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É DESNECESSÁRIO REFORMAR A CONSTITUIÇÃO PARA REVER PERIODICAMENTE O GASTO PÚBLICO

Há uma semana, a ministra Simone Tebet concedeu entrevista à Folha de S.Paulo, defendendo a revisão periódica de gastos (spending review), como meio de qualificação dos gastos públicos. Os principais argumentos da ministra do Planejamento foram os seguintes:

 

Recriamos o ministério, criamos a Secretaria de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas. Já havia o Conselho de Monitoramento de Políticas Públicas, com estudos fantásticos, mas de políticas em andamento, por vezes quando o leite já derramou, quando é ineficiente.
Agora, está começando uma avaliação ex-ante [prévia]. Uma cultura de planejamento vai levar dez anos.
[…] O Brasil gasta muito e mal. Mais do que falar em superávit ou em déficit, e o meu compromisso é ajudar a zerar o déficit, o principal objetivo da avaliação de políticas públicas, da revisão, é a qualidade de gastos. Temos uma contribuição para a meta fiscal, com a organização da máquina pública, com revisão e com corte mesmo, quando tem erro, fraudes e desperdícios.
O nosso papel principal é garantir qualidade do gasto público e fazer com que o recurso chegue à ponta, para quem mais precisa. Não vamos deixar faltar um centavo em programas sociais relevantes e eficazes para conseguir meta zero.
[…] A revisão de gastos não está lenta. Está dentro do possível, de acordo com uma vontade política, de acordo com a que a gente sabe que o Congresso toparia fazer.”

 

Na mesma ocasião, a ministra pautou, para o final deste ano (possivelmente após as eleições municipais), o envio de uma provável proposta de emenda constitucional para fins de alteração dos pisos em saúde e educação, bem como de desindexação de determinados benefícios sociais ao salário mínimo, visando ajustá-los ao vulgarmente chamado “Novo Arcabouço Fiscal”, dado pela Lei Complementar 200/2023. Nas palavras da própria ministra Simone Tebet à Folha:

“Tem uma pauta que a gente tem de discutir, uma vez que o salário mínimo sobe acima da inflação, que é a indexação dos benefícios [sociais, do INSS]. Não estou dizendo que é para acabar com tudo, mas é uma pauta que a gente tem de enfrentar. Não estou dizendo que o presidente aceitaria, mas esse é o nosso papel. Não dá para mexer no BPC, mas dá para mexer no abono salarial? No seguro-desemprego?
[…] Acho que vamos colocar [a discussão], não estou dizendo que neste semestre, pode ser que apresentemos o relatório para o presidente neste ano, vamos colocar na mesa o piso de saúde e educação. Nada está interditado. Nosso papel é apresentar os dados. Aí vem a discussão política. Há “ene” maneiras de rever o piso de educação e saúde.
Imaginando, você pode atrelar ao novo regime fiscal, ao crescimento de até 70% [do aumento total da receita].”

 

As iniciativas aventadas pela titular do Ministério do Planejamento são muito semelhantes, por sinal, ao que o ex-ministro Paulo Guedes havia encaminhado ao Congresso no âmbito da PEC 188/2019, a pretexto da tríade DDD relativamente à agenda de desvincular, desobrigar e desindexar.

Ao nosso sentir, é socialmente regressivo e tecnicamente controverso associar a noção de revisão periódica dos gastos públicos à hipótese de uma nova alteração da Constituição de 1988, que vise, primordialmente, reduzir os pisos em saúde e educação e dexindexar os benefícios sociais da garantia de que não sejam inferiores ao salário mínimo.

Os esforços de desobrigar, desindexar e desvincular fiscalmente, a bem da verdade, tendem a ensejar outra tríade de “D’s”: desigualdade, desonestidade e destruição constitucional, como, aliás, havíamos suscitado a respeito da PEC 188/2019 nesta coluna Contas à Vista.

 

Spacca

 

Diferentemente do que parece propor o atual governo e do que já foi semelhantemente proposto pelo governo anterior, não é necessária nova emenda constitucional para implementar a revisão periódica de gastos e, com isso, resguardar sua qualidade em prol da máxima eficácia dos direitos fundamentais.

 

Precisamos ser pragmáticos diante do ciclo vicioso em que estamos enredados: o planejamento inepto e protocolar feito apenas para cumprir obrigações normativas é seguido por uma execução orçamentária errática e tendente à arbitrariedade de curto prazo eleitoral, na medida em que inexiste controle qualitativo de efetiva aderência entre planejado e executado.

Falta-nos reflexão consciente e suficiente para incorporar aprendizagem ao longo do tempo. Nossa memória coletiva revela-se deveras curta, porque falhamos em identificar os erros do passado, não os corrigimos adequadamente, donde deixamos de entender e, por isso, não conseguimos superar as circunstâncias que os ensejaram.

 

Sem esse esforço pedagógico, estamos literalmente presos em uma engrenagem político-institucional que repete os erros do passado porque não avalia efetivamente os resultados alcançados a partir das metas estabelecidas em torno dos rumos da ação governamental. É como se o Brasil se mantivesse estagnado e sem perspectiva de futuro, porque aprisionado ao insano fluxo de reiteração dos equívocos pretéritos.

Não é por falta de previsão constitucional, todavia, que nos omitimos em analisar criticamente o percurso das escolhas estatais. Ao longo das normas inscritas originalmente e das que foram acrescidas à Constituição de 1988, o dever de avaliar políticas públicas, agentes governamentais, condições e metas, em geral, aparece em mais de vinte passagens. Referimo-nos, em especial, aos seguintes dispositivos:

 
  1. Artigo 37, §3º, I — avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços públicos, a partir, entre outras dimensões, das reclamações dos seus usuários coletadas em sistemas de atendimento e canais de participação correspondentes;
  2. Artigo 37, §8º, II — critérios de avaliação acerca do cumprimento do contrato de gestão que ampliar a autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta, desde que sejam atendidas metas de desempenho para o órgão ou entidade;
  3. Artigo 37, § 16 — dever imposto aos órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, de que realizem avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados;
  4. Artigo 40, § 1º, I — obrigatoriedade de que sejam realizadas avaliações periódicas para verificação da continuidade das condições que ensejaram, no âmbito do regime próprio de previdência social — RPPS, a concessão de aposentadoria por incapacidade permanente para o trabalho, no cargo em que o servidor estiver investido, quando insuscetível de readaptação, na forma de lei do respectivo ente federativo;
  5. Artigo 40, § 4º-A — submissão a avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar para fins de concessão de aposentadoria especial a servidores com deficiência no RPPS;
  6. Artigo 201, § 1º, I — submissão a avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar para fins de concessão de aposentadoria especial a segurados com deficiência no âmbito do regime geral de previdência social (RGPS);
  7. Artigo 41, § 1º, III — perda da estabilidade do servidor público mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa;
  8. Artigo 41, § 4 º — obrigatoriedade de avaliação especial de desempenho como condição prévia à aquisição da estabilidade pelo servidor ocupante de cargo efetivo;
  9. Artigo 132, parágrafo único — avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias, como condição prévia à aquisição de estabilidade de Procuradores dos Estados e do Distrito Federal;
  10. Artigo 52, XV — competência privativa do Senado Federal para “avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios”;
  11. Artigo 74, I — sistema de controle interno dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário destina-se a “avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União“;
  12. Artigo 74, II — atribui ao sistema de controle interno a finalidade de “avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado“;
  13. Artigo 165, § 16 — dever de que as leis de plano plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamento anual observem, “no que couber, os resultados do monitoramento e da avaliação das políticas públicas previstos no § 16 do art. 37 desta Constituição”;
  14. Artigo 173, § 1º, V – previsão de que o estatuto das empresas estatais exploradoras de atividade econômica contenha regras relativas à avaliação de desempenho e à responsabilidade dos administradores;
  15. Artigo 193, parágrafo único — disposição geral do Título VIII — Da Ordem Social de que “o Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas”;
  16. Artigo 198, § 3º, III — previsão de que lei complementar fixe normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas computadas no piso em ações e serviços públicos de saúde pelas esferas federal, estadual, distrital e municipal;
  17. Artigo 209, II — avaliação de qualidade pelo Poder Público em relação à oferta do ensino privado no país;
  18. Artigo 212, § 9º — demanda constitucional de que lei disponha sobre normas de fiscalização, de avaliação e de controle das despesas computadas no piso em manutenção e desenvolvimento em educação pelas esferas estadual, distrital e municipal;
  19. Artigo 212-A, V, alínea “c” — distribuição de parte da complementação federal ao Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) conforme o cumprimento de condicionalidades de melhoria de gestão previstas em lei, bem como a partir do alcance da evolução de indicadores a serem definidos, de atendimento e melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades, nos termos do sistema nacional de avaliação da educação básica;
  20. Artigo 212-A, X, alínea “e” — lei regulamentadora do Fundeb deve definir “o conteúdo e a periodicidade da avaliação, por parte do órgão responsável, dos efeitos redistributivos, da melhoria dos indicadores educacionais e da ampliação do atendimento”em consonância com o Plano Nacional de Educação;
  21. Artigo 239, § 5º — dever de avaliação dos resultados dos programas de desenvolvimento econômico financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com os recursos do Programa de Integração Social e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep); bem como dever de divulgação de tais resultados “em meio de comunicação social eletrônico e apresentados em reunião”da Comissão Mista de Orçamento;
  22. Artigo 41 do ADCT — previsão de que os Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios reavaliassem em dois anos todos os incentivos fiscais de natureza setorial que estavam em vigor na data de promulgação da CF/1988. Caso não fossem confirmados por lei, seriam eles automaticamente revogados.

O rol acima não tem pretensão de exaurir as hipóteses normativas de dever de avaliação. Apenas visa evidenciar a relevância do instituto para o nosso ordenamento.

Não precisa mudar a Constituição
A noção de revisão ampla e periódica de todas as opções de arrecadação e de gasto para qualificar o ciclo orçamentário já está assentada na Constituição de 1988, não sendo necessário alterá-la substancialmente para instituir o sistema de spending review  [1]  adotado em muitos países da OCDE.

Qualquer agenda que vise ao aprimoramento estrutural das finanças públicas no Brasil passa por cumprir, de fato, as normas já existentes em nosso país.

 

Algumas dessas, por sinal, estão vigentes há muitas décadas, tal como o sexagenário controle finalístico da execução orçamentária previsto no artigo 75, III da Lei 4.320/1964, onde se busca aferir o “cumprimento do programa de trabalho expresso em termos monetários e em termos de realização de obras e prestação de serviços”.

Parece-nos extremamente oportuno, aliás, resgatar o parágrafo único do artigo 63 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que previra “estudos, debates e avaliações sobre a evolução política, social, econômica e cultural do País, podendo articular-se com os governos estaduais e municipais e com instituições públicas e privadas que desejem participar dos eventos” para celebrar reflexivamente o centenário da República em 1989 e da primeira Constituição republicana em 1991.

 

É irônico e um tanto frustrante lembrar que o país comemorou seu bicentenário em 2022, sem que tal esforço reflexivo tenha sido cumprido.

Enquanto não empreendermos seriamente essa autoavaliação, a tendência é que nos mantenhamos atados ao ciclo vicioso de repetição dos erros do passado. Não é ignorância pura e simples, tampouco é falta de lastro normativo.

Há deliberada omissão quanto ao dever de avaliar os resultados da ação governamental conforme as metas inscritas em seus mais diversos instrumentos de planejamento. Aos que se aproveitam desse caos operacional — em prol dos seus interesses de curto prazo eleitoral e suas vantagens econômicas — é preciso contrapor e exigir a máxima eficácia do nosso ordenamento constitucional.

 

Não é reduzindo ainda mais o financiamento dos direitos sociais que será mitigada a extrema desigualdade que constrange o desenvolvimento sócio-econômico do Brasil. Nossas escolhas coletivas presentes somente melhorarão planejadamente o porvir se aprendermos com nossos equívocos pretéritos e avaliarmos detidamente a ação governamental, conforme já exaustivamente determina nossa Constituição Cidadã.