições para a realização dos trabalhos e não interferindo na escolha de tais entidades, que deverá ser feita democraticamente pelas próprias pessoas atingidas.
Os setores empresariais também deverão garantir instâncias de participação a representantes de todas as comunidades atingidas pela instalação do empreendimento para acompanhar medidas de monitoramento, prevenção e eventual reparação de violações de Direitos Humanos. Portanto, observa-se que um dos princípios basilares no processo de reparação é a participação efetiva de atingidos e atingidas pelos danos socioambientais.
Nesse contexto, ressalta-se o Relatório Temático sobre Mariana e Bacia do Rio Doce, realizado pela Comissão Externa destinada a fiscalizar os rompimentos de barragens, em especial acompanhar a repactuação do acordo de Mariana e a reparação do crime de Brumadinho [6], em que foram realizadas oitivas de atingidos e atingidas, incluídos pescadores, indígenas, quilombolas, artesãs, agricultores, esportistas, comerciantes, marisqueiras, os quais elaboraram propostas de uma nova forma de governança e de utilização dos recursos provenientes da reparação.
e) Direito a informação e a publicidade dos atos empresariais:
Ademais, as empresas e setores econômicos serão responsáveis pela difusão de informações de suas atividades às comunidades atingidas, por meios de notificação apropriados, levando em consideração a situação de comunidades remotas, isoladas, sem acesso à internet ou não alfabetizadas, e garantia que a referida notificação seja não apenas entregue, mas compreendida com o uso dos idiomas dos indivíduos e coletivos afetados (artigo 6º, inciso XIII).
f) Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos:
De acordo com o artigo 6º, as empresas deverão:
XI – Respeitar os processos coletivos, as associações, entidades sindicais, organizações, movimentos e outras formas de representação próprias dos trabalhadores e trabalhadoras, das comunidades, defensores e defensoras de direitos humanos, enquanto sujeitos legítimos no estabelecimento de diálogo e defesa de interesses dos que tiveram seus Direitos Humanos violados ou sob ameaça de violação;
(…)
XII – Assegurar mecanismos de proteção das pessoas atingidas por violações de Direitos Humanos por empresas, bem como defensores e defensoras de Direitos Humanos que se encontrem em situação de risco e ameaça, em razão de sua atuação na denúncia das violações.
Conforme destaca a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa de Direitos Humanos sobre a Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania:
Sinaliza-se que entre 2015 e 2019, 1.323 defensores/as de direitos humanos foram assassinados/as em todo o mundo (Conselho de Direitos Humanos, 2021, §41). O Brasil ficou em segundo lugar nesse ranking global, com 174 assassinatos de defensores/as de direitos humanos, atrás apenas da Colômbia, com 379. Quanto a assassinatos de ambientalistas, especificamente, foi registrado, no mundo, que 227 pessoas foram mortas por defenderem seus territórios, o direito à terra, seus meios de subsistência e o meio ambiente, conforme relatório “A última linha de defesa”, da ONG Global Witness. O Brasil ficou na quarta posição, com 20 assassinatos, atrás de Colômbia (65 mortes), México (30) e Filipinas (29). Contra indígenas, apenas no Brasil, foram registrados 355 casos de violência no ano de 2021, maior número registrado desde 2003, conforme dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Diante deste cenário de ameaças a defensores dos direitos humanos, é mais que necessária a previsão de institutos de proteção dessa parcela em contextos de impactos socioambientais decorrentes de atividades empresariais e o projeto acompanha as demandas deste diagnóstico.
g) Respeito aos direitos territoriais e de autodeterminação de povos originários:
Importa destacar a previsão de respeito aos direitos territoriais e de autodeterminação dos povos indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais, assim como sua soberania sobre os recursos naturais e sobre a riqueza genética local, em consonância com a Convenção nº. 169 da OIT, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
A instituição de mecanismos de diálogo e participação na condução de processos que envolvam populações vulneráveis e etnicamente diferenciadas é extremamente necessária para a promoção de direitos humanos, sobretudo, quando se trata de empreendimentos de infraestrutura de larga escala como rodovias, hidroelétricas e sistemas de transmissão de energia.
Considerações finais
Diante da análise sobre o Projeto de Lei nº 572/2022, denota-se a previsão de importantes diretrizes para a promoção de políticas públicas sobre Empresas e Direitos Humanos e, caso aprovado nas duas Casas Legislativas, será possibilitada maior responsabilização de empresas por violações diretas ou indiretas de direitos humanos; a reparação integral de vítimas; a adoção de medidas imediatas para cessar a atividade empresarial que apresenta riscos; a participação de comunidades atingidas no processo de reparação; a previsão do direito a informação e a publicidade dos atos empresariais; a proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos; e o respeito aos direitos territoriais e de autodeterminação de povos originários.
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania reitera seu posicionamento favorável ao avanço do Projeto de Lei 572/2022 no âmbito legislativo e convida outros órgãos públicos, organizações da sociedade civil e a sociedade em geral a contribuírem no diálogo a seu respeito.
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[1] Primeira sigla para Empresas Transnacionais.
[2] OLIVEIRA, M. M.; CARVALHO, M. R. M. L. Violações de direitos humanos por empresas transnacionais no brasil: perspectivas de responsabilização a partir do direito internacional dos direitos humanos. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 8, n. 2, p. p. 10030-10051, 9 fev. 2022. Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BRJD/article/view/43834/pdf. Acesso em: 15 dez. 2023.
[3] ROLAND, Manoela C., SOARES, Andressa O., BREGA, Gabriel R., OLIVEIRA, Lucas de S., CARVALHO, Maria Fernanda C. G., ROCHA, Renata P. Cadeias de Valor e os impactos na responsabilização das empresas por violações de Direitos Humanos. In. Cadernos de Pesquisa Homa. vol. 1, n. 5, 2018.
[4] ROLAND, et al., 2018, p. 6.
[5] Idem, p. 8.
[6] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2404383. Acesso em: 15 dez. 2023.