Ver mais notícias

PENA DE MULTA VIROU FATOR DE MARGINALIZAÇÃO COM LEI RIGOROSA E PROCESSO DO 'MENSALÃO'

O rigor legislativo e um julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre crimes do colarinho branco transformaram a pena de multa no processo penal não apenas em impagável, mas em fator de marginalização das pessoas que deixam a cadeia.

Isso ocorreu porque o pagamento da multa é um elemento que pode impedir a extinção da punibilidade dos condenados no Brasil. O tema está em discussão nas cortes superiores há uma década, com reviravoltas dramáticas.

 

A extinção da punibilidade marca o momento em que o Estado não pode mais continuar punindo a pessoa que cometeu um crime. Ela se dá, entre outras hipóteses, com a declaração do juiz da execução penal de que a pena foi integralmente cumprida.

Até 2015, quem não tinha condições de pagar essa pena em dinheiro simplesmente ficava num limbo jurídico, já que a multa virava dívida de valor e era cobrada pela Fazenda Pública nas varas de execuções fiscais.

A praxe no país é que as Fazendas estaduais elejam um ponto de não execução — ou seja, um valor mínimo a partir do qual vale a pena ajuizar a execução fiscal, levando em conta os custos do processo. Em São Paulo, por exemplo, esse valor hoje é de 1,2 mil ufesps, o que corresponde atualmente a R$ 42,4 mil. Isso significa que, para tributos não pagos até esse valor, é mais caro para o Estado cobrar a dívida do que deixar de cobrá-la.

 

O Estado, portanto, não cobrava a pena de multa e o juiz, se não quisesse, não extinguia a punibilidade. Sem ela, a ressocialização de quem já cumpriu a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos fica inviabilizada.

Esse problema foi atacado em 2015, quando a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou tese vinculante para determinar que o réu que já cumpriu a pena corporal deve ter a extinção da punibilidade decretada mesmo sem o pagamento da pena de multa.

O Estado ainda poderia cobrar a multa, mas ela não teria mais efeitos penais. Segundo o defensor público de São Paulo Glauco Mazetto, a questão estava resolvida.

O problema, porém, ressurgiu das cinzas quando o STF, em 2018, julgou uma questão de ordem na Ação Penal 470, do “mensalão”, em conjunto com a ADI 3.150. A conclusão foi de que a pena de multa não perde seu caráter penal e pode ser cobrada pelo Ministério Público.

A revista eletrônica Consultor Jurídico mostrou em 2019 que esse precedente vinha sendo abraçado pelas câmaras criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para todo e qualquer caso. Portanto, o que o Supremo julgou tendo em mente crimes de corrupção passou a ser usado para furto, roubo e tráfico.

 

Isso fez o STJ revisar sua tese pela primeira vez, em 2020, proibindo a extinção da punibilidade sem o pagamento da pena de multa.

Além disso, no fim de 2019, o pacote “anticrime” do governo de Jair Bolsonaro entrou em vigor para mudar o artigo 51 do Código de Processo Penal, prevendo que a pena de multa deve ser executada perante o juízo da execução penal.

Nas palavras de Glauco Mazetto, esse cenário instaurou o caos.

Chuva de execuções

Dados levantados pela Defensoria Pública de São Paulo mostram o impacto enorme desse rigor legislativo e da jurisprudência virada. E o que aconteceu no estado com a maior população carcerária do país pode ser visto em maior ou menor proporção no resto do Brasil.

Entre fevereiro de 2020 e abril de 2023, a Justiça paulista recebeu 266,6 mil ações de execução da pena de multa. No marco final desse período, havia 181 mil ações em andamento, número quase igual ao de presos no estado à época (195,1 mil).

Apenas no primeiro semestre de 2023, a Defensoria Pública paulista recebeu 65,1 mil intimações referentes à execução da multa. E, entre 2020 e 2022, o número de ações sobre o tema aumentou 2,6 vezes no estado.

 

Essas execuções seguem o rito normal de cobrança: a pessoa é citada para que pague a dívida ou indique bens à penhora. Se não o fizer, haverá busca de bens, penhora e bloqueio, o que é raro nos casos de assistidos pela Defensoria.

Entre 2020 e 2023, a Secretaria de Administração Penitenciária recebeu 1,6 mil pedidos de penhora do pecúlio — o salário que a pessoa presa recebe por trabalhar, que fica depositado em seu favor e pode ser sacado quando o preso é posto em liberdade.

No mesmo período, foram efetivados 576 bloqueios desses valores. “Parece algo do mundo de Kafka”, diz Mazetto, em relação ao escritor austro-húngaro Franz Kafka, cuja obra dialoga com absurdos praticados no âmbito do Direito.

Essa situação levou as Defensorias Públicas a buscar uma terceira revisão da tese, ao menos em relação aos miseráveis. Em 2021, o STJ fixou que o não pagamento da multa por pessoa pobre não pode impedir a extinção de sua punibilidade.

O problema não se resolveu totalmente, no entanto. A prova da miserabilidade passou a ser um impeditivo, então o tribunal fez uma quarta alteração, neste mês, para dizer que a declaração de pobreza, que pode ser contestada, deve ser suficiente para a extinção da punibilidade sem o pagamento da multa.

 
Reprodução

Obtenção de documentos fica prejudicada sem a extinção da punibilidade

Consequências drásticas

Impedir a extinção da punibilidade significa, na prática, marginalizar o egresso do sistema prisional. Sem ela, ele não consegue a reabilitação, que é o que assegura o sigilo dos registros sobre seu processo e sua condenação.

Sem o sigilo, a pessoa não consegue a certidão negativa de antecedentes criminais, sem a qual a busca por emprego formal fica extremamente prejudicada.

Além disso, sem a extinção, também não começa o chamado período depurador — prazo de cinco anos em que o condenado será considerado reincidente. Após esse tempo, ele volta a ser primário, embora ostente maus antecedentes.

Também permanece a suspensão dos direitos políticos. Assim, o ex-preso não consegue regularizar o título de eleitor. Logo, não pode votar, matricular-se em instituição de ensino público ou exercer cargos públicos concursados.

Se o condenado não tiver CPF, não conseguirá expedir esse documento, devido à ausência do título de eleitor. Por isso, não obterá carteira de trabalho, crédito em instituições bancárias ou acesso a benefícios sociais.

Nas palavras do ministro Rogerio Schietti, relator do recurso no STJ, esse cenário “expõe as vísceras das disparidades socioeconômicas arraigadas na sociedade brasileira, as quais ultrapassam o inegável caráter seletivo do sistema punitivo”.

 

Segundo ele, essas disparidades “se projetam não apenas como mecanismo de aprisionamento físico, mas também de confinamento social, a frequentemente reduzir o indivíduo desencarcerado ao status de um não cidadão”.

Brechas

Para Glauco Mazetto, a tese recém-ajustada pelo STJ vai ajudar muito os condenados mais vulneráveis. Até então,  os juízes impunham aos executados o dever de comprovar sua miserabilidade, uma prova negativa definida por ele como diabólica.

“Há casos com indicação no processo de que a pessoa é desempregada e o acórdão dizendo que desemprego, por si só, não comprova que ele não tem condições de pagar a multa. Isso gera um ciclo negativo eterno de aplicação da tese.”

 

Ainda há brechas, porém, a serem cobertas. A posição atual não trata das pessoas que são executadas pela pena de multa enquanto ainda estão cumprindo pena privativa de liberdade ou restritiva de direito.

Para o defensor público, a fundamentação da tese, em teoria, aplica-se a esses casos. “Mas certamente encontraremos resistência. Vamos precisar de um outro tema específico sobre isso.”

Outro temor é que juízes e membros do Ministério Público usem o termo “possibilidade de pagamento” em desfavor do acusado.

 

Segundo Mazetto, é comum juízes dizerem que a impossibilidade momentânea de pagar a multa ou o fato de não encontrar bens não indica que a pessoa não pode pagar a multa. “Será que isso é elemento concreto?”, provoca o defensor.