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CÓDIGOS, CONSOLIDAÇÕES E REGULAMENTOS: O MAPA DO DIREITO ADUANEIRO

Foi apresentado ao Senado Federal, em 29/2/2024, o Projeto de Lei nº 508/2024, voltado a consolidar a legislação federal esparsa sobre o comércio exterior e a tributação aduaneira e, assim, torná-la mais acessível, bem como a promover redução de complexidades, harmonização e atualização das regras aduaneiras.

A ideia de separar uma estante específica da biblioteca das leis para o tema do Direito Aduaneiro soa interessante, mas deve o legislador-bibliotecário tomar os cuidados necessários para não ser soterrado pelo peso dos livros. Em 5/3/2024, a Presidência da casa abriu o prazo de 30 dias, perante a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, para a “(…) incorporação de normas que não foram objeto de consolidação”. A ambição enciclopédica do projeto revela que precisamos refletir um pouco melhor sobre o que seria uma consolidação.

 

Ao menos desde Fernand Braudel, há um nome (depreciativo) para a preocupação de esgotar a sucessão dos acontecimentos para compor uma narrativa histórica, “événementielle”: a ideia de desenhar um mapa tão preciso e exato da Irlanda que seja do exato tamanho da Irlanda, e, portanto, inútil.

Fica lançado o desafio: consolidar seria mesmo “esgotar” e retirar as aparas do direito posto? Seria oferecer a totalidade dos textos aduaneiros a um retrofit paliativo, preservando as suas fundações originais, ainda que incompatíveis com o direito de 2024? A ideia parece caminhar em sentido oposto ao do ambiente reformista e modernizador que inspira o Congresso na área tributária.

Retirar os acentos do “impôsto sôbre a importação”, adequando a sua escrita ao atual padrão ortográfico, não tornará o inciso II do artigo 20 do Código Tributário Nacional menos antinômico com relação ao Acordo de Valoração Aduaneira enquanto continuar a reportar ao “preço normal” estabelecido em Bruxelas.

A leitura do § 1º do artigo 13 da Lei Complementar nº 95/1998 deve ser temperada a partir da ideia de que pensar é abstrair, e não acumular acriticamente. Integrar as leis pertinentes em um diploma legal, revogando-se formalmente as leis incorporadas, implicará a reprodução de acertos, mas também de erros do passado, bem como de acertos do passado que não são mais adequados para o tempo presente.

 

 

Spacca

 

Como continuar a condenar ao perdimento o bem encontrado na bagagem do viajante que atente contra a moral e os bons costumes? (o dispositivo não poderia ficar de fora da consolidação, afinal, o inciso XIX do artigo 105 do Decreto-Lei nº 37/1966 se encontra vigente).

Não se deve perder de vista que, assim como a curadoria é uma obra de autor, consolidar é também legislar e tomar decisões, e a atividade legislativa não se esgota no labor catalográfico; os gabinetes do Congresso Nacional estão longe de ser o Scriptorium dos monges copistas.

O Direito Aduaneiro não pode ser governado por textos escritos por mortos organizados por uma inteligência artificial generativa – implacável na aplicação da lógica euclidiana, mas pouco sensível à interpretação substantiva reclamada pelo Direito.

O mapa do Direito

Mas qual seria a ideia de agrupar os textos legislativos em torno de um determinado tema, seja por meio de códigos, codificações, institutas, digestos, pandectas, ordenações, regulamentos ou consolidações, e qual a diferença entre essas massas normativas? Se o termo “código” remonta à Antiguidade, como a conhecida coleção de leis imperiais que formava o “Codex Justinianeus”, primeiro livro do “Corpus Juris Civilis”, o primeiro registro moderno da expressão “codificação” data de 1817, em uma coletânea epistolográfica de autoria de Jeremy Bentham [1] editada pouco depois da edição do Código Napoleônico de 1804.

 

Sob o influxo da racionalidade, a codificação foi vista por Bentham como um meio de modernização e racionalização do direito, tendente a reformar e simplificar o sistema legal, tornando-o mais claro, acessível e justo: a criação de um “mapa do direito” conduziria a uma compilação sistemática e abrangente de leis, ordenadas de forma clara e lógica, de forma a eliminar as incertezas e complexidades do direito comum (common law), que tendia a ver como arbitrário, disperso e frequentemente inacessível para os não especialistas.

Para ele, um código legal deveria ser completo, de modo a reunir todas as leis aplicáveis a uma sociedade em um único corpo de texto, facilitando a identificação e a aplicação das regras, o que contrastava com a abordagem tradicional do direito comum, que se desenvolvia caso a caso e podia resultar em uma coleção dispersa e por vezes contraditória de precedentes judiciais.

O utilitarismo de Bentham confere uma perspectiva diferente dos movimentos de codificação fundados no legalismo demo-liberal da “Era das Revoluções”, em especial o da França, marcados pelo influxo do jusnaturalismo ilustrado que tomavam os códigos não apenas como meras “(…) compilação de leis, mas um corpo racional e unitário que representasse uma razão jurídica escrita e acabada” [2], programa teórico de fundo do que se conheceu por “Escola da Exegese”.

 

Embora suas ideias de codificação não tenham sido amplamente adotadas em seu próprio país, a Inglaterra, suas teorias influenciaram significativamente o movimento de codificação em outras partes do mundo, especialmente na Europa continental e na América Latina [3], destacando-se, no Brasil, a edição do Código Criminal de 1830, do Código de Processo Criminal, grande trunfo liberal pós-abdicação em 1832, e a reforma do Código de Processo e a recriação do Conselho de Estado, em 1841, que apontaram para modelos antagônicos de Estado.

Entre o novo e o velho

As codificações e consolidações, portanto, têm um ponto em comum: o desejo de racionalizar, organizar e simplificar, termos que aparecem tanto nas cartas de Bentham escritas há mais de duzentos anos como no projeto de lei proposto em fevereiro.

Há, sob o propósito de densificação das normas, uma ideia tanto de ruptura como de continuidade. Observe-se que o direito inglês reflete uma preferência histórica por um desenvolvimento legal orgânico, baseado na evolução de precedentes judiciais, em vez de uma reformulação abrangente e sistemática da lei por meio da edição de códigos e consolidações [4].

 

A codificação, por outro lado, não tem por enfoque um desenvolvimento incremental, mas um ponto de inflexão. Por outro lado, este seu elemento refundacional, que é tão próprio da tradição continental do “Civil Law”, porta consigo uma visão mais formal e, ao mesmo tempo, mais estática ao estabelecer um corpo de leis definitivo e abrangente. É bastante interessante perceber como as mudanças, a complexidade das relações, as novas tecnologias, os novos acordos e necessidades fazem transparecer com certa facilidade os limites do legalismo codificado.

 

Não colar os cacos, mas produzir uma nova obra: a originalidade de Teixeira de Freitas

A esta altura, já deve parecer questionável que os códigos possuam uma feição mais criativa que as consolidações, e esta impressão é correta e não deve ser entendida como uma grande inovação. Veja-se que o governo imperial brasileiro firmou em 1855 com Teixeira de Freitas um contrato para elaborar um código civil, mas, antes, deveria formular uma consolidação das leis civis.

Teixeira de Freitas, erudito germanista, terminou sendo, nas palavras de José Reinaldo Lima Lopes, “(…) muito original”. Em uma consolidação? Seu texto continha “(…) sem repetições e de forma compreensível para os contemporâneos, todo direito vigente”, ou seja, o que de direito privado sobreviveu das Ordenações Filipinas.

 

Mais importante: “(…) como diz o autor, na célebre Introdução que escreveu, já se poderia considerar revogado tudo aquilo que era incompatível com o regime constitucional”. Assim, na ausência de um código, a consolidação, adequando o texto do velho continente à Constituição de 1824, “(…) formou os juristas do império” [5].

A Consolidação da legislação aduaneira vigente

O Capítulo III da Lei Complementar nº 95/1998 trata da consolidação das leis federais “(…) sem modificação do alcance nem interrupção da força normativa dos dispositivos consolidados”. O mecanismo consolidador, a ser proposto por projeto de lei nos termos do inciso I do artigo 14, tem por pressuposto a preservação do conteúdo normativo consolidado (previsão que não se aplica para as codificações). Há, ainda, a previsão, no artigo 16, da elaboração de coletâneas de consolidação dos decretos e demais atos normativos inferiores em vigor.

 

Por outro lado, os regulamentos têm fundamento de validade diverso. O Decreto nº 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro) tem por base o artigo 176 do Decreto-Lei nº 37/1966, segundo o qual o Poder Executivo deve regulamentar as suas disposições, assim como o  Decreto 7.212/2010 (RIPI) extrai sua validade do artigo 123 da Lei nº 4.502/1964, ou o Decreto nº 9.580/2018 (RIR), do artigo 89 da Lei nº 4.506/1964, e assim por diante.

Quatro categorias

Há, portanto, na legislação brasileira, ao menos quatro categorias de adensados normativos: (1) consolidações de leis, (2) consolidações de decretos e demais atos normativos inferiores, (3) códigos e (4) regulamentos.

 

Assim, uma Consolidação de decretos pode abranger diferentes regulamentos (o regulamento do Decreto-Lei nº 37/1966 e o regulamento de outra lei aduaneira, por exemplo), e um regulamento pode trazer uma previsão não existente na lei que visa regulamentar, desde que com ela não conflite ou exorbite.

Decreto nº 6.759/2009: consolidação ou regulamento?

Em 22/2/2022, esta coluna apontou, em artigo de autoria de Rosaldo Trevisan,  para o artigo matematicamente mais descumprido do CTN: o art. 212 previa, dentro de 90 dias de sua entrada em vigor, a “(…) consolidação, em texto único, da legislação vigente, relativa a cada um dos tributos, repetindo-se esta providência até o dia 31 de janeiro de cada ano” [6], como a recente Consolidação das Leis Tributárias do Município de São Paulo aprovada pelo Decreto nº 61.810/2022.

 

De acordo com as premissas acima, os Livros II e III do Regulamento Aduaneiro na verdade não teriam por fundamento de validade o artigo 212 do CTN, pois este dispositivo determina que deverá ser apresentada uma consolidação relativa a cada um dos tributos, e não um regulamento. Consolidar, na lógica legislativa brasileira, é substituir a legislação esparsa já existente por um único condensado legislativo coeso e coerente, sem modificação de conteúdo normativo, enquanto regulamentar é ofertar operatividade e concreção à norma vigente, sem substituí-la.

 

Neste sentido, cabe indagar: o regulamento aduaneiro de 2009 é deveras um regulamento, ou se trata de uma consolidação?

Levantamos a hipótese de que o decreto ora atua como regulamento, ao dotar de operatividade determinadas normas, ora como consolidação, ao agregar, em torno do Decreto-Lei nº 37/1966, que toma como matriz de consolidação e lei geral básica, “(…) os demais atos normativos de caráter extravagante que disponham sobre matérias conexas ou afins àquela disciplinada na matriz”, nos termos do artigo 48 da Decreto nº 9.191/2017.

 

A implicação desta constatação é que o Decreto de 2009, híbrido de regulamento e consolidação, também está suscetível a ser incorporado à Consolidação proposta pelo Projeto de Lei nº 508/2024.

O que significa uma consolidação aduaneira?

Enquanto a mais famosa das consolidações no Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho, agrupou, em torno do Decreto-Lei nº 5.452/1943, a legislação mais moderna de sua época, logo após a criação da Justiça do Trabalho de 1939, a Consolidação Aduaneira pode ser entendida como um emblemático caso de “timewashing”.

 

O mundo era outro quando Humberto Castelo Branco editou, em novembro de 1966, o Decreto-Lei nº 37/1966, que desejava a todo custo retomar o desenvolvimentismo da era Kubitschek por meio de reduções tarifárias e da imposição de duras penas para as infrações aduaneiras, em um momento em não era possível um controle efetivo sobre as fronteiras.

A escolha deste veículo normativo de teor contramajoritário seria refreada unicamente  pelos contrapesos da Constituição de 1988 que, como recordaria Ruy Barbosa Nogueira, “(…) eliminando o decreto-lei, substituiu-o pelas chamadas medidas provisórias” [7], verdadeira exceção derrogatória da divisão dos poderes.

 

Consolidar a legislação aduaneira é convolar em lei, aprovada pelo parlamento brasileiro, o Decreto-Lei nº 37/1966, o Decreto-Lei nº 1.455/1976 e tantos outros trazidos a fórceps ao ambiente normativo nacional?

É tornar claro que a legislação sobre a matéria é retrógrada, atrasada, baseada no direito aduaneiro do inimigo, que considera o importador ou exportador como fontes de perigo permanente, em uma visão incompatível com a constitucionalização do Direito Administrativo (e Aduaneiro, por consequência), com a remissão explícita às garantias de culpabilidade, com a retroatividade benigna, ou a individualização da pena para o campo das sanções aduaneiras? (link)

 

É tornar claro que a legislação aduaneira atua em desacordo com os compromissos internacionais ao permitir julgamentos em instância única no caso de regimes especiais, ou, quando muito, relegar recursos a instâncias dependentes da administração aduaneira? (link).

É tornar claro que no Brasil não se permite a liberação de mercadorias no caso de apreensão mediante a prestação de garantia (link), ou a aplicação de razoabilidade, dosimetria, reconhecimento de erro escusável (link), calibração ou relevação de pena no caso de condutas não reiteradas em desacordo com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (link)?

 

Será este o momento de consolidar, tal qual Irineu Funes, o memorioso, todos os desvãos, inadequações e anacronismos acumulados ao longo dos últimos anos pela legislação aduaneira, ou seria mais produtivo e estratégico direcionarmos o poder de fogo de nosso Parlamento para discutir, de maneira corajosa, um novo Código Aduaneiro Brasileiro?

Um código moderno, ousado, atento aos compromissos internacionais, alinhado com o benchmarking das aduanas e das melhores práticas internacionais, aberto às novas tecnologias e aos novos paradigmas da relação aduana-empresa e aduana-aduana.